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Contos-->Trocando em miúdos -- 09/04/2002 - 22:53 (Luís Augusto Marcelino) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
“Trocando em miúdos, pode guardar
As sobras de tudo que chamam lar
As sombras de tudo que fomos nós
As marcas do amor nos nossos lençóis
As nossas melhores lembranças...”

- Este CD?

- É seu. Pode levar.

Sempre imaginei que esse dia chegaria. Nunca soube ao certo quando iria acontecer, mas sempre senti que eu e Maria Clara colocaríamos um ponto final. Já tínhamos colocado vírgulas, exclamações e ponto e vírgulas. Mentira: acho que imaginava que não passaríamos das reticências. Recolher as roupas, amontoá-las numa dessas bolsas de viagem que só servem para amarrotar camisas de botão, dormir duas ou três noites fora, receber um telefonema depois: “volta, vai?”. Há nos olhos de Maria Clara uma convicção evidente de que não me quer mais no nosso apartamento. Aliás, teremos uma encrenca danada para repartir o apartamento, porque sinceramente, até agora, não sei aonde vou morar. Pensei em telefonar para minha irmã, mas talvez não seja uma boa idéia. Ela sempre previu meu rompimento com Clarinha e, nessas horas, é duro dar o braço a torcer e ouvir o sermão. Além disso o Marquinhos, meu cunhado, me detesta. E meus sobrinhos são infernais, nunca me deixam em paz. Perdi minha mãe há um ano. Meu pai não agüentou a solidão e foi-se dois meses e meio depois. Dizem que isso acontece com as almas gêmeas. Achei que Clarinha fosse minha alma gêmea e tenho certeza de que ela pensava da mesma forma. Nem eu nem ela, porém, tem vocação para morrer de amor. De saudade. Vou sentir falta de algumas coisas. Da minha poltrona de couro, preta, elegante, confortável. Da TV de 29 polegadas com imagem de cinema. Maria Clara insistiu para eu levar meus livros, mas fiz questão de deixá-los lá – talvez um sinal de esperança de retornar para lê-los nos domingos chuvosos. Aleguei que ela precisava deles, que seria bom para passar o tempo, e que um dia voltaria para buscá-los. Ela topou.

Há cinco anos cumpro o mesmo ritual nos sábados. Acordo entre 9 e 10 horas, lavo o rosto, fumo um cigarro às escondidas na área de serviço, faço um café terrível, que sai ou doce demais ou fraco demais ou com o pó à vista. Clarinha o toma por consideração. Escovo os dentes, é óbvio. É o primeiro dia na semana, quando não tem feriado, em que não preciso me preocupar em raspar a barba rala e irregular, mas pra mim é um grande alívio. Minha pele é sensível e fica irritada tenha o aparelho uma ou trezentas lâminas. Devia ter nascido no Afeganistão e não sofreria com esse tipo de problema. Pelo contrário, seria admirado por usar uma imensa barba. Em seguida abro a porta que dá para o hall. Recolho o jornal. Leio as páginas de esportes e o caderno de cultura e lazer. Clarinha, bem mais tarde, folheia as páginas chatas. Política, economia, editoriais. Essas partes que dizem ser para gente como ela, meio intelectuais. Confesso que, nos finais de semana, procuro me desvencilhar de assuntos sérios. Deixo para outro dia, a não ser quando algum assunto me chama muito a atenção.

- Se não se incomodar... quero dizer, sei que é sua, mas se puder deixar aquela revista especial com a retrospectiva do ano passado, agradeceria muito. Ainda não tive tempo de ler.

Penso em deixar. Este é meu primeiro pensamento, mas acredito que ela já esteja querendo muito. Talvez queira que eu saia enfraquecido materialmente. Já tinha aberto mão dos móveis, eletrônicos e eletrodomésticos em geral. Quase me restringi as roupas. Certamente Maria Clara não precisaria das minhas cuecas, até porque são muito largas para o seu corpo esguio, ainda que ela tivesse se transformado numa homossexual. Mas depois me arrependi porque nem teria lugar para acomodar aquele maldito exemplar. “Tudo bem – respondi.” Tive de ir ao banheiro recolher minhas tranqueiras. Espuma de barbear, barbeador, minha Close-up verde (ela sempre preferiu a Sorriso, e tínhamos, cada um, o seu tubo de creme dental), minha escova. A escova estava velha, com as cédulas num estado deplorável, nem sei como ela tinha deixado minha escova chegar àquele estágio. Clarinha sempre comprou minhas escovas. E minha espuma de barbear. E minha Close-up. Está certo que às vezes se confundia e trazia a vermelha – que eu detestava – e, pobre coitada, levava um esporro. Imagino que tudo isso possa ser comprado nos hipermercados, acho que vou ter de me virar daqui pra frente.

Só agora que chego ao nosso quarto – que na verdade não é mais nosso, é dela, e vai ser difícil eu me habituar com essa troca de pronomes – é que me vem à cabeça o motivo de eu estar aqui arrumando as coisas e sair pelo mundo afora. Não a traí e, pelo que eu saiba, ela também não está envolvida com alguém. Não houve uma briga que valesse este cartão vermelho. Até a acompanhei ao shopping na semana passada. Não reclamei da falta de vagas no estacionamento, nem do amontoado de gente andando de um lado para o outro sem rumo, sem saber ao certo o que está procurando. Nem da fome que sentia eu reclamei. Foi um simples “não dá mais”. Ok, não dá mais. Por quê? Mulheres não explicam porquês quando não dá mais – isso quem me ensinou foi meu amigo Henrique, três separações no currículo. Pensei que fosse um momento sentimental passageiro, não dei trela na primeira vez, limitei-me a sair e ir tomar um chope com Henrique. Voltei. “Não dá mais”. Outro cara? Fiz algo que não gostou? Já sei, já sei: é porque eu não quis ir ao almoço na casa da sua mãe no mês passado, não é? Não é nada disso. Não é nada disso. Não é nada disso. Quase liguei para o Henrique naquela hora para perguntar se o “não é nada disso” também fazia parte do script e que não tinha mesmo jeito de reverter a situação. Fiz-me de forte. Então tá! – falei. Vou embora. Ela disse que eu não precisava me apressar e que, primeiro, teria de arrumar um lugar para ficar. Agradeci, cinicamente. “Estou pensando em me hospedar no Maksoud. Tem idéia de quanto é uma diária lá?” Ela sorriu, pareceu um bom sinal. Mas em seguida voltou a fechar a cara. Disse para eu não me preocupar porque pretendia vender o apartamento para fazermos a partilha. Podia levar algum tempo, mas ela reconhecia que eu tinha tanto direito quanto ela. Ótimo, menos mal – concluí. Recolhi as últimas coisas do quarto. Pensei em colocar uma foto que descansava sobre o criado-mudo. Eu e Clarinha em Gramado, durante nossa lua-de-mel. Ela linda, sorridente, não se importando com o frio pornográfico da Serra Gaúcha. Eu, carrancudo sob uma jaqueta de couro marrom, morrendo de frio, com uma touca de lã ridícula que jamais teria coragem de mostrar para os amigos da adolescência. Levar ou não levar? Melhor não. Deixa ela aqui, para ela se lembrar de mim. Embora sentisse a nítida impressão de que aquela foto teria como destino uma gaveta ou a parte superior do guarda-roupas.

Antes de me despedir do nosso quarto (que não era mais nosso) ainda me veio à lembrança a noite em que discutimos a possibilidade de ter um filho. “Ainda não – ela disse. Nem terminamos de pagar esta merda!” Emburrei-me. Tentei argumentar que não precisaríamos quitar aquela merda para ter um filho. Não adiantou. Fiquei tão puto que fui para a sala. Acendi um cigarro (e ela não tolerava que eu fumasse além dos meus limites previamente combinados que eram simplesmente a varanda da sala ou a área de serviço. Com a janela aberta). Decidi-me a dormir no sofá. O clima tinha acabado. Aliás, até hoje não sei se realmente eu queria produzir um herdeiro naquela noite ou se simplesmente queria transar. Vinte minutos depois, Maria Clara, sem que eu percebesse, encostou suas mãos suaves em meus ombros e começou a massageá-los. Beijou-me levemente. Alisou os poucos pêlos do meu peito e me arrastou para o quarto. Fizemos amor durante o resto da noite. E ela nem encrencou com o fato de eu ter fumado na sala.

- Bem... já vou.

- Vê se não fica comendo só sanduíche.

- E você, tenta não ficar trabalhando até tarde todas as noites.

- É melhor você colocar uma blusa, está frio. Coloca aquela que eu te dei no seu aniversário do ano passado.

- A verde?

- Não, a azul. Nunca te dei uma blusa verde, Carlinhos.

Despedimo-nos com um abraço. Levou alguns minutos para ela fechar a porta. Não tive coragem de apertar o botão do elevador tão rapidamente. Encostei na porta e suspirei. Ouvi o choro ininterrupto de Maria Clara. As vezes não entendo porque as mulheres choram. Nunca tinha sentido um nó na garganta, mas ele veio sem eu lhe dar permissão. Notei que um vizinho tinha chegado ao hall. O elevador parou no andar poucos segundos depois.

- Desce?

- Desce...

Desci.


(Leia também: "Construção" e "Minha História", contos baseados em músicas de Chico Buarque, na seção Contos.)
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