O escritor que escreve a sua mentira, escreve a sua verdade.
(Ramón de La Serra)
“Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”, esta é uma das quatorze definições de Ítalo Calvino para justificar a leitura dos clássicos ocidentais. Relendo o livro Amálgama , uma pequena e substancial antologia poética de Roberval Pereyr, percebo o real valor da frase do escritor italiano. A poesia de Pereyr continuará sempre dizendo outras vozes.
Reunindo trinta e seis poemas extraídos de sete livros do autor baiano, esta antologia, que infelizmente teve uma tiragem pequena e não comercializável no circuito livresco, traz a noção exata de um poeta maduro na linguagem lírica e consciente do pleno domínio dos recursos rítmicos da verdadeira poesia.
Abre a antologia um poema de versos curtos (uma constância neste livro) em linguagem sonora:
Entrei de costas na vida
e vi o passado morrer:
Sou este ser invertido
olhando para o perdido
como quem sabe esquecer.
(“Poema”, p. 9)
Preciso como a faca amolada de um valente na barriga do seu adversário, assim é o movimento da poesia primordialmente lúcida de Roberval Pereyr.
Atualizando formas ditas clássicas, através de um jogo lúdico da linguagem, o poeta escreve um soneto invertendo sua estrutura estrófica. O tempo do eu lírico é curto assim como é curta a métrica do poema escrito em redondilha menor:
Não me diga nada
que já estou na estrada
que meu tempo é curto.
Pois se a vida é breve
Que daqui me leve
Na inversão de um susto.
Quando a vida excede
Sobre o meu destino
Eis que desafino
Por sabê-lo tanto.
Ai este silêncio
Corrosivo, crasso,
Seiva do fracasso
Que transformo em canto.
(“Soneto”, p.10)
O silêncio: eis uma das matérias do poeta que perpassa todo este livro. O poeta pede silêncio para transformar espantos, sussurros e dores em cantos universais.
Escrevendo e vivendo à margem dos modismos literários que passam e que passarão nas torrentes breves da banalidade cultural ditada por uma sociedade de consumo sem tempo para as verdadeiras experiências estéticas, Roberval Pereyr deixa gravada no poema Nudez (p. 34) sua profissão poética:
Não quero ser simples.
uma flor não é simples:
é uma flor. E não cede.
Não ceder não significa estar alheio ao mundo, ao seu tempo e aos homens. E, por isso, nos diz o poeta:
Meu poema está nas ruas, tomando cerveja
nos bares – pulando carnavais, pulando abismos.
(“Dos cantos de sagitário 15”, p.37)
O que ele deseja é compartilhar com os outros (nós leitores) o grande exercício da mentira poética que possibilita (ao poeta e a nós) praticarmos o frágil exercício da verdade. Eis o que é esta antologia: um grande amálgama da existência poética de Roberval Pereyr e suas mentiras verdadeiras.
Nota: Este artigo foi escrito antes da publicação do livro Amálgama: Nas praias do avesso e poesia anterior (Salvador: SCT, FUNCEB, 2004), que reúne a produção poética do autor em melhor projeto editorial.
Cleberton Santos
Poeta, crítico e mestrando em Literatura e Diversidade Cultural – UEFS.