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Contos-->AMIZADE -- 10/04/2002 - 00:36 (Sylvia Montenegro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Há quem não goste de baratas...
Acho mesmo que ninguém gosta.
Mas, há poucos meses, tive que mudar meu modo de pensar...
Foi quando conheci Batara - resolvi não queimar muito meus neurônios para dar um nome a esta minha amiga porque, afinal, baratas não merecem tanto - ela era diferente.
A primeira vez que a vi foi numa praça, em meio a migalhas de cachorro-quente e pipoca, aqui e ali alguma bola de sorvete que fugira da casquinha, aquela sujeirada de sempre que crianças e adultos, juntos, conseguem criar. Observava com atenção que uma barata se destacava do grupo, ao contrário das que se concentravam em torno dos restos, esta tentava insistentemente subir na carrocinha de pipoca, invadir o trailer de cachorro-quente, e se refrescar às custas do desespero do sorveteiro, que não conseguia expulsá-la. O episódio me comoveu. Aquela barata não aceitava migalhas, era original, e digna.
Não me contive, e antes que o vendedor de sorvetes desse uma impiedosa chinelada na pobre... Me prontifiquei a salvá-la!
Com o meu sanduíche, convidei Batara a me acompanhar, comprei pra ela pipoca e sorvete e fomos nos sentar em um banquinho próximo. Quase posso dizer que vi minha, então, quase amiga sorrir. Batara possuía uma tranquilidade zen e comia como uma princesa, sim, pelo seu comportamento eu tinha certeza, em outra encarnação aquela barata (já era difícil pra mim tratá-la por esse nome asqueroso) fora uma princesa egípcia linda, de olhos pintadinhos e que morrera jovem .
No dia seguinte, lá estava eu de novo, e Batara vinha ao meu encontro, ficamos realmente amigas e lanchávamos juntas enquanto eu observava novas peculiaridades naquele intrigante ser... Notei que Batara contava já bastante idade, pelo seu caminhar menos ágil que o da maioria, o que se somava a um pequeno defeito na perna, resultado de uma fuga alucinante de uma cozinha de restaurante. Ela preferia agora as ruas, evitava habitar residências ou lojas, que isso era para as mais jovens e rápidas, mas tem nostalgia daquela época, era tudo mais limpo e a comida, saudável e saborosa.
Dias se passaram e, semana após semana, nossos laços de amizade se estreitavam, conversávamos, às vezes ficávamos apenas caladas, e ela já subia pela minha perna e chorava suas mágoas em meu ombro.
É claro, havia quem nos olhasse com estranheza, outros, com nojo, mas eu já sentia, no olhar de alguns, um desejo, lá no fundo, de conhecer uma pessoa tão companheira como Batara... Sim, pessoa. Nunca permiti que ninguém se referisse a minha amiga como animal de estimação, ela era por demais humana para isso.
Uma dessas tardes em que a chuva vai embora, deixando só o rastro de mormaço e angústia, fui à praça, fui ver minha amiga. Ao chegar, percebi um certo alvoroço, não era roda de capoeira, nem de crente, nem era engolidor de cacos de vidro ou vendedor de beberagens milagrosas...
Fiquei gelada, meu coração batia de forma irregular... Era o pequeno corpo de Batara (pequeno para humanos, mas grande para baratas), estava ali, fora atropelada por um carro, as pessoas riam, mas senti que algumas silenciaram quando cheguei. Tudo silenciou e assim mesmo, neste silêncio foi que o sorveteiro acomodou Batara em uma casquinha de sorvete, enquanto o vendedor de cachorros-quentes abria a pequena cova no canteiro e o pipoqueiro forrava-a com um saquinho de pipoca. Tudo aconteceu em poucos minutos, foi um enterro digno e humano, como merecia aquele serzinho. Ouvi alguém chorar.
A multidão silenciosa, aos poucos foi se dispersando, e fiquei ali, silenciosa como estou agora. Batara sabia atravessar ruas como ninguém, sempre na faixa e no verde, ela se reconhecia naquele bonequinho verde! Não havia razões para o que aconteceu, a não ser a tristeza de não poder ser humana, de ser tratada como barata, de sofrer preconceitos, ser odiada, repelida...
Minha amiga se percebia cada vez mais como pessoa, porém, continuava barata. Isso a deprimia.
Agora me sinto culpada, penso que iludi minha fiel companheira com tanta consideração e amizade...
Tenho certeza que Batara, naquela tarde, se posicionara à frente daquele Lamborguini vermelho e esperara pela morte.
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