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Infanto_Juvenil-->2144 - Um Novo Mundo -- 06/05/2012 - 23:47 (Berenaldo Ferreira e Séia Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
2144


UM NOVO

MUNDO



BERENALDO FERREIRA







Personagens centrais:




Personagens secundários:

















SINOPSE
História que ultrapassa cinco gerações. Narrada por Jonas que cresce vendo sua família e seus colegas de escola sendo mortos e assassinados. Mais tarde se casa com Sara e possui dois filhos: Ítalo e Mariano Neto. Esse último foi batizado em forma de homenagear o pai Mariano Medeiros.
Seus filhos, descontentes com a atual situação política - social e econômica do país, passam a arregimentar alguns homens a fim de derrubar o atual Regime fascista e - ao longo de muitos anos - fundam uma poderosa agremiação: a ACPP - Ação de Combate do Povo para o Povo. A partir de então começam a surgir vários confrontos com o governo marcados com muito sangue inclusive com os assassinatos do próprio irmão Mariano Neto e o de sua mãe Sara, já muito idosa. Após vários enfrentamentos, em meio a seqüestros por parte dos poderosos e a tantos assassinatos, Ítalo, por fim, começa a sentir a proximidade de vitória quando também é morto por alguns gananciosos remanescentes do antigo regime autoritário.
Finalmente - quando todos são subjugados, rendidos pela Grande Ação do Povo - os filhos de Ítalo, Murilo e Juliana, tomam posse em seu lugar e a partir daí - em parceria de antigos companheiros de luta - Zacarias, Ribas e Lindinalva, mulher de Murilo ( neto de Jonas ) formam a maravilhosa Era Muriliana. Um novo mundo, um novo lugar justo e digno de se viver é anunciado onde todos passam a viver com respeito e dignidade. Mas, algo mais surpreendente, muito mais maravilhoso ainda está por vir!





PRÓLOGO

Não posso acreditar que eles vão nos parar! Parece que não vai ter jeito desta vez. Bom, de qualquer forma estamos com tudo o que eles quiserem, eu acho! - era exatamente o que pensava naquele momento de tamanha angústia pelo qual estava passando.
Aqueles holofotes de intensas cores avermelhadas pareciam nos cegar com estupidez e intolerância seguidos de gritos e misturados com hostilidade, forçando-nos a dar aquela insensata e grosseira freada. Apenas pediram o documento do veículo talvez pelo fato de estarem com certa pressa. Ufa, que alívio! Temia que fossem pedir a carteira de motorista mas com a rapidez na abordagem a esqueceram. Em seguida, pediram em tom ameaçador que déssemos uma rápida acelerada, fazendo parar o carro bruscamente logo um pouco mais à frente. Possivelmente testavam suas condições mecânicas e elétricas como freios e lanternas. Eram meras deduções que eu tentava formular diante daquele angustiante momento de repulsão e embaraço onde as imagens entorpecidas e febris se misturavam com aquela medonha e pavorosa circunstância indesejada por qualquer ser. Naquele mesmo momento, parecendo que tudo estivesse terminado e já considerando libertos daquela aflição, por sobressalto fomos traídos por vários estampidos de armas de fogo vindo de vários lados sem discriminação ou timidez. Zuniam ao nosso redor como fogos pirotécnicos em dias ardentes e festeiros de Junho.

A noite ardia em chamas de pavor e perseguição confundindo com a fina e fria garoa que caía sem parar e fazendo contribuir para tornar aquele instante ainda mais nefasto. Os tiros soavam estrondosamente naquele pesado ar de fúria onde a gente se

via exposto e completa¬mente desprovido de qualquer manifestação de reação a nossa proteção, apesar de nada justificar o motivo para tamanha frieza e ódio em suas ações. Os mais exaltados não pareciam espécies humanas mas àquilo que freqüentemente vimos em cenas de filmes de ficção onde figuras monstruosas assumem seus lugares. Contudo, lá estávamos nós por inteiro diante daquele pavoroso cenário, involuntários e indefesos, à disposição de qualquer ataque atroz. E, todos que ali estavam se misturavam ao nosso redor movidos pelo desespero, esbarrando-se mutuante numa frenética ânsia pela busca da saída daquele local torturante como se estivessem encurralados em um beco qualquer.
Estamos agora na mira dos sórdidos bandoleiros, saqueadores e desordeiros, vivendo em uma terra onde visivelmente é constatado total falta de respeito para com¬ as pessoas. Verdadeiramente não havia nenhum compromisso decente por parte daqueles que diziam nos proteger, pois suas truculentas e desmedidas ações claramente assumiam papéis essenciais em seus indecorosos comportamentos.

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Via-me angustiado em meio a vários murmúrios quase incompreensíveis ao meu redor. Percebia vários vultos de máscaras e roupas brancas com objetos cortantes em suas mãos enquanto podia ouvir um deles dizer que o problema estava quase terminando. Indagavam entre si sobre meu estado físico e mental e aos poucos ia compreendendo que me encontrava em uma sala diferente da convencional. Começava a ficar mais lúcido, um pouco mais aliviado, e ia percebendo com um pouco mais de clareza o que se passava comigo.

Um pouco mais afastado, cabisbaixo, anterior a eles e com uma das mãos levada cautelosamente ao queixo - com ar de preocupação - notei a presença de um homem diferente, mas familiar. As únicas coisas que o faziam tornar parecido a eles eram aquele comprido avental branco todo aberto a sua frente e aquela máscara branca que cobria todo o nariz, boca e queixo, ficando visível apenas os olhos e uma acentuada calvície frontal que se alongava pela parte detrás da cabeça, formando um pequeno arco.
Logo que o avistei na tentativa de erguer os olhos, notei que ele quisera acreditar naquela minha ação e logo passou a dar pequenos passos em minha direção, tímido, e com certa comoção. Ao mesmo tempo em que ia segurando, gentil, com ambas mãos uma das minhas, quase lacrimejando, podia ouvir seus sussurros. Eram poucas palavras, mas com extrema convicção que elas eram proferidas, em tom profético, lentamente:
__ Você vai se sair bem, meu filho! Deus está com a gente. Logo você irá para casa!
Concluí então se tratar de alguém muito mais especial do que pensara. Pude compreender com algum esforço aquelas meigas palavras que muito me serviram de estímulo às quais me ajudaram a ter mais confiança, mais esperança de vida, já que somente a partir dali foi que pude perceber a gravidade da situação pela qual vinha passando naquele miserável momento. Eu tive febre alta, seguida de náuseas sucessivas e ainda sem saber de fato o que me havia acontecido.
Após ter ficado em recuperação por mais de um mês - um dos médicos - achando que eu estivesse dormindo, conversava com o ainda preocupado homem que já não era tão estranho. Eu os ouvia inerte e em silêncio sem nada dizer ou perguntar sobre o meu real estado ainda que minha vontade maior fosse sair dali, pular e sair gritando. Saber ao certo o que estava de fato se passando comigo. Ao ficarmos sozinhos, com os olhos úmidos, embaçados e a voz torpe, ele dificilmente encontrava as palavras para me dizer que teríamos dias difíceis pela frente. Senti que qualquer pergunta que o fizesse naquele instante o colocaria em mais prantos ainda. Assim, resolvi continuar naquele mesmo estado de total inércia apesar de minha aflição em querer falar.

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o toque do telefone interferiu a concentração de meu pai que assistia a um vídeo-tape de Santos e Portuguesa como quem estivesse assistindo ao vivo. Sem tirar os olhos da tela gritou para minha mãe a fim de que fosse atendê-lo, não se importando que o mesmo estivesse apenas a um pouco mais de duas braçadas. Já impaciente, no segundo tilintar deu mais um grito. Desta vez mais alto, quase aos berros. Assim que ia começar o terceiro toque não mais agüentou. Contrafeito, atendeu com voz agressiva - clássica de quem queria começar uma briga:
__ Quem é? Pode falar!
__ Por gentileza, gostaria de falar com o Sr. Mariano Medeiros da Silva?! É urgente!
Aquela soturna voz do outro lado da linha telefônica, apesar de diplomática, comedida, o deixou mais apreensivo e ofegante :
__ Quem tá falando?! (...) _ Um profundo e longo silêncio fez meu pai vacilar por alguns instantes. - Sou eu mesmo. Pode falar!
__ Aqui é do Hospital ‘Parada de Taipas’...
Antes de a mulher do outro lado concluir a informação, empalidece¬ra. Imaginara ter acontecido algum problema grave. Pensou em fração de segundos em minha avó de quase noventa anos que pela manhã tivera dado um pequeno espirro e achando que a tivessem levado para o hospital, estivesse agora querendo lhe passar alguma informação ruim sobre o seu caso. Ainda assim, tentou acalmar seu coração e passou a ouvir o que aquela pessoa do outro lado tinha de fato a dizer, esquecendo-se de que eu havia ido acampar com um grupo de amigos naquela mesma manhã:

__ É a respeito do seu filho ... Jonas Medeiros da Silva! _ agora foi um breve e assustador silêncio que tomou conta do ambiente, tornando-o sombrio e embaraçado. E a mulher insistia em relatar a notícia, agora mais ríspida, mais objetiva, sem qualquer rodeio:
__ Houve um acidente com o carro em que ele estava e o resgate o trouxe para esse hospital. Ele já está sendo atendido mas necessitamos de que o responsável venha imediata¬mente para cá - sem agüentar o peso do corpo, as pernas de meu pai fraquejaram, fazendo com que ele caísse pesadamente na poltrona. Aturdido, desligou a televisão e sem ter mais aquela força de antes apenas chamou por minha mãe, sufocado, quase sem ter forças para isso. Ela, percebendo que algo estivesse errado devido ao seu baixo e diferente tom de voz - o que não era muito comum - prontamente foi ver o que estava acontecendo.
Após ouvir a temida notícia ela lhe pedia que tivesse calma sem no entanto demonstrar qualquer tranqüilidade, pois o ambiente se tornara demais melancólico. Apressando-se, ela pediu para que ele se arrumasse a fim de que fossem imediatamente para o hospital. Minha mãe era muito natural e não se importava com essas coisas de aparência, grandeza ou luxo. Com aquela mesma saia xadrez até os calcanhares que estava usando, imaginava já estar pronta para saber o que estava se passando com seu filho. Bastava colocar uma blusa de lã, mas teria que ser num tom escuro para que combinasse com sua saia. Pronto! Já esperava andando pela sala de um lado para o outro por meu pai, demonstrando visível impaciência e achando que ele estivesse demorando demais. E, quem gritava agora era ela, o que dificilmente fazia. Gritava para ele que fosse mais ligeiro e que não tinham muito tempo a perder. A pressa em ir para o hospital era tão grande que nem ao menos ela percebia que ambos não perdiam um só minuto e iam se adiantando o mais rápido que podiam. Eram essas preocupações de mãe para com filho, ainda mais diante daquela triste circunstância.

Meu pai era mais meticuloso ao se vestir. Ainda que de forma humilde, procurava combinar suas roupas com mais critério. Tinha também suas vaidades. Mas, quem não as tinha ? A calça tergal-azul teria que combinar com alguma camisa branca ou da mesma cor, junto com a gravata preta ou cinza; o sapato preto com o cinto escuro. Mas, não naquele dia, pois a situação requeria pressa e a única coisa que fez foi calçar os sapatos e trocar a camiseta por uma mais social, permanecendo com a mesma calça preta que estava e de que tanto gostava.
Chegando ao hospital, souberam que estávamos eu e meus amigos em alta velocidade e que perdêramos o controle do carro devido a uma grande quantidade de óleo espalhado pela pista. Isto fez com que batêssemos fortemente contra um enorme caminhão que vinha em direção contrária. Mais tarde saberiam ainda que Rafael e Bruna morreram instantanea¬mente. Douglas, por graça divina, saiu quase ileso exceto com algumas escoriações nos braços. Eu fiquei em estado de coma, com fratura na coluna e também nas duas pernas. Os médicos foram implacáveis ao dizer aos meus pais sobre esse meu estado clínico. Disseram-lhes que eu sofreria uma intervenção cirúrgica e que talvez fossem necessárias outras e mais outras. Primeiro, corrigiriam a coluna e, em seguida, as pernas. Achavam que eu devesse ficar com pinos por mais de um ano e ainda corria o risco de ficar paraplégico.
Meu velho foi forte como uma rocha! O tempo todo consolava minha mãe além de dar muita força ao Douglas, já que ele ficava se lastimando do ocorrido e dizendo a todos que aqueles males sofridos por nós deveriam ter sido somente com ele. Acreditava ser o único responsável pelo acidente e isso fazia com que o seu aflito coração não o deixasse um só momento em tranqüilidade.


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Não pude participar do enterro de meus amigos além de ficar sofrendo aquelas terríveis alucinações em completo estado de delírio. Somente o que lembrava era que pouco depois do acidente eu sangrava e sentia muita dor, enquanto meus pais narravam como havia sido o velório.

As sessões de fisioterapia e psiquiatria eram semanais, consumindo pelo menos um período inteiro do dia. Com o passar do tempo e conforme ia melhorando elas passaram a ser mensais, levando por volta de uma hora, com exceção a de psiquiatria que freqüentemente ultrapassava o horário previsto e não conseguia entender por que era sempre a mais longa. Entretanto, foram nessas sessões que descobri que minhas alucinações eram decorrentes dos problemas da real e turbulenta vida por que eu e todos os seres passamos e estamos sujeitos a passar, com apenas uma diferença: a forma como os encarnarmos. Sem saber, incorporava-os no meu dia-a-dia fazendo com que se tornassem vivos, sentidos dentro de mim como se quisesse dá-lhes vida própria. E - ainda que involuntário - arraigava em meu íntimo todos os modelos de desencantos existenciais. Daí, os motivos de todos aqueles ataques inconscientes e irreais me perseguirem por onde quer que eu fosse, trazendo como conseqüência todos esses males refletidos em minha vida real. Eram as explicações oferecidas para o meu problema psicológico dadas pelo meu médico Lisandro Lacerda. O psicanalista parecia se empolgar tanto com o meu caso que tudo o que eu lhe dizia, ouvia com interesse e até mesmo com uma mistura de fascinação e desassossego, não deixando de anotar qualquer palavra como se tudo aquilo que eu lhe dissesse tivesse grande valor:

__ As pessoas deveriam ser mais humanas, menos egoístas ou hipócritas. A ganância deveria deixar de existir, mas como?!Quanto mais se tem, mais as pessoas querem ?!E aqueles pobres infelizes que mal ganham o mínimo necessário para se manterem vivos! O que fazer exceto roubar ou mesmo matar por qualquer motivo imbecil, torpe, se é que existe alguma razão para isso? Ainda porque o assassinato é em si inumano, repugnante dos seres! E o que dizer daqueles que julgam ser capazes, honestos, doadores, mas que são dentro de si egoístas, mesquinhos e intoleráveis?! Daqueles que freqüentemente aparecem em nossos vídeos querendo nos passar um lado oposto, imaculado, quando na verdade são o que são: hipócritas e exploradores de nossa boa fé?! Muitas vezes são aqueles apresentadores de programas banais de televisão como nos denominados ‘Quem quer ficar rico?; Qual é o som?; Tudo pelo poder e pelo prazer!; Câmera camuflada (brincadeiras de mau gosto e até perigosas onde procuram descobrir a infidelidade de casais, provocando conseqüentemente suas separações!); Casa dos Arteiros; Big Friend do Brasil; Noite à Dentro; Hora da Certeza?!’ E, muitos outros ... totalmente ordinários, sem ter nenhum compromisso sério ou qualquer respeito para com o explorado e miserável povo.
Pouco a pouco meu quadro ia apresentando certa melhora. Alguns meses depois - após sair do consultório acompanhado por meus pais - passando pelo comprido e cristalino corredor que levava até a porta de saída, ouvi de um grupo de médicos falar de uma tal de tese que o doutor Lisandro estava desenvolvendo baseada em um de seus pacientes. Não fora muito difícil perceber que se tratava de mim pois foram claras as palavras de um deles:
__ Ele disse que aquele garoto é muito astuto! E, que, possivelmente, toda a sua tese vai estar pronta assim que terminar o seu tratamento.
Como sabia que eu era o único garoto freqüentador daquela clínica, pelo menos naqueles horários de consulta até então não tinha visto nenhum outro menino da minha faixa de idade por ali, obviamente deduzi estarem falando sobre mim. E, mais tarde, pude entender aquela coisa de tese: todo o interesse do doutor pelas minhas falas era o de usá-las em seu curso de pós-doutorado. Precisava desenvolver seu trabalho e para isso aproveitaria o máximo que pudesse daquilo tudo que eu lhe dizia como se fosse algo novo. Mas, no fundo, eu e ele sabíamos que era mesmo inédito porque até então ninguém tinha a coragem de dizer aquilo tudo com tamanho atrevimento. Para o doutor, no entanto, era no mínimo espantoso porque em seu consultório nunca havia recebido um adolescente que já pudesse assimilar e diferenciar fatos demagogos e fúteis daqueles que realmente devessem ser úteis e de reais interesses às pessoas.



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Muitos anos mais tarde, andando pelo centro da cidade - apesar de repuxar uma das pernas - ao entrar em uma livraria, um livro me chamou a atenção. ‘O Vazio da Mente’, cujo autor de imediato o reconheci. Tratava-se de meu antigo médico, Lisandro Lacerda. Comprei-o e me surpreendi ao perceber na primeira página que o livro fora dedicado a mim. Desde então passei a ficar muito orgulhoso porque era animador saber que não estava sozinho em meio a tantos pensamentos diferentes. É extraordinário, gratificante e inspirador quando sabemos que alguém se importa e nos dá valor da maneira como realmente somos! Na orelha do livro havia uma dedicatória inteiramente destinada a mim. Palavras bonitas de agradecimentos que jamais pude imaginar um dia receber de alguém estavam ali registradas, com meu nome e tudo, naquele vistoso livro de capa preta:
Para,
Jonas Medeiros da Silva ...
Ele colocara nele, integralmente, até mesmo aqueles pensamentos conturbados que muitas vezes eu julgava inoportunos quando os dizia para si, falando de minhas aflições e de meus pesares em relação à celeuma do mundo.







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Sem saber por que ainda recordava daquela fria, molhada, mas cativante tarde de quarta-feira poucos dias antes de ocorrer o trágico acidente. Meu pai ainda estava em casa e ia nos levara para passear no centro da cidade. Naquele dia não fui para a escola, preferindo fazer companhia a eles e evidentemente desfrutar um pouco daquele passeio.
Andávamos eu, ele e minha mãe nas vizinhanças dos veneráveis e encantadores monumentos de cimento e bronze que representa¬vam os seres que fizeram história em nosso país, cujos bustos estavam expostos ali, na nata da cidade, esnobando suas antigas bravuras e audácias. Faziam refletir a imensa opulência de seus descendentes ‘forasteiros’ que, agora naquele centro nobre residiam. Após contemplarmos aquelas exuberantes recordações de semblantes acizentados, seguimos despreocu¬pados em direção à Assembléia Estadual de Deputados do Estado de São Paulo onde meu pai havia anteriormente combinado que faríamos uma pequena visita a um amigo seu de infância. Ele não podia perder aquela rara oportunidade de visitá-lo porque dificilmente tínhamos esses momentos reservados. Além do mais, não o via há mais de trinta anos e tudo o que sabia dele era que pretendia se tornara vereador há alguns anos e, que agora era deputado por um partido político de extrema direita, embora sua primeira candidatura à qual fora derrotado anteriormente tivesse sido feita através de um partido de esquerda, prometendo acabar com a corrupção, a fome e a miséria do país. Entretanto, mais tarde todos saberiam que esse único partido intitulado de ‘esquerda’ não passava de mais uma das manobras do grande, cruel e poderoso Regime.

Passamos por aquelas luxuosas e espaçosas salas personalizadas até subirmos ao terceiro andar e chegar à sala trinta e dois onde seu amigo estaria se instalado. A pesada porta de madeira escura, cor característica dos privilegiados nobres não fez qualquer ruído, apenas deslizou com um simples toque tímido de meu pai, ainda que parecesse que quem a projetou quisesse demonstrar sua força e a inacessibilidade dos intrusos. Ao entreabrir-se, pudemos avistar uma figura muito gorda virada de costas para nós e ocupando todo o assento de sua poltrona, manuseando alguma coisa qualquer a sua frente. Ficamos por alguns instantes paralisados, sem saber ao certo como proceder naquele momento: - ‘será que o Júlio engordara tanto ao ponto de ficar daquele tamanho? E se chamássemos pelo seu nome e não fosse ele quem estivesse ali? Além do mais teria que chamá - lo gritando para que nos ouvisse! Puxa, vida! Não tem nenhum sino, nenhuma campainha por aqui?!’ _ nossos pensamentos pareciam sincronizar-se e, aquela situação fez com que a fisionomia de meu pai se alterasse, delatando-o. Estava duvidoso, sem esboçar qualquer reação mas impulsionado a tomar uma atitude. Minha mãe se inquietava, decidindo também tomar parte daquela angustiante cena. Dirigindo-se ao esposo de forma vacilante e não muito certa daquilo que diria, resolveu murmurar para ele que devêssemos chamá-lo. Porém, o toque do telefone em uma outra mesa que estava vazia, a nossa frente, foi miraculoso. Bruscamente o desajeitado homem, ao se virar, surpreendeu-se com a nossa presença já dentro de seu gabinete, percebendo, então, que esquecera de acionar o alarme silencioso. Observando-nos com sobressalto e já com o telefone em uma das mãos atendendo-o, simultaneamente, perguntava quem éramos, como entramos ali e o que queríamos. Espantado com nossa presença, todas suas perguntas saíram de sua boca, embaralhadas, quase incompreensíveis. Era como se ao fazer aquilo fosse evitar qualquer desventura que pudesse ocorrer a partir daquele momento.
O grandalhão aparentava uma idade muito acima da que realmente tinha. Seus longos e lisos cabelos agrisalhados caíam por todo o ombro. O bigode tingido de preto misturava com as costeletas brancas numa estranha mistura alvinegra e, suas trêmulas e nervosas perguntas o faziam deixar asfixiado por trás delas. Evidentemente não nos reconhecera. Nem meu pai parecia aprová-lo. Definitivamente não era ele a quem procurava! Seu amigo não estava ali e certamente estávamos em alguma sala errada.

Após o rápido atendimento ao telefone, desligando-o, nós, agora já estando bem próximos a ele - pudemos confirmar verdadeiramente que se tratava de uma outra pessoa. Não era o Júlio - amigo de infância de meu pai - mas o deputado Genésio Alves. Sua identificação estava exposta em cima daquela espalhafatosa mesa em que ele se encontrava e - em meio a essas nossas conclusões secretas - o homem continuava a nos indagar, agora com os olhos num incessante revirar de sobrancelhas. Parecia até que o diabo tinha algum problema nos glóbulos visuais! Mas, não! Eram apenas estranhos e repentinos chiliques nervosos - raros de se encontrar - mas que, por vezes, se encontra. Antes mesmo de ele retomar a sua fala, meu pai, desconcertado, foi logo se desculpando e perguntando onde ficava o gabinete do deputado Júlio Dias. Parecendo mais conformado com a nossa presença ali no interior, no entanto, sem querer se convencer da fragilidade que aquele local oferecia, insistia em querer saber quem éramos. Mas, dessa vez, ao ouvir aquele nome ficara visivelmente transtornado, enrubescera. E, com certo esforço, titubeante, tentou esboçar mais uma vez aquela pergunta. Aquela pergunta de quem teme algo e que não gostaria de ouvir a resposta. Aquela pergunta que a gente faz somente pelo motivo de pura conveniência natural e que todos a utilizam nessas casualidades:
__ Mas, ... quem são vocês?!
__ Perdão! Estou procurando pelo ...
Antes mesmo de meu pai terminar de lhe dizer o que queria - aquele grandalhão - extremamente desajeitado, arrumando sua larga calça, nivelando-a à sua frente e sacudindo-se de um lado para o outro em forma de pêndulo, agora, mais impaciente ainda, dirigiu-se em nossa direção, lentamente, como se tivesse puxando em seus pés uma tonelada de peso. Nervoso, ia nos informando da trágica morte que sofrera - enquanto viajava - o deputado que procurávamos, ao mesmo tempo em que nos conduzia até a grande porta da saída e sem qualquer cerimônia, rapidamente, fechou-a diante de nossas faces. Entretanto, meu pai e todos nós percebemos que estava faltando alguma coisa naquela história e ele certamente não se conformaria com aquela vaga notícia dada por aquele grosseiro homem que se dizia representar o povo.

Pensativos, partimos em direção à Alameda dos Maracatins, próximo ao Shopping Center de Moema. Andamos pelas avenidas, tomamos sorvetes e sentamos em uma singela praça onde alguns palhaços em nossa volta esbanjavam diversão e alegria. Mas, nada fazia tirar o amigo Júlio da memória de meu pai que freqüentemente cogitava com minha mãe sobre aquele recente e sombrio episódio por qual tínhamos acabado de passar. Indignado, resolveu que iríamos para casa, ficando evidente em suas declarações e em seu comportamento tempestivo que ainda o procuraria. Aparentemente foi um passeio bom, porém com a imprevista decepção da notícia da morte do deputado nossa inocente visita ficara abreviada diante daqueles novos fatos.
Ao chegarmos em casa imediatamente meu pai fez uma ligação para o Lima - um outro amigo seu de infância. Disse-lhe que havia procurado pelo Júlio em seu gabinete mas que o informaram de que ele havia morrido. E, o que sabiam dele por lá, na Assembléia, era apenas que fizera uma viagem para o Mato Grosso a fim de fazer demarcações de terras. Surpre¬endendo Mariano, Lima lhe contou que por volta de dois anos atrás havia visitado o amigo e que nessa ocasião almoçaram juntos. Contou ainda que naquela época Júlio estava muito entusiasmado. Desenvolvia um projeto de sua autoria e que logo seria votado em Assembléia mas que o resultado já havia sido pré-combinado entre eles do próprio partido. Aqueles envolvidos na aprovação receberiam um capital alto, e com sua parte, Júlio compraria uma suntuosa fazenda no Mato Grosso. Dizia ainda a meu pai que não tivera mais nenhuma informação dali em diante. Assim, combinaram, ambos, a fazer uma visita de condo¬lências aos pais do falecido colega de infância, num futuro próximo.



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Passou o inverno, chegou a primavera e como um sopro ela também foi cedendo lugar para o sol ardente e sufocante do verão. A evolução do meu quadro clínico também acompanhava as estações do ano. Foi quase um ano e meio sem andar, sem ter vida própria, dependendo dos meus ‘velhos’para fazer absolutamente tudo. Com as férias terminadas meu pai pode retomar enfim ao trabalho de vigia de uma pequena empresa. Desde então, ele não mais se sentara à frente da televisão para assistir às partidas de futebol que eram suas grandes paixões.
Ficar doente tinha lá suas vantagens!...Todas as atenções eram voltadas somente para mim, principalmente, as das garotas... eram muito gentis! Ariane então ... nossa! Não consigo nem falar. Era uma garota especial! Sempre tive uma atração mais forte por ela mas nunca consegui trocar muitas palavras consigo. Desta vez era diferente. Ela se fazia presente todos os dias em minha casa. Fazia massagens em minhas pernas e me chamava de ...‘gatinho’, além de empur¬rar minha cadeira de rodas e me levar para tomar banho de sol. Quando ela não podia aparecer me mandava beijos através de alguns colegas e dizia estar com saudades.

Alguns dias ficávamos na pracinha e, em um deles, pegou um graveto, desenhou no chão um coração e, dentro, escreveu nossos nomes, Jonas e Aninha. Porém eu não me atrevia em lhe perguntar se estávamos namorando ou se ‘ficando’, temia de a resposta ser negativa. Não era de falar muito e quando assim fazia ninguém conseguia fazê-la parar. Contava-me de um dia, muito tempo atrás, ainda uma ‘menininha’ de sete para oito anos de idade, quando saiu com algumas colegas para catar frutas em um enorme terreno particu¬lar. Lá havia um velho vigia de aspecto assustador - devia ter uns trinta e cinco - mas para ela - como era muito pequena - ele devia ter uns setenta anos. Além do mais - para somar-se a essa sua impressão - ainda possuía um enorme cavanhaque, fazendo-o parecer mais velho ainda. E nunca era visto sem aquela enorme espingarda nas mãos pronto para atirar balas de sal nos intrusos que sempre apareciam por lá. Suas duas amiguinhas a esperavam embaixo da árvore enquanto ela se esgueirava em um fino galho de goiabeira tentando alcançar uma enorme e cobiçada fruta, achando que ele pudesse suportar seu peso, - não era gorda mas tinha um corpo bem cheinho, daqueles que se enche os olhos e deixa a boca cheia de água. Era bem avantajado! - e, eufórica, ia me contando:
__ Foi quando, de repente, ouvi um forte estalo! Na verdade foram dois vibrantes ruídos simultâneos: o primeiro, foi o de um tiro seco que passou bem perto da minha cabeça; o segundo ... o do galho. Ele se quebrou e fui parar no chão com o rosto indo direto a uma enorme poça de lama barrenta. O velho se aproximava rápido em nossa direção, atirando e gritando:
__ Desta vez vocês não vão escapar! - Jonas, vou ti falar. Ele não me acertou. Nem a mim e nem às minhas colegas daquela vez. Mas cheguei em casa toda suja. O corpo doía todo. Doía, doía muito! Parecia que não ia mais parar aquela dor infernal. E ainda sem pegar aquela maldita goiaba. Depois disso, nunca mais eu quis saber de roubar goiaba nenhuma. Mas ... por outro lado, confesso! Já estava cansada de tanto fugir daquele velho. Não via mais graça aquela brincadeira! É, a gente achava tudo aquilo muito divertido. Pular a cerca, subi nas árvores à procura de frutas, fugir daquele homem ... era tudo muito gostoso!
Aninha tinha os cabelos ruivos, de fogo, esvoaçados. Estavam constantemente desali¬nhados. De seios avantajados, voluptuosos, destacando-se das outras garotas. Estava sempre tentando escondê-los, talvez para deixar os gulosos rapazes ainda mais assanhados. Quando ia para a escola colocava os cadernos em sua frente e se agarrava a eles como se fossem um verdadeiro escudo, protegendo-os dos olhares curiosos e ávidos dos garotos. Seu corpo parecia ter sido esculpido pelo melhor dos artistas. Era uma garota monumental! Os olhos castanhos claros e a boca pequena simplesmente harmonizavam com o conjunto todo de sua beleza, que era única, singular.

Certa vez, foi com muita surpresa que soube por ela enquanto massageava meus pés as duas coisas que mais odiava em si: a primeira era exatamente os seus pés. Com desprezo dizia que além de muito pequenos eram gordos e tinham os dedos desproporcionalmente pequenos. Evidentemente achei aquilo tudo um absurdo! Seus pés eram lindos! A segunda coisa era o seu nome, ela o detestava. Desde quando ainda era uma garotinha toda cheia de personalidade exigia ser chamada de Aninha, não querendo que ninguém a chamasse de Ariane. Primei¬ramente, até se acostumar, era Ariane e Aninha que todos a chamavam ao mesmo tempo a fim de não a contrariar: - Ariane, Aninha, vem aqui! Era Ariane daqui, Aninha dali. Ariane, Aninha, vem aqui! Eram tantos Arianes e Aninhas pronunciados juntos que, por fim, acabou ficando mesmo, Aninha.
Mal podia conversar com qualquer outra garota e ela ficava muito furiosa. Ficava de cara feia e não mais queria conversar comigo. Mas isto era coisa passageira e contribuía apenas para me mostrar que também possuía o mesmo tipo de sentimento que eu tinha por ela. As garotas são mesmo estranhas! Atiram-se para os ‘caras’ e ao mesmo tempo sentem ciúmes quando conversamos com as outras meninas. No entanto, nós não podemos ter os mesmos sentimentos, porque se assim fizermos, dizem que estamos tolhendo a sua liberdade. Que liberdade é essa?! Sempre ouvi de minhas tias e professoras também falarem a respeito desta tal de liberdade. Clamavam por independência quando mais o que faziam nos finais de semana era irem com as amigas ao ‘forró ’, muitas vezes deixando a família, o marido em casa. Será que toda essa súplica por emancipação feminina se resume em ir ‘ralar o bucho’, como elas mesmas diziam? Que estranha liberdade!


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Faltavam apenas alguns meses para a solenidade da entrega dos diplomas ¬ do ensino médio. Possivelmente eu estaria lá pois todos os bimestres ou meu pai ou minha mãe me levavam até o colégio a fim de prestar as devidas provas. Quando não podiam, a própria Aninha, animada, era quem prontamente se dispunha a fazer isso, além de ao longo dos bimestres ter me deixado a par de todos os conteúdos.
Os mais freqüentes amigos que me visitavam eram ela e o Douglas, que se esquivava sempre quando lhe citavam a respeito daquele fatal acidente. Ele se tornara - a partir dali - excessivamente introspectivo, vivendo um mundo só seu, tornando-se de certo modo egocêntrico. Por outro lado, desenvolvera em si uma certa atração a tal ponto que os outros se sentiam induzidos a se aproximar mais de si. Sem dúvida, passara a ser uma pessoa especial! Peculiar em seu mundo apenas. Involuntariamente estava vivendo o lado verdadeiro do ser humano - ainda que perverso - sem duplicidade e sem artifícios que servem somente para disfarçar o lado cruel da vida. Talvez pelo motivo de se tornar aquilo que poucos ou quase ninguém conseguia ser, atraía para si a atenção de muitos. E, para se tornar dessa forma, parece que é necessário ser diferente. Mas, caso todos decidam se tornar diferentes, a vida em si pode ser muito tediosa. Seria o mesmo que viver sem ter nenhuma predileção, sem poder alterar suas opções, suas vontades. Realmente seria demais enfadonha nossas vidas! Além dos dois que me visitavam, estavam também na lista o Flávio com sua namorada Cristina. Suas visitas não eram muito freqüentes talvez pelo fato de meu contato com eles ser resumido apenas no grupo de trabalhos escolares.

Havia na escola os inseparáveis ‘famosos do pedaço’ que era o quarteto formado por mim, pelo Douglas e pelos já falecidos Rafael e Bruna. Passamos a ser conhecidos como ‘Os Insaciáveis’ devido ao estado voraz de conhecimento, da intensa procura pelo saber. Sempre éramos vistos na biblioteca da escola, ora lendo os clássicos da literatura ora folheando principalmente velhos jornais. Evidentemente, além de aproveitar de vez em quando a sobriedade e discrição que o local oferecia, também folheávamos revistas de mulheres peladas. Sem nunca desconfiarem essa nossa façanha, julgavam-nos como uma espécie de ‘elite do conhecimento’ - assim como eram vistos os membros da Casa da Malta*. Os assuntos mais comentados e discutidos agora eram unicamente a respeito da formatura que estava prestes a acontecer. Eu não me empolgava muito e a alegria maior que sentia - embora ainda coberto por um perverso manto de tristeza - era saber que algum dia voltaria a andar normalmente. Infeliz dona Zélia! Disfarçava a tristeza que sentia em me ver naquela situação e muitas vezes eu a via chorando e sendo consolada por meu pai que lhe transmitia um falso otimismo. Pois, dizia a ela que logo tudo passaria e que ficaria bem, ao passo que nem mesmo ele acreditava naquilo que estava dizendo. Ela sempre nutria o sonho de ser a madrinha de formatura do seu ‘filhão’, como me chamava esporadicamente. Não que eu tivesse altura e corpo exagerado, de proporção grande, super desenvolvido. Não! Definitivamente assim não o era. Mas pela simples meiguice de mãe para com filho. E - com um ar forçado de felicidade - indagava a ele:
__ E agora meu velho? Como vou entrar com ele? Vou empurrando a cadeira ou entro segurando a mão do filhão? E você, vem atrás empurrando também? Como vai ser? - essas apertadas indagações eram feitas entre soluços e desenganos, demonstrando as incertezas que meus pais sentiam com relação a minha paraplegia. Quanto a mim, na próxima consulta médica perguntaria novamente sobre minhas reais condições de voltar a andar. Aquela demora já estava se tornando demais angustiante e infinitamente incômoda apesar de sentir uma razoável melhora. Mas o doutor Lisandro insistentemente nos dizia - com um leve sotaque baiano - que tivéssemos um pouco mais de paciência e que tudo estaria por fim acabado e dado certo.

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*Casa da Malta: lugar onde antigamente os poetas e os escritores se reuniam.

De um lado - eufórica e orgulhosa em ver o filho se formando - minha mãe acompanha¬va; do outro - sempre muito carinhosa - Aninha também estava perto de mim. Meu pai empurrava a cadeira de rodas enquanto Douglas, Flávio e Cristina já estavam conversando entre si no grande anfiteatro da escola aguardando o início da celebração, além de um enorme número de pessoas, convidados e formandos que também ali já estavam. Apesar de as condições em que me encontrava, a noite fora muito emocio¬nante. Foi feita uma bela homenagem para mim - pelo corpo docente - pelo fato de eu não ter desistido nem da vida e nem da escola. O orador principal foi o professor de Educação Física Eduardão. Tinha esse apelido devido ao seu grande porte físico, musculoso e bem distribuído, fazendo com que adquiríssemos mais respeito e admiração por ele. Apesar de possuir esse avantajado físico era uma figura dócil e cativante. Nossa jovem diretora Da. Marli, muito emotiva, destinou os quinze minutos finais da cerimônia à memória dos ex-estudantes Rafael e Bruna, os quais pareciam estar ali presentes entre nós, observando-nos. Pois, toda vez que seus nomes eram pronunciados, um dolorido e arrepiante calafrio se espalhava por todos os nossos corpos. Era como se eles quisessem estar ali presentes entre nós recebendo aquelas saudações, aqueles efusivos aplausos.
A formatura foi breve. Praticamente participei dela somente para buscar o diploma e satisfazer a vontade de minha mãe. O que mais me confortava era o fato de saber que conseguira vencer mais uma difícil etapa da vida porque vivíamos em um lugar onde poucas eram as pessoas que tinham as mesmas oportunidades.





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Por diversas vezes todos insistiam que o Douglas devesse sepultar de vez aquele seu sentimento de culpa ainda presente em sua alma. Não conseguia tirar de sua lembrança aquela horrorosa cena por qual passamos. Ainda na formatura sempre lhe vinha à mente a imagem de Bruna ensangüentada, desfalecida, caída pouco mais de dois metros do carro tombado, virado com dois pneus para o alto e Rafael debruçado sobre o banco, jorrando sangue pela boca e pelo nariz. Uma de minhas pernas, presa entre os dois bancos dianteiros, além de me chocar violentamente e várias vezes contra uma das janelas do veículo, fraturando a coluna. Somente não fui arremessado para fora do veículo devido ao cinto de segurança que me prendia forte. Inexplicavelmente ele conseguira se soltar, salvando-se sem sofrer quase nada. Prevendo a desgraça que inevitavelmente iria acontecer conseguira pular pela porta do motorista com o carro ainda em movimento. São essas coisas do destino! Quem sabe, talvez fosse qualquer um de nós que tivesse de se salvar naquele momento! Um teria que sair em melhores condições físicas dali e, consciente, para que pudesse também salvar o outro em tempo já que logo após aquela calamidade, tão rapidamente ele me ajudara a sair do interior do carro, enquanto o fogo começava a se propagar e a tomar uma proporção de inigualável extensão. Por muita sorte escapei e graças a ele. Apesar de aquele terrível acidente já ter sido enterrado, continuava fazendo parte de nosso passado e ele não se conformava. Ainda se sentia culpado daquilo tudo porque era ele quem estava condu¬zindo aquele velho Chevette de seu pai. Este sentimento de culpa era bem visível pois ele se afastava toda vez que alguém tocava naquele assunto. Em algumas vezes chegava a ficar tão abatido que procurava o isolamento de seu quarto, permanecendo lá por vários dias de confinamento.
Voltamos todos juntos, descontraídos, apesar de uma acentuada melancolia presente em nós. Sabíamos que a partir dali cada um teria que seguir seus próprios destinos, ‘batalhar ’suas próprias vidas.

Eu e Aninha havíamos conseguido as melhores notas no vestibular da Universidade Estadual de São Paulo e aguardávamos com muita expectativa o início das aulas nos cursos de agronomia e arquitetura, respectivamente. Mais tarde, ela faria inscrição para fazer intercâmbio cultural na Itália e pouco antes de terminar o curso seria chamada para a entrevista. Apesar de mais de cem candidatos a disputar aquela concorrida bolsa, somente três seriam escolhidos entre os vinte finalistas. A entrevista final muito lhe favorecera. Era muito desenvolta e decidida naquilo que queria, o que lhe propiciou ficar entre aquelas três únicas vagas oferecidas. Certamen¬te ficara muito feliz. Era o que mais queria e sem vacilar não perdeu tempo, estaria pronta para viajar assim que concluísse o curso de arquitetura. Sabia que - além de adquirir mais uma profissão aprendendo outras línguas - faria contato com muitas pessoas de vários países, favorecendo e ampliando assim seu campo de atuação profissional. Dessa forma, estava resolvida que assim que concluísse o curso viajaria, prometendo que sempre iria me escrever.
Passaram quatro anos e tudo o que possuía dela eram somente algumas cartas já amassadas, lidas e relidas com muita lembrança e saudade. São aquelas coisas inexplicáveis que nos acontecem. Quando amamos ou temos uma amizade muito forte por alguém, a tendência é acharmos que esse sentimento jamais termine, que vai durar sempre. Porém, quando o destino nos separa por razões que somente ele pode saber, a distância e o próprio passar do tempo faz - na maioria das vezes - com que percamos e esqueçamos todos aqueles valores sublimes antes alimentados em nossas almas.

Ainda me apoiava por uma bengala e o tempo ia passando tão rápido que mal percebemos que eu já estava andando apesar de repuxar um pouco a perna esquerda. Contudo, as pessoas que me conheciam nem percebiam tal desigualdade e me tratavam com a mesma naturalidade de antigamente, o que não acontecia com alguns estranhos. Quando me viam arrastando uma perna - pelos seus olhares curiosos e cheios de dissimulação em seus gestos - percebia que achavam que, ou eu fosse uma espécie anormal ou que eu devesse ter tido mais cuidado na vida. Dessa forma, tiravam conclusões precipitadas, infundadas, acreditando estarem corretos em suas impressões. Era uma espécie de demência coletiva involuntária. Ou, quem sabe, até muito consciente?!
Flávio e Cristina haviam se casado há dois anos e viviam não muito longe dali. Já estavam trabalhando juntos em seu próprio escritório de advocacia e iam conseguindo, aos poucos, edificar seu campo de atuação de modo invejável. Douglas partiu para as atividades esportivas após ter passado por diversas dificuldades financeiras. Abriu uma pequena academia de musculação no centro da cidade e aos poucos foi incluindo algumas artes marciais, como o Judô e o Jet Kune Do*, sendo ele o próprio instrutor neste último modelo de luta. Seu negócio se expandiu tanto que fora obrigado a abrir mais duas filiais nas proximidades. De instrutor e de um modesto proprietário de um pequeno salão de ginástica, passou a ser um considerável empresário no mundo dos esportes. Por conseguinte, graças a sua determinação e perseverança não demorou e também passou a ter um largo prestígio social. Ocasionalmente ele me fazia uma visita estacionando na pracinha e em frente de casa aquele seu Hiundae* verde-musgo com um saliente óculos pretos nos olhos, escondendo-os, o que lhe dava um certo charme. Não quisera se casar, preferindo as variadas aventuras amorosas que constantemente se envolvia, sem ter qualquer compromisso mais sério. Ora aparecia com uma mulher ora com outra. Jamais se prendia a alguém por muito tempo, pelo menos essa era a sua opção. Achava que as mulheres só queriam seu dinheiro, seu carro, suas propriedades. Quanto as suas inquietações psíquicas de outrora, conseguira superá-las graças aos esforços emprega¬dos com total dedicação ao Jet Kune Do recomendado pelo professor Eduardão, o qual sempre fora muito mais do que um professor. Fora um grande e verdadeiro amigo de todos nós.
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*Jet Kune Do: modelo de arte marcial inspirado no Kung Fu. Criado por Bruce Lee na década de70.
* Hiundae: marca de um veículo do final dos anos 90.


O céu se fechava anunciando uma tempestade que estava por vir. Recordava aquele outro dia muito nublado, acinzentado, de dar arrepios - Ariane acabava de sair de casa mais cedo do que de costume porque as negras e pesadas nuvens denunciavam cair um forte temporal que parecia ficar cada vez mais próximo. Assim, havíamos¬ combinado que não iríamos à faculdade naquele dia. Minha mãe me acomodava no sofá enquanto meu pai - ainda a contragosto - ligava a tevê para assistir ao vídeo-tape de Santos e Palmeiras, parecendo não ter outra coisa melhor. Foi nesse momento que parou um carro em frente ao portão de casa, não dando bem para distingüir suas características com muitos detalhes. O escuro da tardinha de sexta-feira ficava mais escuro ainda ao encontrar-se com raios, relâmpagos e trovoadas. Começava por fim a cair fortes e grossos pingos de chuva, enquanto a porta do motoris¬ta começava a abrir lentamente e um enorme guarda-chuva preto se lançava ao ar com tremendo impacto contra a torrente de água que caía sem dó, fazendo somente agora definir uma figura sinistra¬. A passos largos - muito agitado - o homem se aproximava de nosso portão. Já bem próximo, por fim, meu pai pôde reconhecê-lo, fazendo-o entrar. Era o seu colega de infância, o tal do Lima.
Eu olhava para a televisão e ao mesmo tempo prestava atenção na conversa dos dois enquanto minha mãe preparava um café forte. Pude perceber, evidentemente, que a prosa girava em torno do falecido colega Júlio Dias. Lima contava ter estado recentemente na casa de seus pais e preferiu contar pessoalmente ao meu pai dos novos detalhes descobertos. Tudo aquilo fez com que ele se surpreendesse muito. Aquela sua inesperada visita naquele dia tão inoportuno e desavisado, de surpresa, realmente o deixara muito inquieto. Desculpando-se, dizia a meu pai que confirmara tudo aquilo que lhe havia dito sobre a sua morte¬. Em conversa com seus pais - Lima ia contando detalhadamente sobre o que tinha conversado com os pais de Júlio e, meu pai, sobressaltado, o ouvia em profunda consternação¬:

- Soube que o Júlio - durante uma viagem de negócios - morreu de ataque cardíaco dentro do avião que o transportava para o Mato Grosso. Seus pais deixaram claro que a dor era tanta que nem queriam falar muito a respeito do caso.
Incrédulo, meu pai ouvia agora mais atento e cada vez mais se convencia de que alguma coisa não estava certo naquilo. Isto ele ainda iria descobrir custasse o que custasse, levasse o tempo que fosse, estava resoluto! Achava que era uma questão de honra, de respeito à amizade de infância. Todavia, ainda percebendo que nem mesmo o amigo havia acreditado naquela história que lhe fora contada, percebia que ele, o Lima, permanecia um tanto indiferente com o caso, o que era de se esperar e, não se envolveria. Sabia que ele estava infiltrado em uma seita religiosa - dessas em que muitos se deixam ser levados pelas promessas de vida eterna pós-morte em algum paraíso. E, onde dizem que lá não existirá mais morte e nem mais lágrimas e que todas essas coisas são apenas desse nosso mundo - certamente o amigo Lima não faria parte daquela arrojada ação de Mariano. Não faria parte daquele ousado plano em querer descobrir toda verdadeira intriga em torno do caso Júlio. Sabia ainda que ele tinha um curioso cargo em sua Igreja e percebia que ele não o poria em perigo. Era superintendente dentro dela e tinha uma grandiosa fé nos ensinamentos religiosos os quais diziam respeito - dentre outras coisas - à obtenção de vida em abundância, de prosperidade, das farturas e dos prazeres materiais enquanto ainda seres vivos aqui na terra. Além do mais, pregava o amor e a brandura entre as pessoas acima de qualquer coisa. Dessa forma, sua fé era tão evidente que fizera meu pai perder qualquer esperança de poder contar com sua ajuda naquela arrojada obsessão que era alimentada cada vez mais que ouvia falar a respeito do falecido amigo Júlio.

Aquela conversa toda me deixou impressionado ao ponto de não conseguir dormir aquela noite. Atravessei a madrugada inteira em claro. Tamanha e curiosa era a inquietude que tomava conta de mim! Ele também não dormira bem, nem naquela e nem em algumas outras noites seguintes, pois a luz de seu escritório permanecera acesa por longos períodos naquelas madrugadas, significando que ele estivera ali tentando encontrar alguma resposta. No dia seguinte eu quis tomar conhecimento do caso mas meu pai nada me contou, dizendo-me que aquilo era assunto somente seu. Isso somente vinha para confirmar todas as minhas suspeitas. Naturalmente ele iria colocar em prática seus longos anos de experiência militar para descobrir o que estava por trás daquela história ‘mal contada’, daquela história inaceitável. Em algumas dessas noites, via o amigo de meu pai em agonia e em desespero caindo de um despenhadeiro e gritando por socorro. Ninguém o ajudava, embora era visto por todos caindo em uma ribanceira. Seus gritos ecoavam muito forte nos montes mais próximos e eram abafados nos mais longínquos, até sumir por completo, sua minúscula figura, a distância. E, bem distante, ia desaparecendo qualquer vestígio seu no infinito. Enquanto isso, muitas pessoas apareciam no píncaro do precipício apontando somente suas cabeças para dentro daquele íngreme barranco, sem haver nenhum remorso, como que satisfeitas. Seus rostos eram disformes, ‘quasímodos ’, de tamanhos descomunais. Assistiam passivas com tremendo tom de satisfação em ver aquela horrível cena vivida pela pobre e infeliz criatura amiga de meu pai, caindo, caindo. Outras vezes o via sendo empurrado de um avião, nas alturas, pela tripulação alvoroçada. Mas, relutava e se gladiava furiosamente até que, por enfim, era vencido pelo cansaço e finalmente empurrado para a vasta profundidade. Rapidamente ia sumindo no imenso azul, misturando-se às brancas e escuras nuvens. Somente um pequeno ponto preto se formava já distante do avião, perdido na vastidão azulada. E tudo o que se ouvia eram apenas alguns ecos distantes, surdos, abafados pelo grandioso espaço celeste.
Consecutivas madrugadas de inquietação vieram e novamente meu pai ficava acordado diante da perturbadora e irritante insônia, perseguindo e envolvendo-o nas mais angustiantes e indesejáveis recordações, desejando jamais tê-las. Desde aquela desagradável descoberta a respeito do amigo morto, suas alucinações se misturavam com fatos reais e distantes lembranças, ficando, às vezes, inevitáveis suas distinções entre o real e o fictício. Ora via o amigo em desespero sendo estrangulado e ocultado seu corpo em um matagal, ora o via sendo arrastado para a masmorra em tormento e agonia. Outras vezes via uma pessoa enigmática - talvez ele mesmo - preso em um

navio em alto mar. Castigo este que era imposto pelo governo militar a todo aquele que simpatizasse com a ‘rebeldia’ manifestada pelos jovens de um remoto passado da história do país. Todos aqueles que aderissem à revolta seriam considerados subversivos, criminosos e traidores em potencial do Governo. Na época - como ele era simpatizante do movimento - ficara confinado um ano e meio sem ter qualquer salário ou promoção, saindo do exílio somente anos mais tarde quando seria assinado a anistia pelo último dos generais-presidentes. Aos vinte e sete anos de serviços prestados ao governo meu pai estava na iminência de se reformar mas seu tempo fora estancado durante aquele episódio e sua conversão saíra somente anos mais tarde, após o tão aguardado indulto.














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Aquele parecia ser o momento de meu pai agir. Agiria sozinho! Era o que indicava acontecer naquela gelada tarde de quinta-feira. Incrível minhas lembranças! Parecia que me vinha recordações somente acontecidos em tempos revoltos.
Nem mesmo as pesadas nuvens que anunciavam cair trazendo uma forte tempestade e que prometiam não poupar nenhuma alma exposta ao seu furor, não o impediriam desta vez. Estava finalmente determinado em seu agora aflitivo semblante. O céu parecia pertencer apenas aos grandiosos, inatingíveis e misteriosos espíritos. Nenhum ser parecia existir abaixo dele que pudesse insultar sua impetuosa e majestosa proeza. Todavia, aquela taciturna figura - ainda assim - ousaria. Parecia que nada o faria desistir daquele seu frenético desejo que agora era alimentado por uma excessiva sede de justiça.
Um capote abotoado até o pescoço e desbotado pela ação do tempo cobria toda a parte superior de seu corpo. Sua cor somente era definida devido a algumas espessas e acinzentadas bolhas que o tempo não conseguira vencê-las. Era um roupão que - apesar de não usá-lo há muitos anos - ainda mantinha um certo desejo por ele. Assim, o guardava como uma espécie de boas lembranças daqueles velhos tempos em que ainda estivera na ativa. Apesar de sua idade já um pouco avançada, não se intimidava e não permitiria que ninguém o tentasse fazer suspender sua impavidez. Uma maleta avermelhada e vistosa dava o toque de simetria ao seu peculiar visual, harmonizando com sua figura ereta e resoluta. Estava pronto para partir naquele instante. Tudo estava planejado e anotado em uma pequena caderneta e as ações de meu velho se iniciavam no momento exato de sacar seus óculos escuros da gaveta. Aflitos, minha mãe e eu nos entreolhávamos temerosos com o que pudesse vir. Creio que todos aqueles que usam armas e fardas, muitas vezes travestidos de ‘defensores do povo’, sempre têm uma em casa a fim de ‘proteger’a família e meu pai não seria a exceção.

Uma semana depois de ter partido para o Mato Grosso aconteceu o pior. Sofrera uma covarde emboscada num vilarejo de Rondonópolis. Fora encontrado morto com o rosto desfigurado, irreconhecível, totalmente. Levara várias perfurações de tiros no rosto e no peito. Ao lado do seu corpo havia seu revólver com todas as balas intactas dando a impressão de que não tivera nenhuma chance de usá-lo. Fora pego de tocaia, indefeso, e a única coisa a sumir foi a sua maleta à qual jamais fora encontrada. Pouco adiante dele havia uma placa de madeira, improvisada. Estava amarrada com cipó, presa a uma estaca enfiada ao solo com uma enorme frase intrigante e ameaçadora inscrita nela, cujas letras vermelhas pertenciam ao seu próprio sangue: ‘‘ Cuidado! Quem especula demais ... acaba ficando mudo ! ’’
Três meses apenas se passaram após a tragédia ocorrida com meu pai e mais uma calamidade aconteceu em minha família. Enquanto eu estava ausente, minha mãe recebia a visita do Douglas em casa com quem conversava despreocupadamente. De repente, três homens encapuzados lhes tomaram de assalto, tirando a vida de ambos com vários disparos por todos os seus corpos e levando consigo apenas alguns objetos considerados sentimentalmente valiosos, como: algumas fotografias, quadros de família e alguns relógios de pulso e parede banhados a ouro. A cena era pavorosa! Havia sangue por todos os cantos e cômodos. Não houve tempo para qualquer reação por parte de nenhum deles. Tudo aconteceu rápido demais.
Imediatamente - ao saber daquela hedionda desgraça - me apressei para lá muito aflito. Ao chegar lá, entrei em estado de choque e desfaleci. E, a partir de então, não mais consegui voltar para casa mesmo porque não queria mais ter a recordação daquele pavoroso cenário. Assim, mais uma vez e em curto espaço de tempo, o cruel drama fizera parte de minha vida. Sem hesitar, coloquei a casa à venda na tentativa de fugir daquela triste e perversa realidade mas não obtive êxito algum. Ninguém a comprava quando tomavam conhecimento das tragédias ocorridas em minha família pois achavam que a casa pudesse atrair o mal, ou ainda, que pudesse existir fantasmas. Era o assunto mais comentado da vizinhança a partir daqueles desgraçados flagelos.

Já estava morando em uma hospedaria desde então quando fui procurado pelo Juca do ferro-velho a quem eu havia vendido a sucata do carro de meu pai logo após sua morte. Surpreendentemente, ele me apresentou uma pequena caderneta preta, dizendo tê-la encontrada atrás do encaixe do toca-fitas do carro. Dizia-me que após ler e sem entender nada decidira me entregar, achando que fosse apenas uma lembrança de família. Ao abrir a primeira página concluí que se tratava de anotações que diziam respeito à morte do deputado além de outros relatos de suas investigações. E, o fato de meu pai tê-la escondida, somente agora é que pude entender que ele pressentia o perigo que estava correndo. Isso me levou a acreditar mais ainda do que já desconfiava, que sua morte não fora sido apenas assalto como havia dito à polícia, à qual havia desprezado aquela intimadora frase deixada no local. Fiquei ainda mais atemorizado! A morte de minha mãe e a do Douglas podiam ter ligações diretas com aquilo tudo e é quase certo que o mataram por engano, achando que fosse eu. Preciso ter prudência e avaliar tudo o que meu pai deixou escrito, caso contrário, descobrirão o grande equívoco cometido e conseqüentemente virão atrás de mim.












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Por longos anos minha vida passara sem esquecer um só momento toda a desventura causada pelos exageros do cruel destino em que as pessoas são forçadas a se submeterem.

Toda vez que eu abria aquelas já amareladas folhas daquela caderneta deixada por meu pai, os delírios se sucediam tumultuados um atrás do outro, vindo-me à lembrança todos aqueles pavorosos acontecimentos. Via os corpos ensangüentados de minha mãe e do Douglas completamente esburacados por balas de grossos calibres. O sangue espalhado por toda a casa não me saía da lembrança. Minha mãe - com seu corpo ali caído, inerte - agora não mais dizia aquelas palavras carinhosas, ternas, que nunca cansara de dizê-las para mim. Sempre preocupada com a família e de uma excepcional atenção para com todos. Eu não estava mais agüentando aquela situação! Não deveria mais abrir aquela caderneta. Deveria destruí-la de vez já que as recordações que me vinham eram voltadas apenas para aquelas desgraças, seguida de profunda dor. E aquelas palavras finais de meu pai em seu manuscrito?! Deixavam-me ainda mais atormentado. Embora sabendo o que faria ele se sentir satisfeito onde quer que estivesse, muito me provocavam e me deixavam em total fragilidade. Lastimavelmente não pude honrá-lo, levar à frente aquele audacioso ato de vingança. Mesmo que eu quisesse fazer algo em prol de sua honra não poderia porque levava uma vida comum e sabia que não era nenhum salvador do mundo. Assim, relutei e não joguei fora sua caderneta, mesmo sabendo que correria o risco de passar por outras eventuais perturbações ao longo de minha vida ao abri-la. Considerava a hipótese de que algum dia - ainda que fosse num futuro distante - alguém pudesse precisar dela para desvendar todos aqueles injustificáveis e pavorosos assassinatos, pelo menos me deixava mais reconfortado pensar dessa forma. Acreditava ainda que tudo pudesse mudar e que as pessoas fossem algum dia diferentes e não o que aparentavam ser: avarentas, invejosas, assassinas. Ao mesmo tempo achava, contraditoriamente, que todas essas características fossem natas, próprias do ser, fazendo cair por terra toda a esperança de que algum dia pudéssemos viver melhor, de que verdadeiramente fôssemos diferentes. Entretanto, eram apenas inquietação de um ser atormentado que em seu profundo íntimo gostaria de que estivesse errado nessa sua última análise e, desejava que efetivamente fosse comprovada a tese defendida pelo francês Rosseau*. Porém, sabia que ainda teríamos que conviver entre pessoas ruins e ver, em poucas, muito poucas, qualquer bondade.


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Havia casado e minha mulher estava agora na iminência de dar a luz ao nosso primeiro filho - e talvez fosse único - o Ítalo. Era demais aguardado por nós e as expectativas eram as de que ele talvez fosse um dos que pertencesse a uma geração de homens do tão sonhado mundo onde todos gostariam de viver. Isto era o que nos fortalecia e nos dava cada vez mais credibilidade para que pudéssemos alimentar nosso tão ambicionado sonho: termos uma vida justa e digna de se viver aqui entre os humanos onde o que reina atualmente é somente o ódio, o desespero entre as pessoas.
Por outro lado, a medicina estava tão avançada que prometia, breve, nos oferecer até mesmo a opção de podermos escolher o sexo do bebê antes mesmo de sua concepção - além de poder determinar suas características psicológicas - contrariando assim o filósofo. Pois, e quem quisesse ter um filho à imagem de Hitler*?! Talvez fosse cruel demais pensar nessa possibilidade de vida futura! Porém,
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*Jean Jacques Rosseau: filósofo francês que defendia a tese de que todos os homens já nascem bons. *Adouph Hitler: ditador e nazista austríaco da segunda e terceira décadas do século XX. Pretendia dominar o mundo começando por exterminar milhões de judeus e negros, com a pretensão de formar uma raça - ao seu modo de ver - ariana, pura.

pensar dessa forma era inevitável. O que nos confortava, todavia, era saber que
existia ainda a possibilidade de um dia as pessoas serem gratas e felizes pelo simples fato de se viver com real importância, com dignidade, com respeito.
Mais algum tempo se passou e lá estava eu na piscina de casa juntamente com meus agora dois filhos: Ítalo e Mariano Neto em enorme distração. Brincávamos feitos crianças. Jogávamos água um no outro e pulávamos dentro dela como patos como se não vissem água há meses. Após tomarmos esse delicioso banho, eles resolveram ir para o interior de casa enquanto eu pedia a Ítalo que ligasse o som - ao mesmo tempo em que me sentava em uma confortável cadeira de assento macio e de banco reclinado, proporcionando agradável sensação de quietude. Logo em seguida, alguns pássaros, eram quinze - pude pacientemente contá-los - pousavam a minha frente, gorjeavam em exagero e batiam suas asas energicamente como se quisessem me dizer algo. Sem muito demorar naquele ritual frenético, de súbito, levantavam vôo e antes mesmo de desaparecerem no imenso azul do céu, cruzavam com outros da mesma espécie que aterrizavam rastejantes, rentes, agora bem mais perto de mim e novamente era repetida aquela extraordinária cena. Por três vezes eu os vi fazer o mesmo, tudo igual, sem compreender o que estava acontecendo. Quando o som começou a tocar, foi uma imensa perda, não os vi mais.

Era um som projetado que eu mesmo havia elaborado. A música podia ser ouvida ao longe, pois seu som chegava até as árvores mais distantes do sítio onde eu havia instalado as pequenas mas potentes caixas acústicas em quase todas as suas copas. Ouvia a música psicodélica de Frank Zappa ‘The torture never stops’, que ia ecoando por todo o vasto jardim com tamanha abstração. Entrava suave em meus ouvidos enquanto lia a coluna de um jornal de Rondonópolis: ‘A vida é um raro prazer de se viver’. Cidade esta que ironicamente fui obrigado a morar e a levar minha família devido a uma exigência da empresa onde trabalhava. Por um momento achei que desligando o som pudesse reencontrar meus ‘amiguinhos’ os quais haviam vindo das alturas, mas nunca mais os vira e nem algo parecido àquilo que vira minutos antes.
Repentinamente, percebi um casal de idade já avançada e um esbelto rapaz, por volta de vinte e cinco anos, aproximando-se, tímidos, após estacionar vagarosamente embaixo de uma macieira um vistoso e formoso carro. Os três andavam lentamente bem próximo ao estreito e comprido corredor com várias suntuosas árvores frutíferas ao seu redor o qual dava acesso à entrada de casa. Para minha surpresa e com certa dificuldade - após alguns segundos - pude reconhecer aquela idosa e elegante senhora. Tratava-se de Ariane! A inseparável ‘namoradinha’ Aninha dos velhos tempos. Ela estava radiante! Extremamente, elegante! Seus cabelos não eram mais ruivos e esvoaçados. Agora estavam perfeitamente alinhados, reluzindo com muito mais brilho, dando um toque especial à consonância de sua pele clara, além de um aspecto calmo e terno em sua expressão facial. Sem dúvida o tempo não fora muito cruel para consigo.

À princípio, ficamos desconcertados e sem ter muito assunto pois a barreira do tempo ainda estava instalada em nós, tornando-nos embaraçados, contudo, aos poucos fomos nos soltando. Não falávamos muito, no entanto pressentia que me olhava com inegável indiscrição, curiosidade. Ora fitava para minhas mãos trêmulas percebendo os fortes sinais decrépitos que nelas se alojaram, ora discretamente cruzava ligeiros olhares para os fundos sulcos que em minha face há muito se empossara. Num lento movimento vertical, analisador, desviava seu olhar piedoso que ia das minhas mãos e passava pelo rosto até chegar a minha reluzente e total calvície. Podia até mesmo penetrar em sua mais íntima consciência. Sem dúvida ela estaria pensando: ‘ele mudou mesmo. O que a vida não lhe fizera!... deve ter sofrido muito, coitado! Não vou lhe perguntar muita coisa para não se magoar. Deixarei que me fale se tiver vontade. Pobre Jonas! Olha só para as suas mãos. Sua careca, suas mãos, como pôde acontecer tamanha crueldade?!’ - embora tudo isso fosse a expressão de uma realidade dura de ser enfrentada - deveríamos aproveitar aqueles agradáveis momentos para nos felicitarmos um ao outro porque sabia que seus pensamentos eram apenas o reflexo de um olhar curioso e não correspondiam muito com suas verdadeiras intenções. Eram apenas possíveis pensamentos de um ser averiguador, inquiridor e puramente vestígios de algumas ações involuntárias, próprias das pessoas que por vezes são ... imprecisas, pérfidas em seus incontrolados pensamentos, dignas do próprio ser. Tudo aquilo eram meramente impulsos dos incontrolados humanos.
Ao perceber toda a movimentação, minha mulher Sara aparecia cuidadosa no solar da porta. Era uma mulher decidida, jovial, muito alegre e muito mais nova do que eu. Vagarosamente ia se aproximando e ao chegar perto, agora com mais entusiasmo, passou a compartilhar daquele divino momento, conhecendo por fim aquela formidável mulher de quem eu tanto falara. Aos poucos íamos nos soltando e começávamos a falar de coisas boas. Contava-lhe a respeito de meus filhos e de como fui parar ali naquele local tão distante de São Paulo. Precipitei em contar-lhe, primeiro, dos talentos que Ítalo possuía: ‘era um aficcionado por política-social!’ Quando falava a ele da morte do deputado Júlio - amigo de meu pai - queria saber de todos os detalhes possíveis. Não se cansava de analisar todas as anotações que seu avô fizera pouco antes de ter sido assassinado, pois achava que continha nelas algumas informações que pudessem ser aproveitadas no futuro, no sentido de solucionar aqueles misteriosos e incompreensíveis casos da época, guardando a caderneta tal como eu fizera. Dizia-nos com muita determinação que um dia mudaria aquilo tudo. Estava convicto do que queria ser e se esforçava cada vez mais. Leu quase todos os livros de Karl Marx, Engels, Lênin e até de Joseph Stalin.*
Contava a Aninha muito empolgado como se isso me fizesse mais feliz e satisfeito diante da vida que tanto me dilacerou. E, de certa forma, via em meus filhos alguma esperança viva de se conseguir justiça social para todos, que eles - de



*Karl Marx, Engels, Lênin e Joseph Stalin: filósofos socialistas-comunistas dos séculos XIX e XX.

alguma forma - pudessem oferecer mais oportunidades de as pessoas conseguirem viver dignamente. Dizia-lhe ainda como conseguimos ter o nosso caçula Mariano:

__ Sara não podia mais ter filhos pelo fato de ter tido uma endometriose mas queríamos ter pelo menos mais um. Fomos, assim, aconselhados a entrar num programa de adoção ou a recorrermos ao processo in-vitro. Optamos por este último porque sabíamos que a adoção levaria muito tempo já que os trâmites burocráticos da lei eram necessários. Além do mais não podíamos esperar por tanto tempo uma vez que ele corria contra nós. E, assim que conseguimos realizar esse nosso sonho, o batizamos em homenagem ao meu pai, acrescentando, evidentemente, Neto ao seu nome - complementando aquelas minhas incansáveis falas e achando que ela ainda quisesse saber como fôramos parar naquele lugar, já empolgado e sem qualquer temor, ia lhe dizendo, com muito júbilo: - esse lugar é sossegado até demais! E você sabe como é, né?! Como eu era engenheiro e trabalhava em uma empresa de grande porte, teria de ir aonde ela precisasse que eu fosse. Foi assim que nós viemos parar aqui. Somente por este motivo e para a nossa sorte! Apesar de ser onde meu pai foi assassinado, aqui é maravilhoso. O ar é fresco, não existe nenhuma forma de poluição e a criminalidade praticamente não existe. Quando ocorre algum roubo, como o de um animal de alguma fazenda que é o crime mais comum da região e, logo que é identificado o culpado, este passa a pagar exemplarmente pelo seu ‘crime’. Desde que meu pai foi morto houve somente um outro homicídio. Um fazendeiro desentendeu com um de seus empregados porque ele queria a todo custo namorar uma de suas filhas, embora não fosse correspondido por ela. Assim, foi despedido da fazenda e ameaçado a ficar longe de lá. O homem estava tão apaixonado pela filha do patrão que ao perceber que seu romance não teria nenhuma chance, passou a planejar uma emboscada contra ele. Estava decidido! Iria matar em nome do amor. Achava que matando o homem poderia ficar livre pra fazer com que seu amor fosse correspondido. E, após várias tentativas infrutíferas, conseguiu, por fim matá-lo, covardemente. Um único disparo certeiro de espingarda de caçar passarinho foi suficiente, assim que o pobre homem chegava em sua casa após ter ido à cidade fazer algumas compras para sua fazenda. O tiro foi fatal. Atingiu-o traiçoeiro na nuca. Não tardou e ele logo foi preso pelos agentes de segurança do próprio fazendeiro assassinado, conduzindo-o, em seguida, amarrado por cordas, à delegacia local. Aqui é assim mesmo! - por fim, justificava minha estada naquele longínquo lugar - Quando alguém é vítima de assassinato ou prejudicado por roubo, as próprias pessoas do local passam a ajudar a vítima.
Apesar dessa lamentável história de homicídio, Aninha achava que eu tivera muita sorte de ter ido parar naquele local, concordando dessa maneira comigo. Por sua vez ela me olhava admirada e com um sutil sotaque italiano, dizendo que por diversas vezes tentara se comunicar mas que fora muito difícil estabelecer o contato já que eu havia me mudado e não deixara com ninguém qualquer endereço. Entretanto, lhe disse que jamais a esquecera e que sabia que a reencontraria, cedo ou tarde. Tanto era que ali estava ela, graças às várias e incansáveis tentativas que eu fizera junto à reitoria da universidade onde estudávamos a fim de que seu endereço me fosse fornecido.
Estávamos mutuamente muito curiosos por nos ver e muito felizes com aquele reencontro. O ambiente propiciava um clima ameno, exalando, ainda, o suave cheiro de visita contudo foi inevitável lhe contar das mazelas pelas quais passei:
__ É quando se conhece o profundo dissabor de se viver, fazendo com que nos amarguremos e definhemos. Abstive-me de sexo por muito tempo até que me restabelecesse e encontrasse minha verdadeira paixão Sara. A mulher que sempre me acompanhou e nunca deixou um só momento de me dar toda a sua atenção. Realmente ela fora e tem sido uma verdadeira esposa! Uma grande companheira que não se encontra facilmente. Ela fez com que eu revivesse e superasse pouco a pouco aquilo que mais degenera e maltrata severamente o homem.

Impressionada, Ariane me abraçou forte mais uma vez enquanto seu corpulento esposo de uma saliente barriga, fraternalmente, concordava com seus gestos, dando carinhosamente alguns tapinhas em meus ombros em sinal de veneração. Seu filho Marcello também era muito grande. Enganei-me logo que o vi de imediato quando deduzi sua idade. Não tinha vinte e cinco mas dezenove anos. Entretanto, quem o visse e não o conhecesse teria concordado comigo naquele momento. Puxara dessa forma a genética do pai. Era um rapaz de excelente porte físico, alto e robusto. Esperto e quase ligeiro em seus pensamentos. Inegavelmente demonstrava muitas características dos pais.
Já no interior de casa relembrávamos de alguns amigos mais próximos, como do casal Flávio e Cristina. Ela não sabia muita coisa de seus colegas, na verdade, não sabia nada a respeito de nenhum de nós. Não porque assim quisesse, mas pelo fato de ter saído em viajem quase que às pressas. Não poderia perder aquela oportunidade única que a vida lhe oferecera e que tanto desejava. Assim, fui logo dizendo que eles estavam bem montados em um negócio próprio de advocacia. Entrementes, logo adiantei em lhe contar o doloroso episódio por qual eles passaram. Aninha parecia reconhecer que na história de nossas vidas, enquanto algumas pessoas têm mais desgraças para se contar e passar, existem outras que as têm menos. Não perdi tempo e imediatamente me dispus a lhe dizer dos dramáticos acontecimentos pelos quais eles passaram e que de uma forma ou de outra, nós também fizemos um dia parte deles:


__ Em alguns jornais da Capital estampavam em primeira página o seqüestro do pequeno Marquinhos, seu único filho. Na época ele tinha apenas seis anos de idade. O menino costumava ficar em casa sob os cuidados da babá mas, naquele dia, eles o levariam ao médico, passando assim o dia todo no escritório com eles. Estava com uma daquelas viroses que freqüentemente as crianças pegam naquela época do ano. Mal sabiam o que iria lhes acontecer. Dois bandidos os espreitaram na saída do expediente achando que eles fossem ricos somente pelo fato de possuírem um escritório, andar de carro do último modelo e de terem uma bonita e grande casa. Pensavam que seria um rentável negócio assaltá-los. Assim, inesperadamente, ao saírem do escritório, os bandidos os renderam, ambos com armas de fogo apontadas para suas cabeças, fazendo-os entrar no porta-malas do próprio carro do casal. Dessa forma, não apenas os levaram juntamente com o automóvel como também o garotinho. Somente foram soltá-los, mais tarde, em um lugar totalmente ermo e escuro, muito afastado. Mas o pequeno menino continuou com os marginais. Tudo isso os deixara em verdadeiro estado de desolação e, até que tudo terminasse, foi muito sofrido para os dois. Os bandidos os ameaçavam diariamente através de telefones públicos, exigindo valores que não se conseguia arranjar nem mesmo trabalhando durante o ano todo. Eram valores que parecia que nem mesmo eles faziam idéia de seu real valor. O atrevimento deles era tanto que pediram a eles que depositassem a quantia de duzentos mil reais em uma lixeira que ficava à vinte e cinco quilômetros de distância do escritório de onde trabalhavam. Foi realmente um grande exagero por parte dos bandidos! Foram feitas tantas negociações forçadas com os marginais via telefone que - após um longo e sofrido período de quase uma semana - finalmente, acabaram por fechar com eles cinqüenta mil e não aquilo que pediam. Tudo foi feito com a condição de não manterem qualquer contato com a polícia, deixando claro que se fosse feita qualquer intervenção policial jamais veriam a criança viva. Assim, foram sozinhos, à noite, rumo ao Lixão de Santo André conforme haviam combinado. Tudo estava deserto, muito escuro e, as ruas não tinham quase nenhuma claridade exceto quando os faróis dos carros que passavam em alta velocidade as iluminavam. Chegando lá, depositaram o dinheiro envolto a um saco plástico preto e por conseguinte para a felicidade deles, foram recompensados por aqueles gritos eufóricos ecoados do alto de uma pequena colina, indo de encontro a eles. Era o pequeno Marquinhos correndo, desesperadamente e, gritava por diversas vezes mamãe, papai, ... mamãe, papai, ... traumatizado Marquinhos! Devia ter passado por muitos apuros nas mãos daqueles bandidos! - eu descrevia todo aquele pavoroso acontecimento com certa dificuldade apesar de já ter passado tantos anos, sem ainda me conformar com tamanha crueldade. Ficamos, todos, encolerizados diante de tantas desgraças. Enquanto fazia aqueles infelizes relatos ela ouvia aquilo tudo com as mãos levadas ao queixo e com a boca semi - aberta, perplexa, inconformada. Fazia força a acreditar que tal episódio tivesse sido real. Pois, tudo fora muito doloroso e muito bárbaro para o casal juntamente com seu filho.


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Agora, efusivamente aproveitava do momento para lhe contar um pouco dos acontecimentos político - econômico - social do país. Incrível, incompreensível este nosso mundo! Esse nosso Brasil das três últimas décadas do século vinte. Sem dúvida ela ficaria ainda mais chocada ao saber que em nada mudou nessa inconcebível e indigna situação do país:

__ As pessoas roubam, seqüestram e até se matam por absolutamente nada. A violência está em toda parte e as grandes metrópoles são os palcos mais freqüentes para a manifestação de tamanha crueldade e ninguém está à salvo. No Rio de Janeiro, os conflitos entre gangues são tantos que as próprias autoridades muitas vezes aparecem somente após tudo já ter sido resolvido entre elas mesmas. Raras vezes existe uma ação policial eficaz e quando realmente isso acontece - é pelo fato de estar aproximando as eleições de Estado. Nunca a polícia foi tão ineficiente, sem prestígio, amoral! Muitos policiais - desde o subalterno até os das mais altas patentes, inclusive juízes - andam envolvidos em algum tipo de corrupção além de manter também conivência com traficantes, assassinos em potencial e criminosos de ‘colarinho branco’. Ganância por si só não convinha. As falcatruas deveriam também fazer parte do grande jogo. Grandes empresários e políticos constroem enormes prédios com materiais da pior qualidade possível para que assim possam melhor superfaturar, dizendo mais tarde que usaram materiais de primeira classe. Assim, vão pondo em risco a vida de centenas de famílias, pouco se importando com o sofrido e desprotegido povo que - ainda que involuntário - muitas vezes até os elegem. Pois, freqüentemente é enganado com suas armas imorais e poderosas como a grande mídia. Um exemplo típico foi o caso do deputado Laércio Meyer e de muitos outros politiqueiros inescrupulosos.
De tantas desgraças ouvidas, Aninha acreditava que em sua ausência o país havia piorado ainda mais dando-lhe, assim, mais motivos em continuar vivendo na Europa. Ela mal podia imaginar o quanto ainda viria pela frente pois quando estamos ausentes de casa é difícil saber ao certo como ela de fato se encontra. Sem perder tempo, agora muito mais empolgado - embora com certa repugnância - continuava a desabafar toda a minha insatisfação por viver nesta terra de tamanha miséria e sofrimento:













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--–país virou um verdadeiro pandemônio! O desrespeito ficara demais acentuado naqueles dias quando os idosos eram enormes problemas para a Previdência Social. Suas experiências não eram valorizadas ou sequer respeitadas. O crescente descaso que o governo tinha para com essa categoria que muito produzira fez com que as pessoas, de um modo geral, também passassem a discrimina-lá em todos os seguimentos da sociedade. Um idoso para não ‘atrapalhar’ em casa, freqüentemente, o abandonam,‘depositam-no’ em um asilo qualquer. E, uma pessoa que tivesse acima de quarenta anos já estava confinada no eterno desemprego, depreciada e rotulada velha, ignóbil no sentido mais amplo e pejorativo da palavra. À propósito, a única coisa que não era torpe eram os políticos e somente assim é que se podia justificar tantas ‘raposas velhas’ atuantes no poder há tanto tempo, como são os casos de muitos politiqueiros. Vamos começar pelo dissimulado Antônio Cláudio de Manganês: possivelmente de origem portuguesa. Governador e ‘cacique’ de um turístico Estado do Nordeste onde o povo de sua ‘tribo’ beija sua mão numa reverência obstinada e demente. Vem o administrando há três décadas com falsas promessas de progresso em todos os setores sociais e econômicos. No entanto, continua sendo um Estado com seus mais variados problemas sócio-político-econômico, de total miséria e abandono principalmente nas zonas mais afastadas de seu centro urbano; matreiro Ulíudes Magalhães, o qual virou ‘comida de camarão’ após seu jato ter caído no mar. Jamais fora encontrado seu corpo, com exceção o de sua mulher. Este também fazia parte do grande rol imundo e - caso ainda estivesse vivo - estaria, até hoje, ao lado de todos eles no Poder; o desalmado Delcino Nero. Possivelmente sua origem seja italiana. Foi desde Vereador a Ministro da Fazenda, além de ter sido o grande saqueador dos investidores da caderneta de poupança da década de oitenta cujo proprietário era ele próprio. Sabe-se lá com que dinheiro! Deu fim a mesma e provocara grandioso desfalque financeiro àqueles pobres e pequenos poupadores daquela época, deixando-os mais pobres do que eram. Passou pela Arena e foi PPS, ou seja, partido dos poderosos, de extrema direita. Antigamente - em seu tempo de banqueiro - já pertencia à classe dos políticos dominadores e já não era um homem imaturo, não muito novo. No entanto, continua ainda no Poder desavergonhadamente nos dias atuais e, evidentemente, muito mais velho ainda, com sua enorme cara de homem mau, de velho lobo perigoso. Seu nome seria mais apropriado como,‘Deu Fim A Todos’; o ex-prefeito e ex-governador da maior cidade do país, Loupa Fulam. De origem libanesa e herdeiro da Eucatexnós. Extraordinariamente sagaz, foi a verdadeira ‘fera’ em desviar a verba pública. Passou por quase todos os cargos políticos. Em suas ações insolentes sempre procurava ser prudente, na maioria das vezes obtinha êxitos. E, com perspicácia ia galgando passo a passo até conquistar mais poder. Ainda que perdesse alguma eleição parecia nunca desistir, sempre no furor de almejar o Poder mais e mais, ficando evidente essa sua demente ambição em toda época de eleição. Quando era vitorioso - assumindo o cargo - tudo e somente o que fazia era superfaturar em construções de estradas e viadutos. Construções essas que beneficiavam somente a ele próprio, aos ricos e a alguns poucos da então chamada classe-média; o maior vigarista de todos, Tonhão Freura. Provavelmente sua linhagem seja oriunda de franceses. Este também foi governador da mesma cidade. Foi um vigoroso combatente da classe proletária, em especial, da classe docente. Quando esta reivindicava pelos seus mínimos direitos que era a aquisição de salários mais justos e dignos, exigindo também melhores condições físicas para a prática de um ensino ideal, de qualidade, ele colocava toda a sua tropa de choque em ação armada com cassetetes e espadas. Atacava covardemente com bombas de efeito moral para todos os lados juntamente com a cavalaria a fim de intimidar, conter e dispersar aqueles exauridos e pacíficos manifestantes. Houve época em que a mesma classe em sua administração pública recebia menos de três salários-mínimos. Uma tremenda afronta e desonra para com esse profissional que tanto deveria ser admirado! Foi ainda Coronel da Polícia Militar. Terrível facínora! Comandou de perto toda a

ação policial que gerou o terrível massacre no Carandiru* em dois de outubro de 1992; o detestável deputado Atolino Cura Buento. Este - como muitos deles - já nasceu em berço áureo, político. Foi filho de Bandeirantes ( alguns daqueles homens de bronzes e cimento daquela região nobre por qual um dia os apreciei! ): temidos, cruéis bárbaros jamais visto em toda a história e comparados apenas aos anglo-saxões. Teve quatro mandatos políticos, ficando dezesseis anos governando o país. Esse também pertenceu ao repugnante rol dos charlatões, explorador do dinheiro público e ‘dono’ de várias aposentadorias; o diretista - passando por homem do povo - Chico Montorola. Possivelmente vem de espanhóis. Também passou por todos os cargos políticos do país e nada fez em prol do massacrado povo e, temos, ainda, Setsero Ciaquer - hipócrita e de cara grande e desavergonhada - tão cretino e sem moral como todos esses citados anteriormente. Todos eles - além de muitos outros torpes personagens políticos e vários empresários de nossa história - se passavam e ainda se passam por cordeiros em épocas de eleição, por patriotas e legítimos brasileiros quando na verdade seus antepassados eram estrangeiros, gananciosos e inescrupulosos que não temiam em puxar o gatilho no momento em que seu Poder se sentisse ameaçado. Oriundos de linhagem nobre americana, européia ou asiática, muito pouco ou quase nada se importavam com as legítimas pessoas proprietárias dessa acolhedora terra, cujo território lhes fora entregue gratuito, ingenuamente, fazendo com que eles passassem a dominá-lo de maneira perversa e vil.
Muitas vezes tínhamos a sensação que as pessoas regrediram no tempo. Voltamos a uma época em que os que possuíam mais dinheiro - ainda que de forma
ilícita - eram os únicos que deveriam merecer créditos e, quanto mais trapaceiro e corrupto fosse o político, mais adjetivos nobres conseguia obter. Estamos sendo



*Carandiru : maior presídio da América Latina localizado em São Paulo. Implodido em 2002.


comandados por verdadeiros pervertidos, assassinos e usurpadores do poder onde a truculência e o terror são o que de fato imperam!
Somos também atacados dentro de nossas próprias casas. Ainda em nossos momentos de lazer acabamos sendo atingidos por escandalosas aberrações, entrando por nossas televisões o chamado horário-político-gratuito. Ou, ainda, por ‘abundantes bailarinas’ nuas, como se não bastassem também os programas que incentivam as pancadarias. Estes são verdadeiramente os ‘exemplos’ para os jovens seguirem! É comum vermos garotinhas desde a mais tenra idade imitando as tais bailarinas usando apenas um ‘tapa sexo’ e, tornando-se muito natural vê-las com seus onze anos de idade e, em sua primeira menstruação, engravidar. Pois, são estimuladas a praticar sexo como se estivessem brincando de bonecas. Outras mais adultas e mais ‘espertas’ fazem da maternidade um meio de vida, não precisando necessariamente ter filhos com apenas homens ricos e famosos. Bastava apenas garantir uma boa ou razoável pensão-alimentícia. Fazer disto uma profissão era o que somente importava quando não sonhavam com a carreira de ‘modelo’ e atriz. Os valores éticos e morais foram todos deturpados e parece que ninguém pode comentar a respeito deles porque corre o risco de ser chamado de antiquado e até mesmo de ser processado com a alegação de estar querendo tolher o direito de livre expressão.
Aninha ouvia a tudo, estupefata! Em alguns momentos achava que tudo aquilo que lhe dizia não pudesse ser verdadeiro. Tinha seus motivos de assim pensar pois no país onde morava as coisas eram muito diferentes. Interrompia em alguns momentos dizendo que lá é que era, de fato, o local ideal de se viver com decência. Falava-nos com encanto e satisfação de como sua vida era naquele país. Contudo, não me deixava levar por ilusões, deixá-la me impressionar. Não, não deveria jamais! Tinha que encarar aquela realidade dura de onde eu morava, de onde nós morávamos. E, sem hesitar, continuava com meus relatos, ainda que cheios de amargura e de pesares:

‘Os bandidos perigosos, traficantes, assassinos e estupradores também pareciam ser os exemplos que os jovens tinham a seguir. Certamente essas influências se davam devido ao rápido enriquecimento que essas pessoas alcançavam em curto espaço de tempo, fazendo com que o sonho de qualquer menino pobre desgraçadamente fosse o de ser o chefe do tráfico de drogas. No entanto, mal se dava conta de que assim como era ‘fácil’ obter essa ascensão, sua queda também seria muito rápida, tornando o comando em contínuo rodízio perigoso. E, essa ilusão de ser o líder - à qual também originava de sua vida de total abandono e miséria - cegava-o, fazendo com que não lhe permitisse perceber que o colocava constantemente em ameaça. Pois, até se chegar a tal posto eram necessários vários confrontos fatais entre si além de não imaginar que de uma forma ou de outra seria preso ou morto precocemente. Um país sem perspectiva de futuro porque Ele estava morrendo muito cedo e, tudo graças a essas nossas chamadas autoridades ‘defensoras’ do povo brasileiro, quando, na verdade, não passavam mais do que depravadores infiltrados em um poder que transformaram em despótico, cruel e sem escrúpulo para com seus próprios ‘compatriotas’ e semelhantes.
Devido ao generalizado descaso político, a população de outros Estados com menos estruturas social e econômica é forçada a migrar para as grandes cidades na esperança de ter uma vida melhor - ainda que de uma forma desorganizada - sem nenhum critério. Isto faz com que essas infelizes pessoas vivam à margem da sociedade, aumentando, assim, cada vez mais o índice de desalojados e, conseqüentemente, facilitando o acesso à criminalidade.


Quando o povo precisa de alguma consulta médica é preciso chegar de madrugada a um posto de saúde e ter que enfrentar horas a fio uma enorme fila, até mesmo embaixo de fortes chuvas e - se desse sorte teria o atendimento - caso contrário, teria que agendar até seis meses ou mais para ser atendido. E, ainda assim quando conseguia, tinha um péssimo atendimento. Muitos médicos apenas ouviam algumas de suas queixas e rapidamente receitavam algum medicamento padrão para aquela determinada condição física ou psicológica e, mal sequer olhavam para a cara do paciente. Eles também estavam insatisfeitos para com os ‘governantes’ devido a também falta de respeito que tinham para com sua categoria. Tudo isso contribuía para que o povo nem mais desse conta de que tivera sido muito humilhado porque tal condição já fazia parte de sua vida conformista, chegando até mesmo, infelizmente, a se tornar tudo natural. A Educação praticamente existia somente para se dizer que o Estado a ‘mantinha’. O mesmo ainda é descarado e cínico para com Ela. Nesta área os detentores do Poder sempre desviam a verba destinada ao aumento de salário dos professores e conseqüentemente ao ensino de boa qualidade. Enchem seus gulosos bolsos em um tirano círculo vicioso, organizado, planejado e executado pelo arrogante Império da vergonha e da afronta. Além disso, tiram das mãos dos mestres o direito de dizer quais de seus discípulos assimilaram ou não o conteúdo do ano letivo. Tiram o poder de dizer se de fato seus alunos têm condições ou não de freqüentar a série subseqüente, forçando-os a aprová-los ainda que semi-anlfabetos para as séries seguintes. Assim, os valores éticos e morais são distorcidos mais uma vez e conseqüentemente invertidos. Os mestres passaram a ser assim como uma espécie de ... muletas de apoio de uma gigante orfandade. A transmissão de conhecimento se transformou em efêmero passatempo de jogos lúdicos, ocupando todo o tempo do ‘educando’ nessas atividades dissimuladas no convívio escolar, graças às leis patifes formuladas por falsos mestres e pedagogos. É um tremendo disparate! Esses valores morais não mais existem. Os alunos podem fazer de tudo - tanto dentro das salas de aula quanto no interior dos prédios escolares - menos estudar ou ter respeito para com os professores ou a qualquer funcionário. Falam palavras obscenas às quais muitas vezes são dirigidas aos próprios responsáveis pela Educação, provocando e pondo-os em ridículo. Tudo isso contribuindo para com que o professor ou qualquer outro funcionário ficasse em constante condição de impotência e em extremo constrangimento. Os únicos que não podiam ser constrangidos parecia ser eles, os chamados ‘menores carentes’. Enquanto isso, o Governo passa a imagem do bom samaritano vindo a público dizer cinicamente que nunca a escola pública estivera tão bem equipada e acolhedora como nos dias atuais. À distância, posa de pai generoso e preocupado para com os menos favorecidos ousando em dizer, ainda, hipócrita e desavergonhadamente que a qualidade de ensino no país está sendo uma das melhores do mundo. Entretanto, ainda há pessoas - embora poucas - que conseguem compreender que a principal intenção do Sistema é somente a de conter, custe o que custar, o índice de reprovação. Teria que alcançar uma escala de reprovação zero a fim de obter créditos junto aos órgãos financeiros internacionais, vindo a aumentar, assim, cada vez mais a dívida externa do país. No entanto, nunca esse dinheiro era visto ou distribuído em sua totalidade, de forma justa, às áreas públicas. Diante desse caótico e triste cenário, conseguiam desta maneira mostrar para o FMI* que o país estava se desenvolvendo, quando na realidade se afundava a cada dia que se passava. Em meio a esse painel imoral, indecente e antipatriótico existem milhares de formandos no ensino médio - antigo ensino colegial - que mal sabem escrever ou assinar o próprio nome. E, quando os chamados representantes do povo são questionados sobre tamanho e grave problema, desmentem com veemência tal fato, desavergonhadamente. Dizem à população através dos massivos meios de comunicação pagos que todos estão aprendendo e se alfabetizando de maneira rápida e eficaz e, quando o assunto começa a se tornar muito polemizado, simplesmente transferem a culpa aos pobres e sonhadores professores que, na verdade, também não passam de simples vítimas. São verdadeiros babás pois suas reais funções de educadores e mestres têm sido deturpadas e aos poucos vão perdendo suas reais características. São desvalorizados cada vez que entra um outro guloso no Poder. São os traidores e pseudogovernantes brasileiros que tanto violentam, oprimem e saqueiam seu próprio povo.
Desde mil e quinhentos o Brasil somente obteve em seu poder ou aqueles

*FMI: fundo monetário internacional.

que viessem de uma linhagem régia - da nobreza de Portugal - ou os imigrantes que trouxeram consigo a moeda considerada uma das mais fortes do planeta, o dólar, sobrepondo-a a nossa. Assim, vão fazendo com que a do próprio país nunca se valorize e nunca se reafirme em território nacional como definitiva moeda forte brasileira. Pois, quantas vezes não trocaram seu nome na tentativa de certamente iludir o povo?! Já passaram por nós o Cruzeiro em 1942; Cruzeiro Novo em 1967; novamente o Cruzeiro em 1970; o Cruzado em 1986; Cruzado Novo em 1989; de novo o Cruzeiro em 1990; Cruzeiro Real em 1993 e, por último, o Real em 1994 o qual vem permanecendo até os dias atuais. Todas essas moedas fizeram partes de nossa fétida economia, sem mencionar as outras anterior à década de quarenta, como foram os casos de ‘a patativa, o tostão, os vinténs e os réis’. Ufa! Qual será a próxima?!

Nos esportes ou na cultura, pouco ou nada é feito em prol do pobre, exceto quando alguma entidade filantrópica oriunda do próprio conjunto da sociedade os patrocinasse. Embora, muitas vezes, essas mesmas entidades fossem ‘pilantrópicas’. Pois, muitos artistas, jogadores de futebol, cantores e muitos outros abastados no contexto social, por vezes abrem algumas dessas associações dizendo estar ajudando o pobre quando, na verdade, o objetivo único é exclusivamente o de conseguir consideráveis deduções nos tributos do governo, como são os casos de ‘Lentinho’. Ex-cantor de um conjunto de pagode e que logo virara apresentador de televisão após o notável sucesso de seu grupo, abandonando-o; do ‘Tele Som’ e do ‘Criança Salvação’, os quais todos os anos pedem ajuda financeira do sofrido povo em rede de televisão e outros meios de comunicação, com a alegação de ajudar os mais carentes. Porém, nunca é visto de fato a superação ou qualquer alívio dos variados problemas. Pelo contrário, parece que os problemas se tornam ainda piores cada vez mais!; do falecido piloto ‘Artur Seiva’ que, apesar de ser uma das poucas fundações a ter reais compromissos sérios para com o povo carente, tendo idoneidade para tal postura, ainda que pós-morte, evidentemente, não abriria mão de também desfrutar da circunstância; das Instituições ‘CEFUNI’ e ‘DCAA’, cujas entidades, anualmente, em conivência com muitos renomados ‘artistas’ e ‘cantores’ pedem à sofrida população ‘caridades’ em espécie, com a alegação de que o total arrecadado seria destinado também às crianças. Mas, na verdade, esse mesmo dinheiro nunca é em sua totalidade destinado as mesmas; da bem-sucedida apresentadora de programas infantis, ‘Cuca’, cuja inserção no cenário artístico fora feita graças ao apoio de um dos maiores jogadores de bola do século, de fama e respeitabilidade mundial e, finalmente, a do jogador de futebol ‘Karu’ que, assim que ficou famoso não perdeu tempo em abrir uma dessas associações também para si. O rol dessas corporações oportunistas são enormes e não param de crescer sempre que uma personalidade aparece na opinião popular, simbolizando fama e opulência.

Quando se referem especificamente aos esportes, sempre associam o futebol a eles como se fosse uma modalidade esportiva, equivocadamente, fingindo não conhecer todos aqueles que verdadeiramente se encaixariam como tal. Fingem não saber diferenciar as atividades que são realmente esportivas das que meramente são diversões, em seu total e pleno valor de significado lingüístico - apesar de muitos dicionários legitimarem a afirmação de ‘esporte’ a ele, ou seja, ao futebol. Entretanto, verdadeiros esportes requerem maiores condicionamentos físicos que são os casos das artes marciais; da ginástica olímpica; do trapézio; da natação e de quase todos aqueles relacionados aos jogos olímpicos, majestosos ou não. E que requerem - muitas vezes - esforços contínuos no sentido de haver harmonização de corpo e alma. Ele deveria ser visto e encarado como uma forma de entretenimento e não ser supervalorizado ao ponto de torná-lo até mesmo mais importante do que o próprio estudo acadêmico. Fizeram dele uma paixão nacional! Um veneno nacional! Fazendo mover - de forma ordinária - milhões e milhões de reais. E - se não bastasse - indecorosamente intitulam nacional e internacionalmente um simples jogador de futebol de ‘fenômeno’. Este, abocanhando verdadeiras fortunas para si e para os seus ‘Cartolas’ os quais muitas vezes aparecem na mídia mais do que os próprios jogadores, facilitando dessa forma suas candidaturas para cargos políticos, através das grandes torcidas dos diversos clubes futebolísticos. Assim, possibilitam suas imundas manobras políticas através dos chamados ‘ esportes’.

Um jogador de futebol ganha até mesmo dois ou três milhões de reais por mês ainda que mal sabendo ler ou escrever corretamente enquanto que muitos profissionais - com formação acadêmica ou não - mal conseguem ter o mínimo do sustento para si e para suas famílias. A situação da grande maioria dos demais trabalhadores é ainda mais vexatória pois quando conseguem emprego mal ganham dois e, quando muito, três salários-mínimos. A mídia é uma verdadeira indústria canalha e podre que adultera o comportamento das pessoas, promovendo e tornando o futebol uma artificial, enganosa e intolerável fantasia profissional, inacessível a milhares de desventurados e sonhadores meninos pobres. Pois, para se chegar a um posto merecedor de reconhecimento nesse envenenado meio, é necessário ter o apoio de algum ‘padrinho’ ou, ainda, contar com a sorte de que alguém desse corrompido meio o descubra. Sem a pretensão de desprestigiá-lo, ele não passa de um excomungado ardil vicioso. Manipulado por agentes gananciosos e inescrupulosos cujos únicos interesses são o crescimento financeiro e econômico para si próprios, enquanto que outras milhares de pessoas são as poucas que deveriam ser chamadas de verdadeiros fenômenos. Pois, com tão pouco, dois ou pouco mais de três salários-mínimos conseguem sobreviver nesta terra de ninguém. Sem falar no profissionais-universitários que em muitos casos, quando exercem suas funções, mal têm o verdadeiro reconhecimento de importância e, precisa de mais um trabalho-anexo totalmente diferente do curso em que se formara a fim de se manter, como é o caso de alguns professores. Quando estes sim, reais transmissores de conhecimento e autênticos trabalhadores são os verdadeiros fenômenos. Eles são os que deveriam ser reconhecidos e lhes dado um mínimo de respeito. Deveriam ser seguidos como únicos e verdadeiros exemplos de formadores de cidadãos-críticos já que estão em si as qualidades necessárias que um país sério, digno e de respeito deve cultivar e proteger. Somente através deles é que se pode alcançar o desenvolvimento, alargar os horizontes de todos sem distinção e fazer com que se diminua com fabulosa expressividade a pobreza, a miséria e, acima de tudo, erradicar a brutal desonestidade, a libertinagem, a discriminação. E somente através deles é que uma nação se engrandece, se fortalece e se carimba nos cenários de respeitabilidade nacional e internacional.
Quanto a cultura, ora bolas a cultura! Quando ela é mencionada a tendência é sempre associá-la ao teatro o qual é acessível somente àqueles que, ou moram mais próximos ao centro da capital ou àqueles poucos que possuem mais recurso econômico e que aprenderam a apreciá-lo. Requer um certo aprendizado para assimilá-lo! Como em outros eventos culturais o mesmo acontece, tornando o povo gemente, desorganizado e cada vez mais distante daquilo que de fato deveria compartilhar de direito. Nem mesmo à diversão ele tem direito quanto mais a alguma forma de cultura nesse vergonhoso país!
Na verdade, o que se percebe é novamente esse gigantesco e vergonhoso caldeirão em que estão incluídas apenas as enraizadas pessoas oriundas de outros continentes pois através de seus sobrenomes, suas origens são denunciadas. Deixam a nós - legítimo povo brasileiro - até mesmo constrangidos quando temos que pronunciar os nossos sobrenomes Silvas face àqueles Hinder, Lipps, Ceribelle, Steinberger e tantos outros. Eles estão infiltrados tanto no contexto social quanto político, tornando-se poderosas e influentes personalidades. Assim, o acesso de algum brasileiro legítimo a esse enorme caldeirão da vergonha e da afronta é um grande sonho que parece jamais se realizar. Apesar de existirem muitos Silvas talentosos e eficientes, ficam a sua margem e sempre é dificultado o seu acesso. Freqüentemente é impedido, negado e clausurado qualquer tentativa de seu ingresso’.

Minhas mais profundas consternações por aqueles incansáveis assuntos sociais e nacionais pareciam nunca ter fim, deixando-me em completo maltrapilho. Eu era quase incapaz de me convencer de que algum dia o país pudesse melhorar, que pudéssemos de fato sermos respeitados em nossos direitos mais rudimentares que são os de resgatar a dignidade, a vida decente, de poder ser de fato cidadão brasileiro. Atordoada, Aninha juntamente com o italiano e seu filho ficaram indignados ao término de todo aquele meu extenso comentário-denunciador a respeito do país em que vivemos. Inconformada com aquela caótica situação, perguntou-me muito mais surpreendida ainda em ouvir tamanha desgraça jamais imaginada:
__ Nossa, que país é esse em que eu nasci ?! É vergonhoso tudo isto. E o povo, não faz nada ?! Assiste a tudo isso, passivamente ?
É verdade que ela já chegou a presenciar tais desmandos, contudo ainda era uma pequena menina que estava apenas tentando começar uma carreira profissional. Diante desses questionamentos rapidamente Ítalo intercedeu. Estava visivelmente transtornado! Toda vez que ia falar a respeito do país em que vivia, pareciam sair de sua boca explosões de chamas de fogo:
__ Nesse país há muitos sindicatos e agremiações que visam o interesse do povo e do trabalhador, porém há uma imensa maioria alienada que, ou fogem do país ou fazem de conta de que nada está acontecendo nele.
Sob o olhar contestador de Jonas, Ítalo se calou, dando oportunidade de fala ao Marcello que imediatamente se interessara pela conversa. Adiantando-se e aproveitando daquela sua transtornada fala, perguntou-lhe se ele fazia parte de algum sindicato e que gostaria de conhecê-lo. Ainda diante de sua resposta afirmativa, Sara se antecipou em tomar parte daquela calorosa conversa como quem quisesse defender Aninha:
__ Ô Ítalo, a senhora Ana só está de passagem e, penso que ela não pode se incluir nessa análise. Ainda porque essa triste situação social, econômica e política do país se tornara mais insuportável após essa senhora ter partido.



O italiano, por sua vez, apenas esboçava pequenos risos afirmativos como se estivesse entendendo todo aquele enredo.


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Aninha partira para a Itália acompanhada de sua família e levando consigo aquela sinistra sensação mista de ternura e desassossego. Relembramos de bons e velhos fatos ora vividos com intensa felicidade ora meramente vividos. Sabia que provavelmente não mais nos veríamos, entretanto aquela sua visita, apesar de ter sido rápida, muito satisfez a todos nós, preenchendo-nos de lucidez e reabastecendo-nos mutuamente de encanto e de belas lembranças. Sua partida levara também consigo parte de nós e não queria demonstrar o quanto ainda sentia falta daqueles tempos. No entanto, teríamos que terminar aqueles poucos dias que ainda nos restavam da melhor forma já que o temido destino nos havia reservado esta norma de vida. E, apesar de toda a crueldade dele sabíamos que éramos de certa forma privilegiados porque diferente dos demais idosos de nosso tempo, tínhamos saúde e vivíamos com certo proveito e com muita intensidade.







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Mais alguns anos se passaram, Sara e eu estamos agora a sós, sentados, observando o formidável luar cheio e sem ter muito o que dizer um ao outro. Enquanto isso, meus dois filhos, Ítalo, embora já casado - junto com Mariano Neto - estavam em viajem a São Paulo à procura de novos adeptos para o movimento político que pretendiam formar, a Ação de Combate do Povo para o Povo - a ACPP. Tornaram-se tão apaixonados pelos problemas sociais e políticos do país que - com o passar do tempo - iam se engajando cada vez mais, formando grandes tropas de seguidores. Mergulhavam na luta pela igualdade de direitos de modo imparcial e totalmente precavidos e convictos de causa.

Seus discursos eram inflamáveis e emotivos, fazendo com que todos os ouvintes ficassem empolgados, impressionados. Quando falavam da atual política que precisava ser reformada de maneira radical, de retirá-la das mãos imundas daqueles fétidos líderes que há tantos séculos estavam no poder passados de pai para filho numa sucessão imunda, desleal e, que aquela situação era terrível e desastrosa a todos pertencentes à considerada deplorável massa, fazia aflorar a emoção até mesmo do mais ousado entre eles. Cada vez que terminavam de falar choviam aplausos ardentes, assobios alucinantes e gritarias de incontida embriaguez. Contagiava a todos que estivessem por perto, fazendo sua legião aumentar mais e mais a cada discurso que faziam. Eles - mais aquele seu fiel colega Zacarias - nas praças públicas e nos salões emprestados pelos amigos, conseguiam arrastar grandes massas, fazendo com que todos ficassem atraídos e se filhassem ao novo movimento verdadeiro de oposição política que estava brotando. Agora era diferente! Finalmente parecia surgir algo transparente. Algo que viesse de encontro aos verdadeiros anseios da massacrada e abandonada população que apesar de ter ‘o direito de expressão ’ não era respeitada em seus mais ínfimos valores. Aonde quer que fossem os dois irmãos, lá estava também seu leal companheiro ‘Zaca’ - como era afetuosamente chamado por eles e pela turma de palanques. Era muito inteligente e desde menino já manifestava um certo desapreço e repúdio ao modo de como as coisas eram impostas. Algumas vezes chegava a ser demais impetuoso por coisas tanto adultas quanto mais inocentes que pudessem parecer.
Certa vez - ainda em tempo de estudante - ao discutir irritado, com muita excitação, com um de seus colegas de escola, o Thiago - filho do senhor Manuel, dono de uma pequena venda e que atendia aos fregueses - sobre o pé-de-moleque que subira de preço de forma exorbitante assim como outros produtos que também aumentaram, deixara as poucas pessoas que ali se encontravam um tanto desconcertadas. O garoto - vendo-se em meio a tal transtorno - pôs-se a defender seu pai implacavelmente e em tamanha altura e perspicácia, dizendo-lhe que era necessário aquele aumento de preços porque os impostos de seu pai também subiram. Porém, logo se perceberia que o pequeno Zacarias venceria aquela discussão usando o simples argumento de que o salário de seus pais - bem como os de todos os outros colegas - não haviam sido aumentados ainda e que aquilo era muito injusto. Pouco mais tarde, todos comentariam sobre aquele entrevero. E, aos poucos, o movimento daquele pequeno comércio ia diminuído consideravelmente. Pois, a partir de então, ninguém mais entrou no empório do senhor Manuel sob a influência de Zaca e de sua mãe que tratou de denunciá-lo as outras colegas, alegando que estavam sendo exploradas por ele, pelo ganancioso e mesquinho português. Porém, não demorou muito para que Zacarias reaparecesse no armazém com total imodéstia e certo atrevimento, querendo saber do amigo como iam as coisas por ali - como se não soubesse de todo estardalhaço que a situação provocara. Como eram colegas desde a mais tenra idade, atendeu, com ressalva, ao desconsolado colega Thiago que lhe dizia - apontando para o ambiente repleto de mercadorias em prateleiras e em vários caixotes. Alguns estavam destampados, cheios de feijão, arroz, farinha e outros grãos de diferentes tipos. As prateleiras de variados doces e salgados também continuavam intocáveis. Estavam ali à espera de alguém que os comprasse. No entanto, já fazia três dias que ninguém entrava mais na venda de seu pai:
_ Ô, Zaca! Olha só pra isso. Olha o que você fez. Puxa vida, heim! Não dá pra dá um jeito e arrumá essa situação ?!

Sensibilizado, disse-lhe que precisava, antes, conversar com seu pai. Assim, combinou com o português que devesse abaixar pelo menos os preços do pé-de-moleque, dos salgados, do pão, do café, do feijão e do leite. Contrafeito, o homem concordou, pelo menos naquele momento. Pois, não foi muito difícil para o senhor Manuel entender o que aquela situação toda significava para ele e para seus negócios os quais caíram de forma significante. E, entendia que o lucro maior que obtinha era proveniente das pequenas saídas de doces, salgados, pães, leite e café, já que quem os compravam - além de muitos garotos - eram suas próprias mães às quais já não mais entravam ali depois daquele inusitado fato.
Era simplesmente inacreditável! Um garoto com pouco mais de quatorze anos já saber argüir com tamanha convicção aquilo que acreditava e defendia. Realmente era espantoso! Por outro lado, era pouco confortador para muitos, inclusive para todos os adultos que ali freqüentavam.
No dia seguinte, um novo cartaz surgia na fachada do armazém anunciando novos preços dos doces, dos salgados, do pão, do leite, do café, do feijão e do pé-de-moleque. Seus preços voltaram a ser os que eram anteriormente, ou seja, mais baixos. O engraçado e mais difícil de se compreender foi a manobra desenvolvida pelo garoto. Ninguém conseguia entender de que forma ele conseguira tamanha coragem de ‘encarar’ o português. ‘Encarar’ o português significava ter uma formidável audácia, ou melhor, era preciso ter muito talento. O senhor Manuel - tido como um homem determinado, ganancioso e jamais parecia ceder a qualquer desafio, fosse qual fosse. No entanto, ali estava praticamente nas mãos de um pirralho. Aos olhos dos poucos que presenciaram aquela situação, ou mesmo daqueles outros que souberam dela, era de fato incompreensível. Todavia, mal sabiam que o pequeno Zacarias tinha uma forte tendência política e que, sabedor disso, procurara explorar - desde cedo - essa sua vocação procurando ler alguns livros que fossem de encontro a suas necessidades de conhecimento e, não somente os almanaques do ‘ Tio Patinhas ’, do ‘ Pato Donald ’ ou da ‘ Mônica ’ apenas.

Ele percebia - apesar de sua tão pouca idade - que aqueles aumentos de preços eram o reflexo de uma política econômica mal organizada, de um país escasso de critérios morais e de dirigentes que não se importavam com ninguém, exceto consigo mesmos. Realmente, ele já mantinha toda essa consciência social-humana bastante definida, arraigada dentro de si. Talvez não conhecesse com precisão todos esses nomes técnicos, mas de uma coisa tinha convicção: sabia diferenciar de forma ideológica, a justiça da injustiça; o certo do errado.

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A mulher de Ítalo se surpreendeu com sua chegada após quinze dias ausente de casa. Apesar de ela estar precisando de sua companhia, ainda assim ele achava que não poderia abrir mão de seus compromissos políticos, mesmo sabedor de que ela estava iminente a conceber seu primeiro filho. Realmente, nada o fazia esmorecer de suas ações políticas. Por outro lado, achávamos que se ele fosse solteiro assim como Mariano talvez pudesse fazer como costumeiramente fazia. Mas, não. Ausentava-se por muito tempo deixando sua mulher e a todos nós muito apreensivos. Sempre que retornavam de suas perigosas jornadas, radiantes, os dois irmãos e mais o amigo Zacarias iam nos contando tudo o que havia acontecido, desde a estada em São Paulo até o retorno. Para nossa surpresa, dizia que agora eles precisavam se mudar para a capital paulista. Nesse momento, sugeri que fizessem uso da casa que fora de meu pai, pois a mesma ainda se encontrava abandonada e esquecida. Nunca, em um só momento passou pelas nossas cabeças de sua existência durante todos esses anos. Eufóricos, não somente aceitaram tal idéia como também fariam dela a Sede do Partido, uma vez que a Ação estava crescendo espantosamente e que precisavam ficar mais perto dos manifestos, já que lá na Capital paulista era o grande centro de todos os acontecimentos nas esferas social e política do país.

À medida que eles nos contavam suas peripécias ficávamos deslumbrados e ao mesmo tempo impressionados em ver tamanha intrepidez daqueles bravos jovens. Seus desejos em poder viver num país de forma justa e digna estavam estampados em seus semblantes, nitidamente, iluminados. Enquanto os ouvia atentos, sua mulher Júlia que - desde a última vez que ele partira ficara conosco em nossa casa - ouvia também a tudo como quem não quisesse perder nada daquilo que era dito, recostando-se em uma poltrona e exibindo com tamanha satisfação aquela enorme e arredondada barriga. Entrementes, eu e Sara parecíamos pressentir que naquele momento uma grande adversidade estava prestes por vir. Juntos, podíamos perceber que o Tempo seria vencido por fim. Parece que somente dessa maneira é que ele é vencido. Não mais eram os anos que me incomodavam e nem tampouco os meses que rapidamente passavam como raios por mim, mas os dias e as horas e os minutos que se anunciavam despertar a cada badalo sucessivo. Todavia, não seria mais cativo, escravo dele, contando, medindo-o a cada hora, a cada mês e a cada ano que se aproximava, como anteriormente fazia quando era jovem e podia sonhar e fazer planos.

A tolerância, a paciência e a compreensão parecem ser sinônimos de uma mascarada e avançada idade cuja máscara nos faz vítimas de uma vida insignificante, desinteressante, deixando-nos indefesos e que nos pega de surpresa logo adiante. E, em alguns casos, tolhe nossa liberdade de possuir qualquer forma de opinião. Torna-nos meras criaturas adulteradas, incapazes, supérfluas e rejeitadas pela sociedade, abandonadas pela própria vida. Parece que os mais jovens são os que verdadeiramente, de alguma forma, fazem jus de existir e de terem ampla e total liberdade de decisão. Assim, fica evidente que somente com a antipatia do bom senso é que parece que a vida passa a ter significado. Contudo, o que mais me aborrecia era pensar que meus entes queridos ficariam penosos e frustrados com minha ausência, achando que eu devesse estar presente para pelo menos ver o nascer de meu neto que estava prestes a chegar. Infelizmente, achava não poder satisfazê-los em tal júbilo ainda que ebriamente desejasse ... era somente o que imaginava naquele momento pois estava profundamente debilitado. No entanto, como tudo o que há na vida é incerto e nada se tem de absoluto imediato, poderia me enganar em tal pressentimento. De qualquer forma, precipitei -me em falar para Mariano sobre a caderneta deixada por meu pai à qual se encontrava na posse de Ítalo. Pedi-lhe que a pegasse dele porque ele demonstrava ser menos ousado que o irmão, deixando-me, assim, mais tranqüilo, mais confortado. Ainda voltei a lhes falar o quanto me afligia não ter tido coragem suficiente para tentar desvendar todos aqueles mistérios acompanhados de tragédias. Sabia que logo morreria e não queria deixar que esse assunto fosse sepultado juntamente comigo, mas também queria ter a certeza de que nenhum deles se precipitassem ao ponto de colocar suas vidas em perigo.


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Faltavam apenas cinco meses para o pequeno Murilo completar três anos de idade quando ainda pude brincar consigo antes de eu partir, além de poder ver minha nora novamente com sua enorme barriga anunciando a chegada de mais uma neta, contrariando assim, àquilo que eu imaginara poucos anos atrás. Dessa vez, era pressentido com muito mais vigor alguma coisa de muito ingrata que estava por acontecer e seria de forma inevitável. Foi exatamente naquele chá da tarde que - ao lado de toda a minha família ali reunida e com meu neto no colo fazendo gracejos, puxando minhas orelhas e rindo sem parar - de súbito, veio-me como um relâmpago, fulminante e sem dor. Sentia uma agradável sensação de leveza, parecendo flutuar no espaço. À medida que desfalecia, percebia um olhar sereno dirigindo-se a mim, embora aflitivo. Apesar de Sara se mostrar forte, resistente, mantinha dentro de si um quê de impotência e de preocupação. Pois, sabia que naquele exato momento estava partindo para nunca mais voltar alguém que sempre compartilhara consigo, prazerosamente, todos os encantos que a vida pôde proporcionar. Para eles não nos veríamos nunca mais, no entanto, aquela minha aparente, saudável e animada expressão facial desejava que eles entendessem o oposto, algo como ... ‘estou partindo, mas sempre estarei presente aí entre vocês’.

Sara parecia não mais suportar tamanha agonia que ardia e dilacerava seu peito. Cada dia que surgia era como uma nova janela que teria de abrir para ter que encarar corajosamente o novo despertar. Uma cruel jornada teria de enfrentar sozinha, sem minha companhia e, sabia que seria cheia de espinhos e tropeços mais ainda. Tais convicções ingratas a fuzilavam nos mais profundos e malvados desencantos de sua vida. À proporção que os dias chegavam ela ficava ainda mais melancólica. Não mais sentia paladar e o seu olfato parecia também não mais existir. Tudo para ela era simplesmente nada. Perdera o sentido de sua própria existência, de sua vida, após a minha repentina morte apesar de estar acima dos cem. Nada mais lhe interessava exceto o frenético desejo de reencontrar em algum lugar o amado esposo que convivera por muitos anos em perfeita união. Assim, esquecia-se de cuidar de sua imagem e tampouco se importava com isso. Pobre Sara! Na realidade, nem se dava conta do que lhe estava acontecendo, fazendo a todos se entristecer. Aqueles dourados cabelos de outrora, lindos e elegantes até a cintura, lisos e bem tratados já não eram os mesmos. Agora eram embaraçados, descuidados e freqüentemente ela era vista na sala com a televisão ligada, sem contudo assistir a nada. Seu olhar parecia estar além daquele aparelho. Era opaco, longe, muito triste. Seus pensamentos estavam todos voltados para um mundo impenetrável, parecendo que nem mesma ela própria pudesse saber onde estavam. Quando lhe perguntavam algo como um breve ‘tudo bem’ simplesmente lhes respondia com poucas e incertas palavras que não sabia. E, por mais duas ou três vezes, novamente, ‘não sabia’. A preocupação de todos era nítida e por diversas vezes queriam lhe auxiliar no propósito de amenizar aquele desvairado sofrimento porém suas tentativas eram demais infrutíferas, pois antes mesmo de manifestarem o desejo de levá-la a um hospital logo percebiam que iriam falhar. Diziam entre si que não mais adiantava insistir em levá-la nem para lá e nem para qualquer outro lugar. Assim, seu insano desejo em permanecer naquele estado, sem querer aceitar aquela cruel realidade, era inconcebível para todos que a cercavam. Mas, para si mesma, nada lhe estava acontecendo de excepcional e não se sentia desigual dos demais. Cada vez mais ficava convicto para ela de que tudo caminhava em perfeita harmonia e paz. E, ela jamais aceitaria sair de sua casa ainda que nitidamente demonstrasse certa dependência psicológica aos olhos dos outros. Estava decidida, convencida de que não me abandonaria. Achava que se saísse de lá, estaria me traindo. Em muitos momentos me via aparecer todo de branco andando pelos cômodos da casa. Ouvia de mim palavras reconfortantes e que estava tudo bem comigo. Dizia-lhe, ainda, que não devesse se preocupar e que logo estaríamos juntos novamente. Sempre em aparição, silencioso e sereno, adquirindo o formato humano e com uma vestimenta característica do repouso absoluto dos anjos. Tranqüilo e lentamente me sentava ao seu lado, segurava uma de suas mãos e a fitava docilmente. Quando repentinamente aparecia alguém, ele ficava desconcertado e não compreendia ao certo o que estava se passando naquele ambiente de tamanha calmaria. Era um ambiente diferente. Invadia formidável hospitalidade nele e havia ternura, satisfação na expressão de Sara, além de transmitir serenidade e excessiva confiança. Embora estivesse sozinha aos seus olhos, ainda assim demonstrava estar conversando com alguém, levando-o a intermináveis imaginações. ‘‘O que estaria acontecendo com ela ? Será que os distúrbios mentais que os seres humanos por vezes são surpreendidos e pegos por eles, atingiram-na de vez ?!’’ - eram algumas das inúmeras interrogações que, inconformados, faziam para si quando a viam naquele estado de completo retiro. Ainda assim - apesar de suas especulações em torno de seu comportamento - procuravam guardá-las para si. Sabiam que ela estava passando por uma etapa de vida muito dura e que deveria ser compreendida.




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As árvores já estavam todas peladas e suas folhas estavam secas no chão. Sara preferiu ficar com a velha e boa amiga - a vizinha que fora contratada pelos filhos - dona Neusa. Pois, era bem mais nova que ela e podiam fazer companhia uma a outra. Assim, como ela era sozinha e não tinha mais ninguém já que todos os seus entes-queridos haviam falecidos, agora fazia companhia todos os dias a Sara. Aos olhos de todos ela já apresentava considerável melhora, para sua avançada idade. Entretanto, ela sabia que em nada mudara e ainda continuaria recebendo minhas visitas diária e noturna, principalmente, noturnas. Pois, é quando as mais férteis inspirações se reanimam e tendem a despertar até mesmo os mais inertes, cansados e misteriosos espectros inconscientes. Pelo menos três vezes por ano Mariano, Ítalo, Júlia e seus filhos a visitavam. Mas com o passar do tempo seus compromissos junto ao Movimento iam se tornando mais intensos, forçando assim a diminuir essa freqüência e, suas visitas foram aos poucos caindo para duas até chegar apenas a uma vez por ano. E, quando a visitavam ficavam muito surpreendidos, desconcertados com os relatos que ela fazia em torno de minhas aparições enquanto dona Neusa acenava com a cabeça para eles em sinal de afirmação para que não a contrariassem, querendo dizer,... ‘concordem com ela’.
A longa alameda que dava acesso a nossa casa, repleta de Ipês coloridos, lado a lado, transmitia um embriagado ar de imenso e provocador magnetismo. Suas folhas também haviam caídas e o que os diferenciavam das outras árvores eram - apesar dos galhos nus - lindas flores rosas, roxas, amarelas e brancas que os ornamentavam. Pouco antes do outono chegar, a alameda virava um arco-íris. Nesse cenário, Sara e eu sempre passeávamos de mãos dadas. As pessoas pareciam alegres e satisfeitas em vê-la caminhando suave e descontraída pois agora com a minha presença mais intensa, ela não mais apresentava todos aqueles sofrimentos de angústia de antes. Agora se penteava e cuidava melhor de sua imagem, fazendo com que todos - involuntários e sem saber - sentissem mais forte minha presença ao seu lado.
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Após vários anos, Ítalo, Mariano, meus netos Murilo e Juliana, além de Zacarias e outros membros que se destacavam junto ao Movimento como Ribas e Lindinalva, continuavam fazendo adeptos da Ação por quase todo o país. A esposa de Ítalo, Júlia, uma mulher modesta, de hábitos simples, não participava ativamente das empreitadas políticas do marido. Porém, era ela a quem ele recorria quando se via em apuros ou quando não conseguia dar a solução que agradasse a todos de seu partido e, com carinho e meiguice dava a resposta que ele tanto procurava. Sempre quando retornavam de suas perigosas aventuras era ela quem os recebia com todas as preocupações de quem realmente se importava. Mas, nunca conseguiam saber ao certo, nem mesmo o próprio marido, qual segredo ela tanto escondia em cima daquela estante velha à qual somente era ela quem a usava. Ela dizia - quando lhe perguntavam a respeito - que algum dia todos saberão, em seu tempo. E, que não era lá grande coisa não. Eram apenas um passatempo seu.
Os rapazes agora convocavam assembléias mais perto das autoridades, destemidamente. Diante das Câmaras de Deputados, Assembléias Legislativas, frente a Palácios de Governo e até mesmo da Alvorada onde inúmeras vezes havia o confronto desigual. Os policiais os atacavam montados em suas cavalarias agora com seus cassetetes não mais de borracha mas de ferro revestidos de espuma e lançando muito gás de pimenta, disparando tiros para todos os lados. À princípio eram para o alto, até perceberem que a agitação estivesse tomando grandes proporções, ameaçando-os em seu Poder. Depois passavam a atirar em alvos certos, indiscriminadamente. Quando os tiros não eram fatais, os feriam deixando graves seqüelas. Em muitos desses confrontos, com muita bravura, o povo não se intimidava e tentava combater aquele enorme pelotão do exército somente com sua estupenda coragem, com sua fenomenal união, em delírio e com tamanha sede de justiça. As cenas eram monstruosas, perversas, desumanas e de covarde guerra civil jamais vista em toda a história do país. As balas bradavam em todas as direções e as pessoas jorravam sangue abundante, caindo e se ferindo mutuamente.

Em uma dessas pavorosas revoltas Mariano se feriu grave no abdômen. Levara um tiro que viera do meio do tumulto, ao mesmo tempo em que Ítalo, minha neta Juliana mais os companheiros Zacarias e Ribas - sem perceberem da desgraça sofrida por ele - procuravam um abrigo dentro de uma Ordem de Franciscanos ali nas proximidades, cujo local os homens do Governo não tinham permissão de entrar sem autorização de seus sacerdotes ou sem um mandato judicial. Imediatamente foram amparados por um de seus membros, simpatizantes do Movimento, enquanto Murilo e Lindinalva também sumiram no meio da multidão. Não demorou e logo que as coisas se acalmaram pouco mais, conseguiram encontrar aquele local onde seus companheiros estavam refugiados. Antes, haviam se escondido às margens do Tietê* e para surpresa e felicidade de todos tinham apenas alguns ferimentos leves de tiros que atingiram de raspão o ombro esquerdo de Murilo e a perna direita de Lindinalva, além de algumas escoriações em seus rostos e costas. Todavia, Mariano ainda não havia aparecido. A procura pelo meu filho era incansável. Não conseguiam encontrá-lo ali entre todos aqueles corpos caídos no chão. Não, não estava ali entre eles! - eram muitos corpos amontoados um por cima do outro. As cenas eram cruéis, chocantes, deploráveis, parecendo aquelas que freqüentemente vimos em filmes de ficção. Mas aquilo fora uma pavorosa guerra! Uma sangrenta e cruel guerra!
A busca continuaria nem que fosse preciso passar o dia e a noite naquela carnificina. Desesperados, resolveram procurá-lo em locais mais afastados. Achavam que ele tivesse se refugiado em algum lugar mais seguro, mais distante dali. ‘Mas como?! Para aonde ele teria ido a pé já que antes de tudo ter começado estávamos em cima do grande caminhão de som, discursando, reunindo toda aquela multidão?! Além do mais, naquele momento não tínhamos nenhum outro meio de transporte e o caminhão não saiu de lá!’. Eram contrariadas indagações e reflexões que Ítalo fazia junto à filha Juliana e aos outros companheiros, deixando a todos, em cada um, tamanhas sensações infelizes e temerosas nuvens de sofrimento face aquele angustiante

*Tietê: grande rio que corta todo o Estado de São Paulo. Muito sujo e possuidor de toda espécie de contaminação.

tormento. Já pela manhã do outro dia, cansados e ainda desesperados, aguardavam. sem conseguir obter qualquer sinal seu. E, conforme o tempo passava, iam perdendo as esperanças de poder reencontrá-lo. Ainda assim, queriam acreditar que pudesse ainda existir alguma possibilidade, assim como acontecera com os companheiros Murilo e Lindinalva que apareceram repentinamente. Somente pela tarde de mais um outro dia é que, com sobressalto, perceberam a chegada naquele local onde ainda estavam, um grupo de dez homens que também havia participado daquele tirano e covarde episódio. Passaram então a informar ter visto Mariano pela última vez todo ensangüentado, sendo algemado e levado pelos homens da cavalaria naquele mesmo dia da revolta. E, a partir daí, eles passaram a procurá-los, incansavelmente, a fim de lhes transmitir aquela pesarosa notícia. Como ali era o único lugar em que ainda não haviam ido - esperavam que aqueles homens do Regime os quais ainda rondavam pelas imediações, se fastassem - não pudendo assim se aproximar muito. Aquela notícia lhes caiu como se tivesse desabado o céu por cima de suas cabeças. Sabiam que aqueles que tivessem a desventura de serem pegos e levados por aqueles homens - ainda que dissessem o que quisessem ouvir - não teriam qualquer misericórdia. Não seriam mais vistos! Seriam sumariamente executados. Assim, impiedosamente - como haviam previsto - Mariano fora aniquilado. Mas de forma heróica! Sem lhes dizer absolutamente nada sobre o Movimento que tanto queriam confirmações - onde, como se organizavam e, se havia mais líderes - após sofrer várias torturas físicas. Primeiro, cortaram aos poucos os quatro dedos de sua mão direita, um de cada vez. Depois, o penduraram numa árvore de cabeça para baixo fazendo dele alvo de treinamento de tiros. Ainda muito ferido devido aos tiros levados no abdômen durante o confronto e com a mão jorrando sangue sem parar, ia sendo alvejado por vários tiros de grossos calibres à queima roupa. A cena era demais cruel, demais desumana! Descritível apenas aos seus olhos frios e perversos. Mais tarde, somente mais tarde é que os líderes do Movimento saberiam dos reais motivos pelos quais Mariano fora assassinado daquela forma covarde, tão brutal.

Prolongados anos se passaram em meio a esses ferozes confrontos mas necessários segundo a convicção dos líderes partidários do movimento da Ação. Além de Mariano, muitos de seus companheiros também tiveram o mesmo infortúnio de serem levados por aqueles bárbaros e homicidas agentes do governo que, alegavam à diminuta imprensa à qual também fazia parte de seu jogo sujo, terem sido presos por subversão e desacato à autoridade além de formação de quadrilha. E, as outras Redações que não concordavam com suas arbitrariedades, denunciando-os, eram perseguidas com tamanha perversidade. Muitas vezes, quando descobriam seus responsáveis e não os encontravam, ateavam fogo em seus prédios e dirigiam-se para suas implacáveis capturas a fim de aprisionar seus redatores, fazendo-os sofrer toda sorte de punição. Torturavam até a morte e depois de alguns dias anunciavam que tiveram uma doença qualquer e que não suportaram, vindo a morrer. Eram essas as duras e pavorosas penas aplicadas aos rebeldes e à imprensa da linha subversiva. No entanto, essa tirania do Governo parecia fortalecer mais ainda a ACPP fazendo-a crescer formidavelmente em todas as Capitais do País. Dessa forma, demonstrava possuir enorme força sindical, conclamando por justiça, igualdade de direitos e respeito para com o mazelado povo em todos os manifestos que eram realizados.
A bandeira-estandarte vermelha e preta com uma pequena folha de trigo em seu centro era vista por todo o país. Em todos os lugares em que os comícios passavam ela era içada e pendurada no mais alto pico, majestosa, sacudindo-se ao vento, firme, até que alguma autoridade a visse e a arrebatasse com fúria. De fato era um ultraje ao poderoso Regime que se fazia passar por democrático, mas que era um governo dominador e se passava - ainda que inconsciente - pelo ‘Grande Irmão’ do escritor britânico George Orwell. E, como tudo nesse país era atrasado - levando até mesmo de vinte a trinta anos para se chegar qualquer progresso - não poderia ser também diferente a chegada aqui em nosso país a violação de Direitos apontadas em tal livro, ainda que fosse em uma outra época. Até mesmo no terror, no ódio e na violência parecia que os líderes precisavam se inspirar em uma cultura tão adversa da nossa!

O conflito civil parecia se repetir na história do país com mais proporção desta vez. À princípio, apesar de o povo cego e furioso gritar por justiça ainda que de forma ordeira, seu semblante dizia o contrário, pois na verdade ele ansiava por um sangrento e aniquilador combate ao cruel, desumano e intolerável Governo. Aquele pseudo-amor pela pátria que os governantes determinavam que o povo outrora tivesse e que até aquele momento o obrigava a obedecê-lo, não mais era aprovado por aquela sedenta multidão. Estampava-se visivelmente em suas expressões um ardente e incontrolado furor declarado, transbordando de cólera, de ódio. Transformara-se em pura indignação, em pura revolta por viver em um país estupidamente arbitrário.
Um disparate maior se estabelecera ao ponto de em locais mais afastados dos centros urbanos das capitais, alguns adeptos do Movimento se desentender mutuamente por questões mais infames que pudessem parecer. Como pequenas discussões sobre quem espionaria o Regime e quem seria o líder da próxima vez que houvesse mais uma revolta em um determinado local. Muitos queriam ser o líder mas o espaço sempre era destinado a apenas um, dois, ou no máximo três, conforme a proporção de pessoas rebeladas da região. E, sempre ocorria de haver muitos candidatos para muitas poucas vagas!

A consciência de insubordinação de todos tomou conta de todo o país e o tumulto se generalizou por fim. O amor e a fúria andavam de mãos dadas, lado a lado. Ansiavam em ter um país mais justo, mais humano e muito mais nacionalista, de forma até mesmo a cultuar a xenofobia. Tudo aquilo que viesse contrário à ideologia inspirada pelos líderes do Movimento deveria ser combatido. Lojas estrangeiras de qualquer espécie eram banidas. Saqueavam-nas e depois ateavam fogo. As amarguras e as lágrimas eram visíveis em todos os envolvidos naquela devasta e calamitosa conjuntura social. Em meio a tudo isso, a reação do Governo era implacável! Inúmeros seqüestros às famílias ativistas rebeladas pertencentes ao novo movimento revolucionário anunciavam suceder um atrás do outro, decretando incontáveis mortes e sangrias em ruas e praças públicas a fim de tentar intimidar os líderes rebeldes e todos os seus seguidores. As homéricas e cinematográficas buscas frustradas de perseguições aos líderes subversivos Ítalo e seus filhos Murilo e Juliana; Lindinalva - intrépida combatente do movimento - Ribas e Zacarias, por vezes se tornavam hilariantes. Pois, se sucediam uma atrás da outra, repetidamente, sem sucesso, tornando seus perseguidores humilhados e desconcertados. Isto fazia com que os aliados do Movimento se estimulassem cada vez mais, atacando bravamente em todos os pontos estratégicos da cidade.
Após diversos arrojados episódios de fúria popular e vários anos de pavorosa rebeldia ao Sistema, assinalados pelo descomunal derramamento de sangue de ambos lados, freqüentes bombardeios a prédios públicos - fazendo desencadear um verdadeiro quadro sanguinolento e lastimoso na história do país - a maciça pressão do povo fez com que aquela caótico situação não mais fosse resistida pelos então comandantes daquele regime autoritário intimamente ligado ao fascio*. Assim, percebendo a total participação ativa da estupenda população em perfeita união, atemorizado, coagido, os atuais líderes do governo não tiveram outra escolha a não ser, renderem-se. Finalmente era respeitado, agora, àquilo que tanto lhe fora suplicado: a paz, a justiça social e a igualdade de direitos entre todas as pessoas, independente de quaisquer preconceitos ... já!







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*fascio: feixe de varas dos lictores romanos.

Ainda ali mesmo - naquele mesmo instante de Tomada de Poder - foram dados os primeiros passos em direção à plataforma que sustentava os domínios da posse, os líderes Ítalo e Zacarias seguidos pelos companheiros também líderes Ribas e Lindinalva, meus netos Murilo - agora já um homem adulto e tão ávido pelo poder quanto o pai - e a jovem guerreira e valente Juliana, à qual nascera logo que Murilo completara três anos de idade. Na linha de frente estavam eles e o pelotão do PCA - Primeiro Comando da Ação - composto por mais de trezentos homens que cercavam toda a frente da soberba arquitetura, colocando-se diante da colossal e medonha aglomeração. O povo parecia uma imensa nuvem de gafanhotos cobrindo todo o gramado e as imediações do Palácio da Alvorada em Brasília numa explícita satisfação de conquista e dominação coletiva. Confundia-se com o rubro-negro das bandeiras do partido que as fazia agitar efusivamente de um lado para o outro. Em meio a essa enorme massa humana sucediam longos coros de vitória em impetuosos uníssonos assim como uma orquestra desnuda e ordena seus inimagináveis acordes - ainda que fúnebres - primorosos, graves e agudos, numa prazerosa sintonia. Em todas as regiões do país se sucediam tais dominações de posse jamais vistas.

Por incansáveis horas de revezamento entre os dominadores do poder os inflamados discursos se faziam ecoar como tochas vivas e incandescentes a todos dali presentes. Seus ânimos se manifestavam incansáveis e pareciam brotar de suas peles como sementes germinadas, bem cuidadas, como se quisessem cicatrizar das cruéis marcas deixadas pelos muitos companheiros agora ausentes, mortos naquele audacioso, descomunal e bestial combate. Entrementes, ao lado deles, amordaçados e subjugados eram vistos todos os principais remanescentes do antigo Poder: o biônico presidente da república e todos os senadores, governadores de estado, deputados, vereadores, prefeitos, enfim, todos aqueles que se diziam líderes e defensores do povo ali estavam para que se consumasse e deliberasse ao povo em suas ignóbeis presenças numa espécie de humilhação, definitivamente, a legítima retomada de direitos. Extraía-se de suas mãos imundas a autêntica herança do único e genuíno povo brasileiro que vivera durante muitos séculos por baixo de um gigantesco e vergonhoso manto de desespero que o cegava e o cobria, cabalmente, fazendo não lhe permitir que descobrisse a luz do conhecimento e do despertar do bem viver.
Enquanto Zacarias fazia os pronunciamentos, muito animado, um de seus companheiros murmurou junto a um dos ouvidos de Ribas aquela desgraça. Dizia-lhe que Sara também fora vítima de toda aquela irada revolta, que desaparecera há alguns meses e que algumas pessoas do internato - simpatizantes do movimento - ainda puderam presenciar sua prisão. Preferiu lhe dizer primeiramente antes que Ítalo ou seus filhos tomassem conhecimento daquele terrível saldo pois temia qualquer reação impensada naquele instante já que estavam diante daquela Tomada de tamanho momento de júbilo. Enquanto dizia a ele aquela cruel notícia, ambos se ausentaram daquele clima de total irmandade para que pudessem conversar com mais tranqüilidade pouco mais afastados dali. Por fim, aquele homem lhe contou que Sara fora perversamente arrastada para dentro de um grande veículo preto dos fascistas, sem qualquer escrúpulo ou manifesto de misericórdia.
Ribas achou melhor chamar primeiro Murilo e Juliana a fim de lhes contar o lamentável acontecimento. Ficaram desconcertados, enraivecidos e incapazes de compreender como puderam fazer tal coisa. Como um ser que não oferecesse qualquer perigo pudesse também ser vitimado e executado daquela forma tão sórdida! Inconformados e sem saber o que fazer diante daquele pesaroso episódio, ambos choravam copiosamente sendo amparados pelo companheiro Ribas que os segurava pelos ombros em largos e longos abraços, comovendo-se e demonstrando seu também repúdio àquele brutal homicídio. Juliana - que até então não correspondera a nenhuma insinuação mais afetiva feita anteriormente pelo companheiro Ribas e que por diversas vezes tentara ser percebido de um modo mais especial, mais atraente - agora sentia mais carência afetiva e parecia ceder aos seus discretos encantos. Somente agora diante daquela trágica notícia, ela parecia sentir alguma coisa de especial pelo amigo que tanto lutara fielmente ao seu lado, embora tivessem idades largamente distantes. ************ ************ ************


Muito antes de todas as piores revoltas acontecerem, Sara optara ficar juntamente comigo, quando Ítalo e Mariano se mudaram para a Capital levando consigo sua mulher e nossos netos. Naquela época ainda éramos felizes e estávamos sempre juntos. Todos os dias eu sentava ao seu lado naquele banco branco de cimento gelado ao redor de muito verde. Sempre caminhávamos juntos, lado a lado, felizes e, quando alguém mais próximo deparava conosco - algum enfermeiro mais cortês ou um funcionário mais apegado a ela querendo saber do motivo de tamanha alegria - lhe dizia que a vida estava cada vez mais bela ao lado de seu marido, ao meu lado. Como sabiam que era viúva, isto fazia com que os mais hereges ficassem ainda mais convencidos de que ela não andava muito boa, relatando aos seus colegas de ofício, ironicamente, tais acontecimentos do dia. Até quando chegou o momento que ela não mais pôde caminhar. Já estava com os cabelos muito ralos e sua cabeça parecia ter ficado mais branca do que era. Quase não mais pegava raios solares. Passava a maior parte do tempo deitada em um pequeno quarto vazio, sozinha, pois, sua companheira e fiel amiga dona Neusa havia sofrido um ataque cardíaco fulminante. Seus olhos pareciam dois pequenos caroços de cereja em conserva, sumindo diante de seu rosto agora mais comprido, encruado, inexpressivo. Já estava em uma idade tão avançada que nem mais conseguia se locomover por si mesma e já precisava do amparo de alguém para suprir todas as suas necessidades fisiológicas. Era totalmente dependente dos enfermeiros e dos funcionários daquela repousada de anciões.

Somente após o término do discurso do companheiro Zacarias - diante dos exaltados ânimos dos rebelados - os irmãos Murilo e Juliana resolveram contar ao pai o que acontecera a Sara. Após longo período de completo abatimento e transtorno - sendo amparado pelos filhos e companheiros - quisera saber imediatamente quem comandara aquela atroz operação daquele dia. Com a eficiência de seus leais e dedicados aliados conseguiu levantar todos os dados possíveis em curto espaço de tempo. Realmente tudo fora muito rápido e já estava em suas mãos a lista de todos os envolvidos naquela pavorosa trama armada contra a pobre anciã Sara. Porém, nada pudera fazer contra os culpados pois seus nomes apareciam no rol entre aqueles que já tinham sido eliminados durante um outro embate popular daquela mesma região. Ficara frustrado sem poder fazer aquilo que intencionava aos perversos inimigos. Queria a todo custo cobrar e fazê - los pagar ao seu próprio modo o que fizeram com sua indefesa mãe. Soube, ainda, que Mariano vinha investigando - paralelamente ao confronto - a morte de seu avô, meu pai Mariano. E, descobriu que ele havia chegado próximo demais de seu objetivo. Conseguira desvendar quase todas as causas de seu assassinato bem como a do político - colega de infância - o tal de Júlio. Soube que sua morte havia sido encomendada devido a brigas internas do Partido, o qual tinha ganho terras como propina. Confirmara-se dessa forma as suspeitas de meu pai. Assim, desconfiavam que ele - seu avô Mariano - tivesse descoberto tudo e passado essas informações a mim, a minha mãe dona Zélia e, mais tarde, que eu também tivera passado as informações a minha esposa Sara. Portanto, achavam que deveria nos eliminar. Foi quando, em um súbito ataque mataram minha mãe e o colega Douglas em meu lugar, confundindo-o comigo. Mariano ficara sabendo ainda que o principal mandante dos crimes naquela época havia sido o presidente do senado, Delfino Nero. Mas nesse episódio trágico de Sara, fora um de seus netos o mentor de todo o maquiavélico plano, também personalidade de extraordinário poder dentro dos cenários do Poder. Temerosos, aproveitaram do brutal confronto a fim de dar prioridade a sua captura, vindo a fazer o mesmo com ela logo depois. Dessa forma, achavam que não sobraria ninguém ou quase ninguém para contar qualquer coisa.

Todos os vitimados que fizeram parte da ACPP naquela sangrenta batalha foram condecorados e prestigiados pela vitoriosa causa. Por todos os quatro cantos do país já se podiam ver seus bustos pelas principais praças. A estátua de Sara - modelada com traços de quando ainda era jovem - ficara ao lado do grande portal principal do pomposo edifício dos novos chefes de Estado. Ao seu lado, outras estátuas também foram içadas - a minha e a de Mariano Neto. Lá estava eu ao lado de meu notável filho e de minha adorada esposa, lado a lado! Novamente, juntos, ainda que calados eternamente, mas à presença dos mortais com aqueles mesmos olhares misteriosos e penetrantes dos deuses do grande Olimpo!*
Estas foram as primeiras medidas tomadas pelos então chefes de Estado Ítalo, Murilo, Juliana, Lindinalva, Zacarias e Ribas. Projetos estes que foram imediatamente aprovados pelos novos constituintes da antiga e extinta Assembléia Legislativa e que logo passara a ser chamada de CPP - Casa do Plebiscito Popular.














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*Olimpo: grande monte localizado ao Norte da antiga Grécia onde viviam os deuses, segundo a mitologia grega.


Era chegado o momento de os líderes irem aos meios de comunicação em canais abertos de televisão e de rádios para fazer oficialmente os pronunciamentos a fim de tornar público os primeiros passos que dariam em prol do bom funcionamento da máquina governamental.
Fora armado um gigantesco palco em frente à Alvorada para a recepção do povo. Havia muitos jornalistas e fotógrafos nacionais e estrangeiros. O lugar fora muito bem estudado e organizado. Instalaram no tablado uma enorme mesa retangular com capacidade para acomodar quatro lugares em suas extremidades e trinta assessores de cada lado, distribuídos em suas laterais. Ao fundo, uma enorme lâmina de vidro-escuro formatava todo o espaço por trás deles. Centenas de agentes de segurança espalhados por todos os cantos foram os primeiros cuidados a serem tomados. Agora, no poder, os ex-rebeldes tomavam as posições centrais da mesa.
Os jornalistas com seus microfones estavam todos alvoroçados. Em toda parte procuravam o melhor ângulo para tentar garantir a ampla cobertura daquele espetacular marco jamais visto em toda a história do país. O convite à dignidade de poder viver com tranqüilidade e respeito, com decência e humanidade havia sido lançado. Era o que estava sendo oferecido a todos os compatriotas e companheiros que - por muitos séculos - tiveram de conviver forçosamente e sem poder sentir e conhecer o mínimo do sabor de seus direitos. Ascendia e iluminava a mais alta labareda do amor vivo, da fraternidade e do respeito mútuo, ficando todos entrelaçados em um só objetivo. Todos pareciam hipnotizados pelo brilho incandescente daquele sedutor clima onde a pura igualdade e semelhança entre os seres se faziam presentes.

Ítalo, ao ver aquele descomunal público, hesitou! Porém, devido a sua larga experiência, de imediato fez vibrar as primeiras palavras de agradecimentos, realçando o tamanho heroísmo que todos tiveram em participar destemidamente daquele brutal mas necessário golpe civil, além de encorajá-los a lutar sempre que se sentirem prejudicados em seus mínimos direitos. Dizia ainda àquelas pessoas que sempre teriam com quem contar quando necessitassem de apoio ou mesmo de uma assistência mais cuidadosa. Diante dessas suas falas, todos permaneciam momentaneamente estáticos, em total paralisação! Após elas, não se continham de tamanha alegria e faziam retumbar tremendos ecos de satisfação sem economizar qualquer esforço, fazendo-se ouvir a dezenas de quilômetros de distância aqueles seus desvairados uivos de triunfo. Em seguida, as mesmas palavras dele passaram a ser as de seu leal companheiro de longos anos, o também experiente Zacarias, repetindo-as e acrescentando uma humilde mensagem em seu discurso final:
_ Não se esqueçam jamais, companheiros! Os verdadeiros homens vão ser sempre aqueles que decidirem. Não somente decidir. Mas tornar ação tudo aquilo que realmente precisar ser feito, de modo justo, determinado.
Aplausos incessantes ferviam seguidos de gritos e assobios de alegria, assombrosamente. Ao mesmo tempo, as luzes dos fotógrafos por todos os lados faziam daquele local montado parecer mais formidável do que mesmo aqueles destinados aos grandes espetáculos musicais. A cada disparo de seus flashes o brilho se fazia muito intenso, avermelhado e, contracenava com os holofotes à distância de quilômetros, por todos os cantos, espalhando-se pelas alturas. O brilho era tão intenso que fazia com que a fusão produzida das luzes das máquinas mais a luz celestial, formassem outros novos encantadores brilhos. A claridade artificial misturava-se à luz mágica do crepúsculo que ainda era visto no horizonte. Desconhecidas cores iam surgindo, criando um admirável ocaso jamais visto. Raios no céu apareciam como que dançando, iguais aos pássaros que tinha visto um dia em sublime sincronismo com aquele brilho embriagante. Era como se todo o universo também estivesse compactando com aquele indescritível e histórico episódio. O Tempo parecia ter vida própria e também estava em descomunal regozijo. Dava a impressão de que Ele estivesse retardando a chegada da noite para que aqueles momentos de tamanha alegria se tornassem infinitos, memoráveis, pelo menos naqueles instantes. Que se perpetuassem um pouco mais para aqueles pobres seres que tanto ansiaram por aquele dia. No entanto a tardinha daquela quinta-feira, assim como outras tardes iria embora. Mas deixaria àquelas pessoas sem dúvida alguma magníficas lembranças pelo resto de suas vidas.

O desvairado entusiasmo por mudanças dentro do quadro político e social era tão marcante que a toda convocação que era feita ao povo, notava-se um sentimento de grande paixão, muito forte entre ele, o qual se agrupava de forma organizada, assustadora. Eram colossais massas humanas jamais vista juntas! As pessoas ficavam entorpecidas e às vezes pareciam não saber de fato o que as faziam se manter em tamanho e cego amor por aquela posição de total submissão e confiança naqueles novos líderes, os quais somente prometiam esperanças de um mundo mais justo, de uma vida muito melhor, nada além do que coisas simples mas necessárias.
Mais uma vez Ítalo se preparava para um novo pronunciamento enquanto o companheiro Zacarias finalizava o seu. Esse contínuo revezamento entre eles agora deixava a estupenda massa um tanto agitada pois a tomada de vez se sucedia lentamente. Era sentido que seus oradores não estavam ainda totalmente seguros. Havia um certo temor. Aquele volume de gente era demais assombroso e nunca havia sido visto por qualquer pessoa antes em toda a história da Humanidade. De qualquer forma, uma outra longa pauta estava posicionada em sua frente, quando, ao pegá-la e pôr-se de pé e passando o fio do microfone por cima da cabeça dos companheiros, dirigiu-se mais uma vez para a frente do palanque, vencendo novamente qualquer hesitação. Meio que decidido, iria discursar mais uma vez. Entretanto, todos aqueles aplausos, aqueles flashes e aquelas câmeras de televisão ao seu lado, faziam-no ficar ainda um pouco embaraçado.

Os brados de contentamento daquela assustadora gente de descomunal quantidade eram agora mais enérgicos e mais efusivos devido a sessão que se reiniciava, quando, surpreendentemente, foram misturados por vários disparos de arma de fogo indo em direção ao grande cenário. O tumulto se propagou naquele lugar e as pessoas mais próximas do grande palco se adiantaram em desordem, atropelando-se uma na outra. Ligeiramente, alguns seguranças em seus locais táticos conseguiram avistar um grupo de aproximadamente dez homens em meio às pessoas que estavam mais próximas daquele local, afastando-se, sorrateiros e aflitos. Antes mesmo de chegarem até eles, já estavam sendo interceptados por vários outros integrantes da ACPP que haviam se misturado ao povo em cumprimento às ordens de seus dirigentes. Simultâneo, outros seguranças, rápidos, anteciparam em se posicionar e a fazer um enorme escudo-humano à mesa dos líderes, sendo imediatamente tomado todas as providências necessárias no sentido de resguardar suas vidas. No entanto, talvez pelo fato de ter ficado mais à frente, nada impediu de Ítalo ter sido o mais visado. Alvejaram-no na no tórax por várias vezes além de ser atingido também no pescoço. Zacarias também fora ferido mas superficialmente em uma das pernas e no ombro esquerdo ao tentar se abaixar. Provavelmente tivessem acertado outros tiros caso assim não fizesse. A intenção dos atiradores era óbvia e clara. Queriam liquidar sumariamente aqueles homens. No momento dos disparos, Murilo, Juliana, Lindinalva e Ribas também se abaixaram, sofrendo apenas alguns arranhões. Por instinto, os outros componentes da mesa fizeram o mesmo e não sofreram maiores danos, exceto alguns ferimentos provocados por fragmentos vindo do grande painel de vidro que se estourara por inteiro por trás deles.
Ítalo foi levado às pressas para um hospital mais próximo pelos filhos Murilo e Juliana e por seus bravos companheiros e acompanhados de um forte pelotão armado. Seu estado clínico era demais delicado e requeria urgente intervenção cirúrgica. Apesar de muito debilitado e em estado de inconsciência a sua aparência mantinha extrema expressão de serenidade. Denotava um certo conforto, um certo prazer de ter tido o privilégio de combater e vencer todo aquele mal que tanto assolara o país em que vivera. Vários fotógrafos e repórteres também sofreram sérios ferimentos e prontamente foram socorridos ao passo que para alguns outros companheiros da Ação nada pudera ser feito. Pois, aqueles que estavam muito próximo de Ítalo, em pé, foram os que mais sofreram aquele atentado e eram justamente alguns líderes de outros estados.

Na verdade, foram oito homens muito bem trajados, de ternos escuros e camisas brancas que dispararam aqueles projéteis. Mas foram imobilizados com suas armas de grossos calibres e imediatamente conduzidos a uma sala improvisada ali mesmo a fim de serem interrogados. Após algumas perguntas e sem maiores dificuldades ficaram sabendo que pertenciam a uma facção radical de empresários. Temiam a atual política que prometia brutal e implacável mudança em todos os segmentos da sociedade e que visava acabar com toda a desigualdade no país, fazendo a justa distribuição de renda entre as pessoas além de oferecer a todos as mesmas oportunidades de ascensão social. Dessa forma, achavam que seriam atingidos com essa mudança e que poria em risco todas as suas individualistas fortunas às quais ficariam mais tarde provado que eram provenientes de manobras escroques, fraudulentas e de subornos fiscais, além de várias outras falcatruas nas áreas social e econômica em sintonia com o governo. Sem dúvida, o país fora regido pelos falsos governos por longos e intermináveis séculos. E, eles por sua vez, se faziam cúmplices dos maus empresários. Esse círculo vicioso e podre era um esquema muito bem montado pois além de todos eles terem o privilégio de serem descendentes de fidalgos - o que lhes propiciava possuir toda a sorte de conforto e bem estar - fazia com que o acesso a esse Espaçoso e Poderoso Caldeirão da Vergonha e da Afronta se limitasse apenas a eles. Somente eles eram os que podiam ter a oportunidade de eternizar ‘sua’ opulência. Eram considerados os únicos capazes de administrar o país e merecedores de desfrutar quaisquer homenagens em todas as áreas sociais cujos objetivos eram os de expandir cada vez mais suas riquezas, fazendo cúmplice o modelo político desleal, ganancioso e perverso desenvolvido por eles mesmos: governantes, empresários e latifundiários. Os poderosos e donos do país eram somente eles de fato, ou seja, aqueles que possuíssem maior volume de dinheiro. Obtendo por conseguinte mais e mais prestígio e ‘credibilidade ’ em todas as esferas sociais. Dessa forma, faziam com que os das camadas sociais baixas entendidos por vezes todos aqueles que tivessem Silvas ou Sousas em seus sobrenomes, permanecessem em seu estado primitivo, escravo, não lhes sendo permitido quaisquer perspectivas de oportunidades.


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Um estupendo busto de mármore fora encomendado a fim de prestigiar e a honrar a imagem daquele bravo herói que o país jamais havia tido. Em seu peito se destacava uma bandeira com um notável brasão vermelho e preto e uma semente de trigo em seu centro, simbolizando o escudo da Ação. O vermelho se referia às grandes batalhas; o preto, o luto - a tristeza pela qual o país vinha amargamente passando; a semente de trigo era o alimento que lhe fora negado e a prosperidade que tanto era desejada. Estes símbolos eram os fundamentos legais pelos quais o povo havia se identificado, assimilando e incorporando-o. No pé do busto havia inscrito os anos, 2010 - 2075. Mais embaixo havia um pequeno epígrafo:
Ítalo Medeiros da Silva - Líder revolucionário. Fundador e legítimo herói brasileiro da ACPP. Bravo combatente que salvou o país dos usurpadores, saqueadores e forasteiros assassinos.
Na Praça dos Três Poderes fora içada sua majestosa figura no mesmo momento em que uma marcha fúnebre cortejava e entoava uma pequena elegia. Mais de cinco mil homens reunidos de todos os Estados que faziam parte direta da Ação de Combate do Povo para o Povo - além de milhares de pessoas - acompanhavam a funesta e excruciante trajetória daquela tamanha calamidade. Sua esposa estava em prantos de incontidos desencantos. Todos estavam perplexos e desventurados sem querer acreditar naquilo que viam. Seus corações sangravam e choravam enquanto suas almas estremeciam em agonia e pavor, sentindo muita irritação e amargura. Alguns chegavam até mesmo a bradar por justiça, encolerizados. Imploravam a pena de morte aos culpados em praça pública e muitos se ofereciam a ser o carrasco para as execuções. Evidentemente seus líderes não permitiriam que tais atitudes fossem realizadas pois seria um ato contrário às reformulações das leis que estavam prestes a se estabelecer. Todavia, nunca mais qualquer pessoa ficara sabendo quais destinos aqueles homicidas tiveram.

Em reunião extraordinária entre os líderes imediatos ficara decidido que Murilo e Juliana substituiriam o pai, ainda porque era uma questão de hereditariedade. Apesar de ainda serem muito jovens, percebiam ainda que eles tinham muitas idéias boas, várias propostas e projetos de vanguarda que iam de encontro aos princípios do agora ‘Grande Movimento de Ação Política do Povo’ - o GRAMAPP, como passaria a ser chamado o antigo Movimento por uma idéia de Júlia e Zacarias. Assim, os irmãos viriam a assumir o total comando enquanto que os companheiros de luta os assessorariam diretamente no governo. Quando eles iam a público, em comitivas, reuniam verdadeiras turbas que gritavam alternado e continuamente em desmedido frenesi repetidas vezes, silabicamente, os dois nomes: Mu - ri - lo; Ju - li - a - na. Eram tantos Murilos e Julianas vociferados de forma retumbante e em perfeita harmonia que fazia lembrar algum tipo de ‘mantra’ budista, chegando a fundir os dois em apenas um. Assim, não tardou e o próprio povo intitulou aquela transição política de Muriliana. Surgia, daí, a proclamada Era Muriliana.
A fervorosa combatente da Ação - formada em Ciências Políticas - destemida e combatente da desigualdade social e que desde os tempos de faculdade vinha liderando os grêmios estudantis em prol da ação conjunta, foi designada para cuidar dos assuntos centrais da CPP - Casa do Plebiscito Popular. Em todas as manifestações de outrora Lindinalva se fazia presente ao lado de Murilo que por sua vez sempre a surpreendia, quando, com pretextos políticos, lançava a ela insinuações mais arriscadas e calorosas. Por outro lado, ela jamais demonstrara um interesse mais profundo, exceto em raros momentos acidentais quando ficavam muito próximos um do outro. Aproveitando deles, momentaneamente, trocavam algumas poucas ternuras e - embora alguns beijos e abraços fossem correspondidos - ambos sabiam que não era o momento adequado para assumirem um compromisso amoroso mais sério. Sabiam ainda que naquele tempo teriam que continuar a estudar e precisavam destinar o pouco tempo que lhes sobrava para destinar àqueles assuntos críticos do país. Precisavam arregimentar os partidários do Movimento, convocá-los em assembléias e, ainda, viajar pelo país no sentido de engajar novos adeptos.
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No entanto, o tempo agora era outro! O ano era 2112. Murilo e Lindinalva estavam casados e já tinham três filhos. A caçula de treze anos, Rebeca, era muito dócil. Pouco extrovertida mas queria saber de tudo ao mesmo tempo. Suas atitudes eram imprevistas e quando menos se esperava ela já estava fazendo aquilo que desejava sem pedir permissão a ninguém. Seus olhos acastanhados e seus belos cabelos dourados, com longas tranças cacheadas caindo à altura de sua fina cintura - além de seu comportamento paradoxal, meio que rebelde - faziam lembrar um pouco sua bisavó - minha adorável Sara. Enquanto Teodoro - o filho do meio - era mais impetuoso. Não se deixava intimidar facilmente e se mantinha em posição de destaque em qualquer lugar que fosse, fazendo impor sua resoluta presença. Possuía o dom da persuasão. Suas palavras eram penetrantes, inquestionáveis, consentidas facilmente. Robusto, muito forte e arrojado. Realmente era o espelho de seu avô, meu filho Ítalo. Já o mais velho, Mateus - de vinte anos - era pouco mais recatado. Não era tão forte quanto o irmão e nem se preocupava muito com isso. Talvez por conta de sua realçada timidez procurava não se manifestar muito em público. Possivelmente, a herança maior que eu tenha dado tivera sido o reflexo de seu comportamento virtuoso, sensível e reflexivo pelas coisas mais simples que se podia imaginar. Parecia ser um egocêntrico mas nunca deixava de perceber as necessidades de alguém. Murilo e Lindinalva não pareciam satisfeitos e agiam como se quisessem ressuscitar ou recuperar todo o tempo perdido - aquele de quando ainda lutavam contra o Sistema. A barriga da mulher prometia mais um ser prestes a chegar à nova vida, ao novo mundo. Talvez não passassem mais de três meses e o quarto filho do casal chegaria com muita expectativa. Isto era o que dava mais forças para ela participar ainda mais animada das reuniões que fazia quinzenalmente na CPP junto com o marido, dez assessores diretos e alguns representantes populares, o que não passava mais de cinqüenta pré-escolhidos, selecionados, possuidores de uma vida imaculada. Essa era a composição da Casa e as sessões eram iniciadas com grande entusiasmo, pelo menos duas vezes por mês.

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O novo e maravilhoso Movimento do atual Sistema fluía a todo vapor. Formidável, soberano e voltado exclusivamente às grandes massas, quando, no passado, elas eram consideradas apenas contingências humanas. A Era Muriliana, impetrada pela vontade popular, começava a imperar com grande dominação por todo o país e era respeitada, seguida lealmente por todos. Logo em seu início, as divisões de renda já haviam sido estudadas e estabelecidas pelo Grande Movimento da Ação, dando-se real importância basicamente à população que pouco ou nada tinha para sua própria subsistência. Empresários, latifundiários, humoristas, cantores e empregados de grandes e pequenas empresas além de profissionais autônomos faziam parte daquele pacto, daquela ousada medida. Embora para muitos parecesse um medonho infortúnio, tiveram que ser compelidos a reconhecer tamanha e sensata diligência popular.
A partir da grandiosa soma já depositada nos cofres públicos, foram igualmente cedidos os benefícios para toda a população desprovida, suavizando e eliminando aos poucos os fantasmas do temor do dia seguinte. Minuciosamente foram feitos os cálculos condizentes e satisfatórios à devida distribuição de renda provenientes de cada setor profissional. Os chamados abastados que não sabiam mais o que fazer com tanto dinheiro que possuíam, ainda a contragosto, tiveram que compartilhar literalmente com a dor daquelas pobres criaturas uma vez subjugadas. Gradativamente, cada um foi conseguindo, de início, obter um lar decente onde pudesse recomeçar sua vida com dignidade. Começava, a partir daí, a ser solucionada a questão da moradia, simples e fácil. Com essa singela medida tomada pelos representantes e pelos conselheiros do povo, a vida de cada cidadão parecia ser menos dolorosa. Abria-se um leque de expectativa de se viver com respeito e com valores recíprocos, compartilhando suas vidas com mais humanidade.

No primeiro domingo de cada mês as tropas dos altos comandos fardadas com as cores vermelhas, listras pretas e uma enorme semente de trigo no peito, tocavam o glorioso hino nacional brasilino nas mais importantes praças públicas dos Estados. Todos se honravam e se sentiam satisfeitos por ali estar cantando aquele novo hino, assim como alguém que vai à igreja rezar todos os sagrados finais de semana e entoar seu canto sacro. Animadamente, orgulhosos e com uma das mãos dobrada ao lado esquerdo do peito, eles pareciam grandes exércitos em perfeita unidade de paz e amor. A música era vibrante e a sincronia do compasso muito bem cadenciada. Crianças, homens, mulheres, jovens e velhos, todos compartilhavam os mesmos interesses. A satisfação era intransponível em exagero pois agora havia verdadeira honra em poder viver sabendo que a justiça, a liberdade e a paz se faziam verdadeiramente presentes. Havia um real estabelecimento de causa e efeito à medida que seus pensamentos eram postos em ações práticas, contrariando dessa forma os pensamentos de Marilena Chauí*, ao dizer que os seres humanos, em contraposição à natureza - não pensam e não agem segundo relações de causa e efeito. Agem por mera escolha, deliberação, decisão.
Apesar de grandes massas concentradas em tais eventos, o silêncio era assustador pois antigamente ele não existia e, agora, poucos sequer faziam idéia de tal fato. Outrora, a total falta de respeito para com o próximo também era a única coisa que prevalecia e se conhecia naquela época. Ainda nos velhos tempos, em escolas e até mesmo em lugares considerados sagrados como no interior das igrejas, este silêncio não mais existia. Pelo contrário, o que de verdade existiam eram alucinações
e espantos. A maioria delas eram verdadeiros hospícios! Agora, era diferente. A calmaria se fazia presente em locais jamais imaginados, como ali em meio àquela enorme turba, confirmando-se a teoria de que a disciplina e o respeito somente são alcançados quando se semeiam regras, fazendo-as valer de forma bastante impositivas,


*Marilena Chauí: filósofa e autora de vários livros.

sem hipocrisia e sem interesses dissimulados. E, as pessoas agora saíam radiantes de
suas casas com a convicção de serem mais respeitadas, mais abençoadas, encarando aqueles compromissos como sendo tão importantes e necessários quanto o simples fato de viver.
A Era Muriliana estava germinando, prometendo reais mudanças positivas e coerentes de se poder viver com ética e moralidade. Ela afirmava e comprovava com suas ações que todos - isentos de qualquer status social - podiam perfeitamente conviver em plena união, com liberdade e satisfação, sem abalar a economia, o sistema capital.O segundo passo a dar foi em direção à estruturação de uma lei que permitisse o amplo e total acesso à Educação popular, gratuita, laica e de boa qualidade. Toda e qualquer forma de educação reservada seria expressamente extinta, uma vez que o atual Governo entendia que ela era de caráter essencial e de competência exclusivamente Sua. E, caso Ele permitisse a continuação daquela proliferação e disputa desleal de escolas privadas, seria um retrocesso histórico e sua obrigação estaria sendo corrompida. Daria a todos o direito gratuito a Ela, indiscriminadamente, até o término dos cursos técnico e científico, capacitando todos os jovens para o trabalho pré-escolhido por eles mesmos. A partir daí, caso quisessem teriam o direito de continuar seus estudos em uma universidade mediante realizações de provas específicas da área e seriam avaliados pelo então Supremo Conselho de Educação Muriliano - o SUCEM. Órgão mais importante e demais respeitado. Toda e qualquer produção que o país fizesse, teria que ter o seu aval no sentido de assegurar a qualidade de progresso e, cuja composição era formada por um corpo docente de sessenta profissionais da mais alta competência do país. As universidades públicas exerceriam seu verdadeiro papel sob seu olhar crítico e fiscalizador, estimulando e se concentrando em pesquisas e métodos voltados puramente à filosofia empírica e cognitiva.

Para alguém obter a mera função de gari teria que ter terminado o curso científico e ser aprovado em concurso público criteriosamente formulado e voltado somente para esse fim. Sem articulações de critérios banais como de ter que ler fabulosas bibliografias com o intuito meramente de reprovação ou mesmo de humilhação, fazendo-o ser submetido a extravagantes testes. A partir do exercício de sua função ele passaria a desenvolvê-la com total prazer pois ganharia aquilo que de real lhe seria merecedor e condizente com sua subsistência, ficando em uma escala social de vida humana chamada, Nível Um. O engenheiro, o cirurgião, o advogado, o juiz ou qualquer outra categoria que fosse escolhida seguiria o mesmo critério do gari, com uma única distinção: teria que estudar uma universidade e ser avaliado de forma mais complexa e, sendo aprovado, passaria para o Nível Dois. No Nível Três, estariam aqueles que se destacassem nas áreas médicas, econômicas ou culturais, ganhadores de prêmios científicos e/ou literários em âmbito nacional ou internacional. E, além de todos serem reconhecidos pelos seus próprios méritos teriam chances também igualitárias, sem terem que passar por qualquer convencionalismo ultrajante. Por último, na escala do Nível Quatro, estariam as altas autoridades políticas que já faziam parte do novo e pleno escalão do poder. Abaixo deles, ninguém jamais poderia ter um rendimento salarial igual ou maior que os seus pois se tratava de obedecer exclusivamente a uma regra de hierarquia e disciplina. Entretanto, jamais alguém ficaria sem ter a oportunidade de se lançar, de tentar almejar o nível seguinte, de chegar finalmente ao nível quatro. À medida que estudavam, as chances de galgar os mais altos postos lhes iam ficando mais palpáveis - apesar de muitos não sentir tais necessidades. Pois, cada um ficaria satisfeito em seu posto e seria igualmente respeitado pela simples razão de saber que sua vida agora era de fato vivida, além de reaprender que o ato de respeitar o próximo é em si nato do ser humano e não daquela forma como lhe impuseram que fosse, fazendo-o confundir e assimilar erroneamente por longos séculos. E, não mais existia, portanto, qualquer tipo de cobiça por parte de ninguém. Agora, eles estavam orgulhosos por serem chamados de cidadãos ‘brasilianos’. Podiam dizer sem qualquer constrangimento que pertenciam a um país de verdade, não de brinquedo. Pertenciam à Era Muriliana. Pertenciam a um verdadeiro país.

Os chamados profissionais que já estivessem atuando em áreas que requeressem o nível superior sem ter nunca freqüentado uma universidade agora teriam que fazê-lo. Até mesmo aqueles artistas de antigamente como os atores, o pessoal do circo, os comediantes e outros desse meio. Todos teriam que obter os cursos específicos da área, freqüentar os estudos exigidos. No entanto, tinham as suas próprias opções de escolha, de viver da forma como quisessem. Os cantores teriam que ser somente aqueles verdadeiramente capacitados. Teriam que ser aprovados em testes vocálicos mediante rigorosa sondagem de aptidão, tendo como modelos a serem avaliados os timbres que fossem iguais ou que chegassem mais próximo possível a voz sensível e penetrante de Moacir Franco ou ao prodigioso e encantador canto de Roger Daltrey, ora aveludado ora estridente. Ainda teriam que ter concluído os estudos universitários-específicos para que, a partir daí, pudessem gravar discos e serem reconhecidos como tais. Suas músicas teriam que ser apreciadas e aprovadas pelo Conselho Musical Brasiliano - o COMB. Teriam que possuir letras com conteúdos explícitos e passar mensagens no sentido de aperfeiçoamento do ser e incentivo à vida. Não mais seriam toleradas aquelas banais de outrora que não possuíam sentido algum e cujo e único objetivo era vendagens de discos.

Apresentadores de televisão, dançarinos, jornalistas ou mesmo comediantes teriam que ser respeitadas suas funções primitivas. Um não poderia exercer o papel do outro simplesmente pelo fato de um conhecido seu convidá-lo. Teria que ser obedecida todas as etapas, estruturas e diretrizes educacionais, sociais e profissionais do modelo Muriliano. Portanto, um apresentador de jornal, um entrevistador, ou mesmo um animador de palco, teria que ter o curso de comunicação com especialidade em jornalismo e ser submetido às fases já discriminadas, já feitas conhecidas pelo Supremo Conselho de Educação. Tais regras do Regime se faziam valer através de normas disciplinares de educação e social inclusas à nova legislação e, em casos especiais, faziam-se valer através de ofícios legais emitidos pelos altos comandantes e representantes-imediatos da atual Ação. Caso alguém não conseguisse a aprovação final para suas funções, qualquer interessado poderia optar por outras áreas afins ou ainda, se desejasse, seria encaminhado a elas.


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A moeda nacional nunca estivera tão forte. O ‘amazona’ ficara reconhecido, com grande prestígio internacionalmente. Seu valor excedia até mesmo a libra esterlina inglesa. Como país absoluto e sem ter mais quaisquer obrigações políticas e econômicas a prestar com outros países, sustentara-se, por fim, em todo o modelo financeiro e econômico. A Era Muriliana se tornara um exemplo global a ser seguida pois até mesmo muitos países altamente desenvolvidos e bem estruturados, por vezes, recorriam a Ela com a intenção de aperfeiçoar suas técnicas, em especial, educacionais, científicas e jurídicas.

As lojas de artigos importados não mais existiam; a procura por produtos nacionais não precisava mais ser estimulada e suas vendas cresciam assombrosamente. A Votupiniquin Estadual não parava de prosperar. Gerava muitos empregos e beneficiava milhares de brasilianos na construção de suas casas próprias, vendendo como nunca seu principal produto, o cimento. O preço de um saco de cinqüenta quilos equivalia a um pacote de cinco quilos de arroz, diferente de antes que, para se comprar o mesmo saco de cimento era preciso suprimir, no mínimo, quatro pacotes de arroz. Assim, agora todos comiam e construíam sem ter que esperar longos anos para poder fazer uma parede e depois outros tantos para erguer outra. Ou ainda ter que colocar um piso de cerâmica em um cômodo a cada ano. As vendas de eletrodomésticos, de carros e de roupas eram feitas em até seis vezes e obedeciam a um limite determinado de valor, não podendo ultrapassar seis prestações ao ano a fim de não sobrecarregar o orçamento familiar. As Lojas Ceará Silva eram as maiores vendedoras de roupas e de eletrodomésticos, enquanto as Silvanas ficavam em segundo, vindo logo atrás.
Grandes e pequenas lojas, hotéis, restaurantes, casas de lazer, circos, parques, bairros ou cidades, todos tinham que ter por lei, ou seus nomes brasilinos como, Silvas, Sousas, Oliveiras, Pereiras, Ferreiras, ou outros nomes, desde que fossem legítimos, característicos do País ou de origem lusitana. Ou ainda provenientes de termos latinos. Poderiam, ainda, ser acrescidos a eles numerais cardinais a fim de diferenciá-los de comércio para comércio, de praça pública para praça pública, de logradouro para logradouro. E, já se podia ver em suas fachadas: Comprem tudo na Loja Silva Um; Loja Silva Dois; Hotel Silva Um; Hotel Sousa Quatro; Parque Ecológico Oliveira Sete; Grande Promoção do Grande Circo Cinco; Aproveitem as Ofertas dos Supermercados Ferreira Silva Dois. Visitem o Supremo Conselho de Educação Muriliano - o SUCEM, antigo MEC* localizado à Rua João de Sousa Ferreira Silva e Silva, 1058.
Até mesmo nomes de placas de ruas, avenidas e praças, além de quaisquer nomes estrangeiros em locais públicos foram finalmente banidos, deixando lugar para nomes apenas ‘brasilinos’. E, apesar de as pessoas poderem aprender qualquer língua estrangeira, jamais seria permitido seu uso em público.
O mesmo critério servia para os estrangeiros naturalizados ou mesmo àqueles que estivessem em simples passeio turístico. Jamais seria permitido o uso de
seu idioma estrangeiro frente ao povo. Ou teriam que falar o idioma oficial do país, o Brasilino - ainda que fosse com dificuldade - ou devessem conversar em sua língua mãe somente entre si, fora do alcance do povo nato. Os oficiais de cartório bem como os juízes, teriam que aceitar para registros somente os nomes que seguissem à fidelidade das raízes genuinamente brasilianas, segundo a regra disciplinar do molde Muriliano. Jamais seriam admitidos nomes estrangeiros, exagerados ou


* MEC : ministério de educação e cultura.

depreciativamente confeccionados. Não seriam mais tolerados ou nomes como Carl,

David, Michael, Shirley, Paul, Johnny ou Robert. Quaisquer nomes que fossem oriundos do exterior ou ainda nomes considerados esdrúxulos, depreciativos ou exageradamente criados como: Cafiaspirina Cruz da Silva; Bem-Vindo o Dia do Meu Nascimento Cardoso Pereira; Dezencêncio Feverêncio Delegas Matos; Nascente Nascido Puro Rodrigues; Safira Azul Esverdeada Costa Ribeiro ou José Casou de Calças Curtas Infeliz, jamais seriam aceitos. O controle de natalidade também fizera parte fundamental e integrante de regras para que todo o plano social se viabilizasse de forma eficiente. Cada família teria o direito de usar o devido anticoncepcional prescrito por médicos conceituados e reconhecidos pelo Conselho Médico Assistencial da Grande Era Muriliana - o COMAGEM, o qual logo passaria ao comando de meu bisneto Mateus, além de cada uma delas ter a assessoria constante de assistentes sociais. Doravante à Lei Muriliana, uma família deveria ter apenas três filhos. Aquelas que já possuíssem um número maior anterior à Era, deveriam parar neles, havendo necessidade de seguir um rigoroso controle para que não tivessem mais nenhum a partir dali. E, as que já tivessem alcançado seu limite, ao longo de suas vidas deveriam ser controladas da mesma forma, passando a buscar e também a usar, religiosamente, o remédio recomendado pelo Órgão. Aquelas que viessem a descumprir tais normas - o que vinha a ser uma quantidade ínfima - teriam que prestar contas para com o Conselho Médico. E, conforme o caso, não mais deveriam receber qualquer auxílio financeiro do Regime, além de os mesmos benefícios sofrer quedas significativas na mesma proporção em que seus filhos fossem aumentando. Dessa forma, caso ultrapassasse o limite suportado - a cada filho gerado - a folha de pagamento daquela família sofreria descontos consideráveis em suas folhas mensais de vencimentos. Assim, cada filho a mais, o desconto seria de dez por cento. Dois filhos, ... vinte. Três, cinqüenta. Acima disso a família toda passaria a prestar ‘favores’ para o Conselho pois não mais haveria salário algum e passaria a viver apenas de doações e caridades do próprio regime. De forma inversa, o mesmo aconteceria para aquela família que possuísse um filho apenas. Obteria uma ajuda de custo de cinqüenta por cento a mais em seus vencimentos mensais; as que possuíssem dois, o benefício cairia para vinte e as que tivessem o limite máximo se reduziria para dez por cento. Assim, a respeitabilidade e o acolhimento das normas impostas pela Era eram muito atrativas e muito bem recebidas. Poucas ou quase nenhuma eram as famílias que por qualquer razão tivessem motivos em descumprir tais regras. Pelo contrário, eram estimuladas a cumprir fielmente suas normas, seus princípios. Fechando o quadro familiar, o enlace matrimonial se daria apenas àqueles que tivessem , anteriormente, passado por um intensivo curso destinado especificamente a esse fim no sentido de educá-los para o casamento, aprender normas de educação familiar bem como seu controle natalício. Feito isso, deveriam ainda ser aprovados em rigorosos testes escritos e orais supervisionados pelo Conselho. A migração para os Estados somente seria aceita mediante um documento oficial formalizado e expedido pelo Órgão de Turismo Entre os Estados da Era Muriliano - o OTEEM, obedecendo seus critérios e em conformidade com a necessidade do requerente. Constando em tal documento - entre outros itens - a condição de o visitante fixar uma data pré-estabelecida para o retorno ao seu Estado de origem assim que terminasse seu compromisso ou seu passeio. Finalmente, a solução para o problema da explosão demográfica estava decretada.
Todo Território ou Estado era autônomo. Responsável por seus cidadãos e prestando, de seis em seis meses, contas ao Regime Muriliano, apresentando gráficos demográficos, educacionais, culturais e econômicos. Rigorosamente eram avaliados e submetidos à apreciação do Órgão de Desenvolvimento do Ser da Era Muriliana - o ODESEM, o qual imediatamente daria seu aval final quanto à qualidade de vida apresentada por cada Estado, outorgando-o ou não. Caso o nível de vida abaixasse com expressividade a intervenção seria imediata por parte do Órgão junto a seus líderes responsáveis por aquele Estado, no sentido de procurar suas causas e fazer com que conseqüentemente fossem corrigidas.

Qualquer atendimento médico ficaria sendo restringido e regulado pelo Conselho Médico onde todos os cidadãos seriam tratados de maneira indistinta e sem privilégios. Os postos de saúde e os hospitais públicos nunca foram tão eficientes! Qualquer que fosse o nível social em que a pessoa estivesse teria o mesmo tratamento médico e mais humano possível. Quando uma pessoa precisasse de atendimento ficava em salas homogêneas, independente de nível social e compatíveis de acolhimento e espera. Aqueles convênios médicos desumanos e de preços exorbitantes foram extintos, cabalmente, mesmo porque não mais havia necessidade de suas existências. Pois, na atual Era, todo profissional de saúde, bem como seus Postos, passaram a ser altamente reconhecidos pelo Conselho. Desde o faxineiro até o gerenciador- administrativo da corporação hospitalar trabalhavam
em perfeita sintonia. Embora seus semblantes quase inexpressivos e sisudos demonstrassem uma certa antipatia, suas ações eram realizadas com extrema eficiência após minuciosos estudos feitos de cada caso apresentado a eles. Além dessas expressões faciais mecânicas, robotizadas, todos, ainda assim demonstravam serem criaturas humanas melhores do que aquelas uma vez vistas em tais ambientes. Os direitos populares de seguir determinado dogma ficaram por conta do Conselho de Doutrina Religiosa Brasiliana - o CODREb. Existiam dois segmentos religiosos: a Igreja Católica e as Seitas Espirituais, às quais incluíam o Cardec, o Candomblé e a Umbanda, já que o povo brasiliano possuía fortes traços de sua origem e cultura. Quando houvesse um possível interesse público em abrir ou formar uma outra seita, teria que passar por cuidadoso estudo realizado pelo Conselho de Doutrina. Jamais teria o aval do mesmo ou da própria Ação caso ficasse provado que o interesse fosse unicamente o de se isentar dos devidos tributos fiscais e não àquele exclusivo de doutrinação popular, ordeira e honesta.


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A Nova Ordem finalmente estava reafirmada e garantida a toda população. O Grande Caldeirão da Vergonha e da Afronta dos direitos do indivíduo não mais existia. Era apenas um distante passado que ninguém mais queria lembrar.

Com o passar do tempo, o Grande Movimento de Ação - verdadeiramente Político do Povo para o Povo - ia se fortalecendo cada vez mais graças aos comandos dos líderes rebeldes - em especial da minha nora e viúva Júlia; de meus netos Murilo e Juliana; de seus companheiros Zacarias, Ribas e da mulher de Murilo, Lindinalva, além de meus bisnetos Teodoro e Rebeca que já estavam se preparando para assumir o lugar dos pais, uma vez que estavam chegando em idades avançadas e precisavam dar continuidade à Era Muriliana e cujo Sistema já não era mais tão novo. Quanto ao tão aguardado quarto filho de Lindinalva, ela não o teve. Logo após sancionar a primeira lei que dizia respeito à distribuição de renda, juntamente com seu marido, os assessores diretos e mais os cinqüenta membros da Casa do Plebiscito Popular - fazendo valer aquela tão sonhada lei por eles - a fez se emocionar tanto que foram obrigados a chamar imediatamente o médico da família. Tamanha foi a emoção que sofrera naquele grandioso momento! Sonhara há muito por aquele dia e não conseguia acreditar que aquele acontecimento de elevado altruísmo político estivesse se realizando. Assim, seu aguardado bebê não pôde suportar tamanho impacto emocional da mãe. Por outro lado, o casal já estava desde o início da gravidez, preparado para receber qualquer surpresa desse tipo, pois sabiam que ela já não tinha mais idade para tal recompensa e que poderia a qualquer momento não vingar aquela concepção. Apesar de ter sido muito doloroso para eles, não puderam conter seus lamentos! Ambos choraram como crianças. Entretanto, após terem passado por toda sorte de amarguras impostas pela vida e apesar da atual felicidade vivida, intensamente, cúmplices, Murilo e Lindinalva ainda assim trocavam sabores de satisfação. Mais ainda por terem dado ao mundo três saudáveis filhos. Cada um seguindo, vigiando e consumindo seu próprio destino da forma como lhes fora a cada um apresentado.
Ainda, até agora - já com cinqüenta e dois de idade - Mateus não quisera muita coisa com o compromisso político e se tornara médico respeitado na área geriátrica. Dedicara-se exclusivamente à pesquisa do envelhecimento e somente após muita insistência dos irmãos Teodoro e Rebeca, é que resolvera, por fim, aceitar o cargo de conselheiro superior de medicina no COMAGEM, já que ele estava se destacando de forma exemplar nessa área. Desde cedo, não concordava e não aceitava de maneira submissa a idéia do envelhecimento humano, procurando descobrir suas possíveis causas e conseqüentemente seu medicação, ou pelo menos, o seu retardamento. Aos poucos ia conseguindo suporte de alguns assessores- diretos para suas pesquisas, os quais lhe davam incentivo cada vez mais. Obtinha, assim, o respaldo do conselho necessário para que seu projeto de pesquisa e desenvolvimento fosse viável e mais acelerado.

Ribas e Juliana tiveram apenas o terno e carismático Danilo que - após se casar com uma colega de estudos - preferira ainda conviver no mesmo ambiente familiar dos pais. Ainda mais agora que eles precisavam de sua companhia pois suas idades faziam com que forçosamente se sujeitassem ao natural e penoso isolamento senil, já que a velhice por vezes cruelmente abrevia e tortura as pessoas a cada dia, tornando-as cada vez mais diminutas e ineficientes, seja a época que for. O astuto e inteligente Zacarias agora estava muito debilitado, velho, muito embora lúcido de quase tudo o que lhe cercava. Quando não estava em companhia dos amigos mais próximos como Ribas, Murilo, Lindinalva, Júlia e Juliana, era visto ao redor de antigos companheiros da Ação, não menos importantes. Ora ficava recordando juntamente com eles dos antigos e saudosos comícios, ora simplesmente ficava lendo algum livro da atual Era. Seu predileto era aquele mais comentado e vendido do momento, ‘ O Grande Caldeirão da Vergonha e da Afronta ’ escrito por Júlia. E, já era a terceira vez que o lia incansavelmente. Ela o escrevera nos momentos em que ficava sozinha em casa enquanto Ítalo e seus companheiros saíam em campanha política, deixando a todos, na época, muito curiosos em saber o que ela tanto guardava em cima de uma estante. Mas, quando chegavam, ela os recebia amável e discretamente, guardando seus manuscritos como se fossem sagrados demais. Quando era moço, ele preferira ter apenas algumas aventuras ardentes e apimentadas nos raros romances que tivera, policiando-se a fim de não se deixar envolver muito com qualquer mulher. Pois, sabia o que de fato queria desde sua meninice e sempre respondia a todos, convicto, quando lhe perguntavam a respeito delas: _ O que eu mais quero na vida é ver esse país sair desse atoleiro podre e desumano. Depois, quem sabe ... eu fique com uma mulher aqui e outra ali. Assim eu vou levando. Não quero assumir nenhum compromisso sério! Estou bem assim! Aliás, acho que ficarei sempre assim.
Ele parecia ter a premonição naquelas palavras, muito embora quando garantimos algo contrário daquilo que realmente faz parte do curso natural da vida, muitas vezes tem o valor de somente nos livrarmos de questões indesejadas.










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Dois mil, cento e quarenta e quatro. Após muitas pesquisas e testes infrutíferos parecia que finalmente Mateus - aos cinqüenta e dois anos - havia descoberto a notável fórmula de sua persistente busca. Eureca! Ainda era a mesma palavra que se dizia nessa época. Eureca! Gritava e novamente gritava. Por mais de três vezes gritava aquela palavra como se quisesse que alguém o ouvisse, mas ninguém estava em sua volta e ele sabia disso. No entanto, ainda assim gritava. Depois de vários séculos, aquela palavra ainda não havia sofrido nenhuma mudança lexical no idioma. Repetia-a por diversas vezes assim como no mesmo ritual usado há centenas de anos quando era descoberto algo de prestígio no campo científico. Nunca havia ninguém em sua volta ali naquele laboratório frio, gelado, exceto os fantasmas de sua persistente e incansável investigação e que, por vezes, ele se esbarrava em algo fazendo com que, involuntariamente, o som de algum objeto ao cair soasse forte e se despedaçasse no assoalho de vidro, transparente como as águas do oceano. As duas vezes semanais que partia para lá se trancava a sete chaves e ninguém jamais imaginava o real objetivo de suas solitárias idas para lá. Só sabiam que era algum projeto que ele, enlouquecido, cego, estava tentando desenvolver empiricamente já há muito tempo. Sua fórmula era perfeita e parecia agora estar, por fim, concluída a sua missão. Finalmente poderia agora apresentar algo para o mundo de real necessidade e de formidável valor. Algo que todos os humanos mais ansiavam em vida. Não mais se importaria com a morte natural que tanto aterrorizava a si quanto as outras pessoas. Estava ali em suas mãos aquele precioso, miraculoso e sagrado líquido: o elixir da longevidade. Fruto de longos anos de seus profundos e incansáveis estudos, dia e noite, noite e dia. Quando não estava em seu laboratório trabalhando em sua pesquisa, a desenvolvia em bases teóricas em sua própria casa. E, agora, sabia que a partir dali todos teriam - em curto espaço de tempo - fácil acesso àquele tão esperado e poderoso descobrimento. Baseava-se puramente em injeções de moléculas retiradas a partir da célula tronco do indivíduo, introduzindo-a em regiões debilitadas do corpo. Dessa forma, fazia regenerar-se por completo tal órgão, como por exemplo, a recuperação de um dente, uma perna, ou mesmo a recuperação dos cabelos naturais. Quanto àqueles órgãos internos - já enfraquecidos e gastos - deveria recorrer-se aos chamados bancos de órgãos os quais seriam demais procurados a fim de - tanto se fazer doações quanto à procura por algum deles.
Essa audaciosa façanha jamais fora enfrentada por nenhuma outra pessoa. Em nenhum século qualquer ser humano tivera a coragem de comprar esse desafio na história da medicina molecular, exceto ele. Buscara para si aquele desafio que muito provocara e angustiara ao longo de toda a sua vida, ao longo de toda a existência de seu ser. Seu castigo maior era o de não tê-lo descoberto antes do envelhecimento de seus pais, de si e de outros contemporâneos seus! Assim, restava ainda ir atrás de uma outra correção: ainda iria tentar converter o triste retrato desgastado da velhice em quantos anos fossem necessários. Entretanto, teria que se dar por satisfeito naquele momento. Pois, passara a ter ainda mais prestígio pessoal, fazendo com que todos do planeta agora ficassem, certamente, mais unidos, atados no mais alto enlevo fraternal entre os povos. Independente de qualquer preconceito agora o mundo seria mais humano. E as pessoas se dariam por fim, não mais vencidas pelo medo que tinham umas das outras, fazendo-nas incorporar involuntariamente dentro de si tal sentimento. Mas, salvas pela total e plena convicção de levar uma vida mais pacífica, mais justa, ...deliciosamente ... mais longa e, quem sabe, ... num futuro breve - muito breve - eternamente mais jovens!






ÁRVORE GENEALÓGICA




Jonas / Sara










LEGENDA:

cores pretas: as quatro gerações do senhor Mariano Medeiros
cores vermelhas: os cônjuges

ano: 2144
nacionalidade: Brasiliana
língua: Brasilina
moeda: Amazona




BerenaldoFerreira De 17/O3/2OO2 - 20/O8/2OO3
Final efetivo em 17 de Agosto de 2003
Última revisão em 22/02/2004






Data da Revisão: 22/02/2004 - 21:57

Data da criação: 17/3/2002 16:42:31

Nome descritivo: A Queda de Um País Corrupto ( no séc. XXII )

Autor: BERENALDO FERREIRA

Assunto: A Queda de Um País Corrupto

Palavras-chave: Derrubada de Poder


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