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Contos-->Os dois mosqueteiros - selecionado SESC-DF 2007 -- 04/04/2002 - 17:49 (Athos Ronaldo Miralha da Cunha) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Os dois mosqueteiros
Athos Ronaldo Miralha da Cunha


A campainha ecoou nas salas do colégio, comunicando o término do período. A debandada foi geral. Os estudantes jogaram cadernos e livros nas pastas e o que se via era algazarra, balbúrdia e correria pelas escadarias e corredores de um tradicional Colégio Estadual construído pela Cooperativa dos Empregados da Viação Férrea.
Antes de ir embora, Aramis resolveu finalizar o exercício de determinantes que havia iniciado há poucos minutos na aula de matemática. Nestas tarefas, enchiam-se folhas e mais folhas até que a diagonal ficasse unitária e os demais membros zerados. Aramis gostava demais de matemática, principalmente daqueles exercícios, e encasquetou que precisava concluir o que começara minutos antes do encerramento da aula. Aluno do último ano do 1 grau, estava despertando uma grande paixão e aptidão pela matemática, paixão que carregou pela vida toda. A equação de Báskara era a sua favorita, as raízes saíam exatas. O teorema de Pitágoras também era por demais interessante.
Quando saiu do recinto, não havia mais ninguém nos corredores, uma ou outra professora tagarelando sei lá o quê. O Seu Albino, ferroviário aposentado, trabalhava como porteiro na escola e estava ansioso para ir embora, ele sim seria o último a sair.
- Tchau, Seu Albino. - comentou o aluno.
- Tchau, guri. - respondeu o porteiro.

O final de tarde parecia o mesmo e igual a tantos outros. Havia uma sensação estranha no ar, um pressentimento inquietava aquele aluno. A volta para casa seria diferente. Algo estava prestes a acontecer. E aconteceu.
Era junho de 1972, uma quarta-feira fria e meio acinzentada. O sol estava encoberto e a temperatura baixando drasticamente, prenunciando um inverno rigoroso. As primeiras lâmpadas de mercúrio começavam a acender e as ruas logo estariam desertas.
A cidade silenciava calma e preguiçosamente. Lentamente, Aramis foi caminhando pela calçada em direção a sua casa. Ia distraído, cabisbaixo, pensava em uma garotinha que vira na hora do recreio, lembrava seus cabelos lisos castanhos, caídos sobre os ombros, o sorriso e seu olhar meigo, matreiro a flertar-lhe em retribuição.
Pouco a pouco foi chegando a fome junto com o anoitecer gélido, repentinamente lembrou que sua mãe tinha descascado uma panelada de goiaba, para fazer geléia. Até apressou o passo saboreando, antecipadamente, um café quentinho com pão d’água e goiabada.
Uma latinha de extrato de tomate, no meio do passeio, afeiçoava-se para um chute.
- Afasta da área, Bibiano Pontes! (quarto zagueiro do Internacional de Porto Alegre no início dos anos 70). - exclamou enquanto chutava a lata.
No mesmo instante que a lata é alçada para o meio de rua ouviu um outro ruído vindo do lado de dentro da parede, onde parecia ser o porão da Delegacia de Polícia, mas não era som de lata, era um som surdo, abafado, aterrorizador.
Eram pontapés! Vários pontapés, em algo vivo ou quase vivo, pois mal se ouvia os gemidos.
Embora gurizote e sem entender bem o porquê daquilo tudo, Aramis presenciou “in loco” uma das páginas pretas de nossa história e que compreenderia, posteriormente, os reais motivos de tamanha brutalidade. Foi um vão na parede que permitiu ouvir e ver parcialmente, meio ofuscado pela penumbra do ambiente, um homem vestindo uma camiseta e uma calça jeans. Estava descalço e jogado ao chão com as mãos amarradas às costas. Tinha escoriações pelo rosto e braços, estava ensangüentado, parecia estar meio fora de si. Diante dele dois homens, um gesticulava e falava muito, totalmente irado, o outro era o agressor, um tarefeiro das pancadas. Naquele cubículo, no porão de uma casa centenária, tinha uma pequena cômoda, duas cadeiras, uma luz muito fraca sobre a mesa que deixava enorme as sombras dos homens projetadas nas paredes, pareciam sombras de dois monstros.
Pouco tempo depois ouviu um dos homens falar.
- Vamos, mas voltaremos logo, neste meio tempo vê se coloca as idéias no lugar e abre o bico, porque não adianta, nós pegaremos todos vocês, é uma questão de tempo, portanto vê se facilita as coisas. Comunista pé-de-chinelo. Foice e martelo, era só o que me faltava! - comentou, exaltado, o homem que parecia o chefe.
O último pontapé foi o mais violento, restando um derradeiro gemido. Saíram. Com uma tranca, fecharam a porta do porão que dava para o pátio e subiram por uma escada externa ao piso superior, que era o pavimento térreo, com saída para a outra rua, pois o prédio era de esquina. Ainda ouviu o “clic” do cadeado cerrando a porta da delegacia e em seguida o ronco do motor de um fusquinha que saiu em direção a avenida Nossa Senhora das Dores.
Observou pela fenda, por mais alguns instantes, aquele traste humano, ou o que havia sobrado de uma pessoa. Nestes breves minutos de contemplação, não manifestou uma reação sequer, um movimento que demonstrasse vida. O corpo permanecia totalmente estático. O silêncio reinava dentro do porão úmido, lúgubre e gelado.
Após esses momentos de observação e expectativa, Aramis resolveu ver de perto quem era, se estava vivo e quem sabe até ajudá-lo.

O muro que dividia o pátio da Delegacia com o passeio público era muito alto, pelo menos para um garoto que era o menor e o mais retaco dos guris da turma. Conseguiu a muito custo e com a ajuda de uma velha caixa de engradados, colocar o pé em um tijolo sobressalente e daí com um impulso atingir o topo do muro. Sentiu-se o Senhor da rua e do pátio. Não sei porque cargas d’água veio em sua mente a lembrança da professora de história. Aramis não gostava dela, uma múmia a assombrar e aterrorizar os sombrios finais de tarde nos corredores e nas escadarias do colégio.
- Seria bom se ela aparecesse por aqui, daria um pontapé naquele nariz empinado e mal embalsamado... Deixa pra lá aquela discípula de faraó e devota de Tutankhamon. - falou, para si, em voz alta.
Para descer não foi difícil, uma pilha de tábuas e moirões formavam uma escada irregular, tornando a empreitada relativamente fácil. Um pequeno escorregão apressou a descida e proporcionou uns esfolões na bunda.
Abriu vagarosamente a porta e entrou naquele tétrico recinto, ao aproximar-se, o homem, sentindo a sua presença, levantou a cabeça e mal conseguiu abrir os olhos, visto que sua face estava barbaramente mutilada e ensangüentada. Quando conseguiu fixar a sua imagem, só teve forças para balbuciar a uma frase:
- Vai embora garoto.
Em virtude de seu estado, Aramis julgou que não estava em condições de dar ordens a ninguém, mesmo sentindo um certo desespero e rigidez em sua voz. Desamarrou suas mãos e ofereceu uma caneca de água, pois havia do lado de fora, uma torneira e um tanque debaixo de uma meia água de zinco. Tomou a água com tamanha vontade que parecia ter uma sede de séculos. Pediu mais um pouco, o que o garoto fez prontamente. Com sua ajuda e apoiando-se na mesa conseguiu sentar-se, todo desajeitado, na cadeira.
Perguntou o nome, ainda meio zonzo e se refazendo da tortura.
- Aramis. - respondeu.
- Somos companheiros de longa data garoto, o meu nome é Portus.
Baixou a cabeça sobre os joelhos e ficou ali parado, parecia sentir muita dor.
Tínham em comum os nomes de dois mosqueteiros, com isto pareceu que Portus estava mais a vontade. Conseguiu, com alguma dificuldade, manter-se em pé, apoiando-se no ombro do parceiro e deu alguns passos pela sala. Perguntou como havia chegado até ali e se tinha visto os homens que o agrediram. Por fim, solicitou ajuda para tirá-lo daquele lugar.

Antes de fecharem a porta do porão, Portus solicitou que o garoto pegasse uns papéis que estavam em cima da mesa. Ao encontrá-los verificou que eram manuscritos picados, pareceu uma carta que após escrita tinha sido rasgada, havia mais papéis pelo chão, mas não quis juntá-los.
Ao voltar para o pátio, imaginando como fazer para ajudá-lo a pular o muro, Portus estava escalando as tábuas e praticamente no topo de sua empreitada. De cima do muro para o outro lado ele simplesmente despencou. Imaginou... Desta ele não escapa, mas o homem era de ferro. Disse que havia adquirido o poder de não sentir dor, mas adquiriu uns arranhões a mais. A noite chegara e por sorte a rua estava pouco iluminada naquele ponto onde estavam e não havia ninguém, nenhuma alma viva, a não ser um gato preto ronronando em cima do muro e uns pardais em alvoroço em um pé de plátano no pátio da delegacia.
- Vem vindo um carro! - falou Aramis.
- É um táxi, manda parar para mim.
- Táxi! Táxi! Táxi!
Aramis ajudou-o a entrar no veículo. E indagou sobre o que fazer com os papéis e Portus disse para colocá-los fora. Deu-lhe um aperto de mão e agradeceu a ajuda.
Ouviu apenas Portus falar ao motorista.
- Por gentileza, rua Floriano Peixoto, duas quadras abaixo da Presidente Vargas.
Um último aceno com a mão esfolada. O carro sumiu na noite fria, escura e com nuvens pretas ao sul, prenunciando uma chuvarada para logo mais.

- Minha pasta! - de repente, lembra-se, Aramis.
Estava em cima do muro, ao lado do gato preto que logo teria o achego de uma gata parda que espreitava aquele movimento silenciosamente em cima do telhado da casa vizinha à delegacia de polícia.

Aramis não recorda qual a desculpa que deu por chegar tão tarde em casa, pois não era do seu feitio atrasar-se daquela maneira. Lembra apenas que tomou um leite quente com Toddy e pão com geléia de goiaba. À noite resolveu montar os papéis picados que haviam ficado com ele.
Após arrumados pacientemente como um quebra-cabeças e grudados com uma fita gomada, transformaram-se em uma confissão. Falava em revolução, libertação dos povos, alguns nomes, que para Aramis, naquele junho de 1972, eram totalmente desconhecidos como: Fidel Castro, Lenin e Che Guevara que era citado duas vezes. Dizia que não citaria nomes porque acreditava no sonho da revolução socialista e não iria trair a utopia revolucionária de seus companheiros. Encerrava com uma estranha frase. -Viva a revolução cubana!
Aramis não entendeu muito bem o conteúdo daquele texto, mas julgou que era de suma importância, resolveu não mostrá-lo a ninguém e guardá-lo. Colocando na página 72 do livro que acabara de ler na noite passada, Esaú e Jacó de Machado de Assis.

Naquela noite choveu muito, como nunca havia chovido, trovoadas e relâmpagos antecederam a chuvarada. Era uma noite muito escura de um inverno que parecia ser um dos mais frios. Dona Rosa, mãe de Aramis, acendeu velas nos castiçais, queimou ramalhetes bentos no domingo de ramos e rezou para Santa Rita e Santa Bárbara. Armando, seu pai, tentou captar o jogo do Inter contra o Vasco, pelo Brasileirão, no seu velho rádio, parceiro de longas jornadas esportivas. Não conseguindo seu intento, resolveu ir dormir e em pouco tempo estaria roncando, talvez sonhando com um gol de bicicleta do Bráulio, o garoto de ouro do colorado gaúcho. E Aramis foi se deitar, o barulho da chuva no telhado do galpão do vizinho foi, para ele, um canto de ninar numa noite de temporal. Ainda ouviu, ao longe, os latidos de um cão. Adormeceu.

Esaú e Jacó ficou na mesa de cabeceira por várias semanas, pois todas as noites Aramis lia e relia o tal bilhete. Por fim foi parar na estante, hoje, bem mais avolumada com livros técnicos de engenharia e literatura. Volta e meia chama atenção aquele livro desbotado, velho e que está intocável há muito tempo.
Passados aproximadamente três décadas, Aramis tem receio em abri-lo e não encontrar ali o surrado bilhete de um guerrilheiro chamado Portus, pois teme que tudo tenha sido apenas um sonho de um guri que ficou num distante passado, no longínquo ano de 1972.

- Táxi! Táxi! Táxi!
Num sobressalto, Portus, acorda assustado no meio da noite, como sempre, coberto de suor. Amanda era toda cuidados com as crises noturnas do companheiro. Foi assim nos tempos em que estavam exilados e continuava após o retorno à pátria com a abertura democrática. Portus enxergava uns fantasmas do passado que seguidamente o perseguiam no meio da noite. Hoje o sonho de uma revolução não estava mais presente em seus pensamentos, mas as imagens que vinham em forma de pesadelo eram arrebatadoras e inesquecíveis.
- O mesmo sonho de sempre... Tiros, correrias, cárcere, tortura e dor. Eu todo ensangüentado e o menino chamando o táxi.
As lembranças da guerrilha eram assombrações que atormentavam o seu dia-a-dia. O exílio não tinha curado todas as feridas. Suas convicções de esquerda tornaram-se mais evoluídas, porém jamais pegaria em armas novamente. Veio para disputar uma luta democrática de poder.
Na véspera da posse como prefeito de uma cidade do sul do Brasil, Portus ainda era perseguido pelos fantasmas dos anos de chumbo. Não estava arrependido de ter sido o revolucionário que sonhava com a classe trabalhadora no poder, porém tinha muitas dúvidas, muitos companheiros perderam a vida em nome deste ideal. Hoje são apenas lembranças nas reminiscências dos que ainda lutam por um mundo melhor, são histórias de vida que devemos ter presente com exemplos de companheirismo.
- Amanda, eu não esquecerei um grande companheiro no meu discurso.
Na entrada do Paço Municipal a imprensa o aguardava. Centenas de pessoas queriam ver o futuro prefeito, o homem que veio do exílio, assumir os destinos da cidade. Prometeu participação popular e um governo voltado para os excluídos.
- Dedico esta vitória popular a um grande companheiro que não vejo há muito tempo e não sei por onde ele tem andado. Foi um destemido revolucionário. Um grande companheiro de luta contra a ditadura. O nome dele é Aramis, o garoto que me ajudou fugir do cárcere. Ao Aramis dedico este mandato.
Emocionado, encerrou o discurso sob forte manifestação popular com fogos de artifício, aplausos e euforia na praça. Amanda segura-lhe a mão fortemente e sussurra em seu ouvido. - Nada foi em vão.

Próximo do palanque um homem de aproximadamente 40 anos, cabelos prateados, não conteve a emoção e seus olhos tornaram-se úmidos. Cabisbaixo e em silêncio foi embora, carregava sob o braço esquerdo um velho e surrado livro: Esaú e Jacó de Machado de Assis.




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Se você quiser saber como Portus veio ao mundo, leia o conto “O nascimento de Portus”. Grato.

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