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Artigos-->A cruz e a toga -- 11/10/2005 - 15:07 (Félix Maier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A cruz e a toga



por Janer Cristaldo (*) em 10 de outubro de 2005



Resumo: De repente, a Europa deu-se conta de que praticava regularmente a atitude condenada nos muçulmanos.



© 2005 MidiaSemMascara.org





Quando tive de cumprir a única missão que jamais gostaria de ter cumprido em minha vida, tropecei de chofre com o problema. Eu levava o corpo inerme de minha amada à capela do crematório e lá estava ele, desnudo, obsceno e sujo de sangue, braços estendidos, dominando aquele recinto fúnebre, com um ar de quem há séculos se sentia muito à vontade naquele madeiro, sempre pairando sobre cadáveres. Minha reação foi imediata: “tirem isso daí e já!” Os funcionários, surpresos com meu gesto irado, não sabiam como reagir. Mas acabaram dando um sumiço na imagem do judeu. Os compungidos convivas foram aos poucos chegando e notava-se em suas expressões que sentiam a falta de algo na sala. Que sentissem. Só o que faltava eu, ateu, velar minha mulher, também atéia, sob a sombra de uma cruz! E já deixo um recado para quem tiver de me acompanhar quando chegar o dia de minha volta ao nada: não quero instrumentos de tortura pairando sobre minha carcaça.



Até hoje não consegui entender o sucesso da cruz como logotipo. Mais que instrumento de morte, é instrumento de tortura. Se para os romanos era um utensílio para a execução de sentenças, mal os cristãos chegaram ao poder transformou-se em estandarte anunciador de matanças. Em seu nome foram massacradas milhares de pessoas que não aceitavam o deus único cristão, em seu nome foram destruídos altares e cultos a outros deuses, em seu nome culturas inteiras desapareceram do mapa. Pela primeira e única vez na história, um instrumento de tortura se transformou em bandeira gloriosa. A bandeira com a foice e o martelo ensangüentou o século XX, mas estes dois objetos pelo menos eram símbolos do trabalho e não de uma prática infamante.



Como ondas concêntricas de um terremoto longínquo, o embate entre Ocidente e Islã acabou chegando ao Brasil. O juiz Roberto Arriada Lorea, da 2ª Vara de Família e Sucessões do Foro Central de Porto Alegre, propôs a retirada dos crucifixos das salas de audiências e de julgamentos nos fóruns e no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.



“A presença dos símbolos religiosos - basicamente crucifixos - coloca os foros e o tribunal sob suspeição”, avalia o juiz. No que não deixa de ter razão. O Brasil é um país multi-religioso. Se para um cristão a cruz significa redenção, para um judeu ou muçulmano traz lembranças não muito gratas: as fogueiras da Idade Média, as torturas da Inquisição, as cruzadas. Mas que tem a ver o Islã com a proposição do juiz gaúcho?



Ocorre que o este debate teve suas origens na Europa, mais precisamente na Itália, país que hospeda o Vaticano. A lebre foi levantada em Milão, mais precisamente em 2001, em Milão, quando Rosa Petrone, uma enfermeira italiana convertida ao Islã, decidiu não retomar sua função no hospital de Niguarda enquanto não fossem removidos os crucifixos do local de trabalho. A União Muçulmana da Itália tomou posição a favor da enfermeira, alegando que a presença do crucifixo católico em locais públicos era violação e desafio à neutralidade e laicidade do Estado. Ainda no mesmo ano, em outra cidade italiana, uma professora pedira a retirada do crucifixo das salas de aula, para não ferir suscetibilidades de filhos de imigrantes. De repente, a Europa deu-se conta de que praticava regularmente a atitude condenada nos muçulmanos.



A reação de Rosa Petrone foi resposta à luta dos europeus contra o véu islâmico. Se alguns países europeus brandem o argumento de um Estado laico contra a ostentação de símbolos religiosos, a enfermeira italiana concluiu – e com boa lógica – que nas repartições públicas não deveriam existir símbolos nem mesmo da religião católica. O que me parece perfeitamente pertinente. Diga-se de passagem, a separação entre clero e laicato não foi iniciativa do poder laico, mas da própria Igreja. Este poderoso fator de progresso da Europa, data do século XI. Não foi iniciativa de leigos, mas obra do papa Gregório VII. A chamada reforma gregoriana visava subtrair a Igreja à dominação dos leigos e, principalmente subtrair o papado romano das pretensões do imperador germânico.



Mas a oportuna decisão de Gregório VII não parece ter feito fortuna na História. Passa papa, morre papa, assume papa e o Vaticano está sempre interferindo em assuntos pertinentes ao Estado. João Paulo II, num flagrante acinte à Europa, chegou a recomendar a juízes que se submetessem às diretrizes da Igreja a respeito de aborto e divórcio. Com a arrogância dos monoteístas, que crêem que seu deus é o único e verdadeiro, passou boa parte de seu pontificado condenando o homossexualismo e o prazer sexual. Que condene tais práticas no Vaticano e em seu rebanho, entende-se, é uma questão de idiossincrasia. Que as condene nas nações, além de vã presunção, é demonstração de autoritarismo. Hélas! Hoje, mais do que nas casernas, é sob a sombra cúmplice dos altares que grassa o bom esporte grego. Conseqüência natural de uma religião que afastou seus oficiantes do sexo feminino. Mas isto é outro assunto.



A meu ver, as legislações bem que poderiam oferecer aos católicos um status de exceção. Aborto e homossexualismo não constituem crime, exceto quando praticados por católicos. Neste caso, que se abatam sobre estes senhores todos os rigores da lei. A meu ver, esta singela solução satisfaria ambas as partes. Você é católica e praticou aborto? Segundo sua crença, você é uma criminosa e deve ser punida com o cárcere. Não é católica? Passe bem, afinal não cometeu crime algum. Se bem conheço os bois com que lavro, o rebanho do Pontífice diminuiria significativamente em curto espaço de tempo.



Volto à cruz. Para o juiz Arriada Lorea, os símbolos colocados nas paredes ferem o artigo 19 da Constituição Federal, que veda relações de dependência entre o Estado e as instituições religiosas. Consta que, nos anos 70, um juiz da comarca de Tupanciretã (RS), ao assumir o posto determinou a retirada do crucifixo da sala de audiências. Ocorreu que gesto ocorreu nos cafundós do Brasil e permaneceu perdido, como um gesto folclórico, na crônica da província.



O cardeal Joseph Ratzinger, em 2004, em sua homilia de Ano Novo, em Regensburg, Baviera, dedicou-se a xingar Johannes Rau, o presidente alemão, por ter equiparado o véu islâmico ao crucifixo. Rau dizia que o uso do véu não deve ser permitido nos serviços públicos, sobretudo nas escolas. Destacou, porém que também não é aceitável que haja crucifixos nessas mesmas instituições, algo que ainda ocorre em alguns lugares da católica Baviera. Ratzinger respondeu dizendo que ele não "proibiria nenhuma mulher muçulmana de usar o véu", mas acrescentou: "Menos ainda deixamos a cruz ser proibida como símbolo público de uma cultura de reconciliação".



A discussão européia chega ao Brasil. Ateu e laico, defensor de um país multi-religioso, manifesto meu apoio ao juiz gaúcho





(*) O autor é escritor e jornalista.



cristaldo.blogspot - janercr@terra.com.br









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