Usina de Letras
Usina de Letras
75 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62236 )

Cartas ( 21334)

Contos (13264)

Cordel (10450)

Cronicas (22537)

Discursos (3239)

Ensaios - (10367)

Erótico (13570)

Frases (50635)

Humor (20031)

Infantil (5434)

Infanto Juvenil (4769)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140808)

Redação (3307)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6192)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->Instintos -- 20/05/2000 - 04:32 (Gerson Espindola serpa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Instintos


CAPÍTULO I – O MÉDICO E O MONSTRO


Um inverossímil senhor Hyde, desempenhado debilmente por um ator inexpressivo, perse-guia a frívola e deslumbrante mocinha que, não obstante ser o contraponto da trama, por desencade-ar em doutor Jekyll os desejos mais recônditos, não possuía nas cenas uma ação maior que uns pou-cos gritos histéricos e alguns muxoxos. Num último e vigoroso espasmo de sobrevivência, o doutor Jekyll irrompe dos abissais da psique humana e procura, monótona e apaticamente, salvar, das gar-ras do seu outro “eu”, a si próprio e a jovem indefesa por quem se afeiçoara.
Conquanto considerasse uma obra imortal da Literatura Mundial, esta adaptação de “O Mé-dico e o Monstro”, a que assistia Alfredo era grotesca e desinteressante para Solange, professora universitária e esposa leal e apaixonada. A narrativa alternava seqüências arrastadas e cansativas com momentos tumultuosos de excessiva celeridade e confusão. Os primeiros arrancavam da espo-sa de Alfredo bocejos recorrentes que a impeliam a lançar, ao entretido marido, um olhar lânguido e pedinchão. Os segundos, longe de despertar algum interesse em Solange, só alimentavam suas espe-ranças de que a película terminasse. Esperança que logo se esvaía, assim que o ciclo entediante re-começava.
Alheio à péssima qualidade desta versão de “O Médico e o Monstro”, Alfredo demonstrava um interesse incomum e incompreensível por este filme que, além de classificar-se entre os de quarta ou quinta categoria, já houvera assistido duas ou três vezes em menos de um mês. E, tendo sempre a mão o controle remoto do aparelho, percorria os outros canais a cada reclame que entre-meava a tão desoladora versão.
 Agora, ele pula o muro e alcança a mocinha próximo àquela murada. - Dizia ele para Solange sem desviar a atenção da tela da televisão.
 Alfredo, vamos dormir, meu amor! Já são dez para as duas da manhã. - Instou Solange bocejando.
 Já está quase acabando. Vá indo você que eu vou em seguida!
 Você vai mesmo?
 Vou.
Não foi. Alfredo permaneceu ainda, por pelo menos uma hora mais, diante daquele aparelho de tevê. Entretanto, agora, que encontrava-se só, os pensamentos que secretamente povoavam-lhe o espírito, obrigando-o a dissimular perante à esposa, desta feita, vieram-lhe de chofre e de maneira tão intensa que nem mesmo os acutíssimos gritos da protagonista da trama obtiveram o obséquio da sua atenção. Seus pensamentos entrelaçavam-se a sentimentos difusos e imprecisos, forjando um cordonete de dúvidas e insatisfações que tanto lhe asfixiava as emoções quanto lhe tolhia o raciocí-nio. Perdeu-se em divagações extremadas e, ao retornar do intempestivo mar de antagonismos, ad-vertiu os chuviscos na tela da televisão...
Solange, em contrapartida, ao chegar ao quarto, imediatamente abraçou-se ao travesseiro e, em decúbito dorsal sobre a cama, encetou um pranto solitário que lhe acompanharia até que a exaustão e a mágoa se rendessem ao sono. Sabia que Alfredo não viria: sua prática fugaz repetira-se metodicamente nos últimos três meses. E, assim, a suprema mágoa e a infinita melancolia, que so-mente a uma mulher preterida é dado conhecer, instalaram-se em seu quarto conjugal, em seu leito de núpcias, dentro do seu peito.

CAPÍTULO II – DA XÍCARA DE CAFÉ


No dia seguinte, apesar de toda pressão que à índole feminina impõe o epidérmico interesse masculino, Solange procurou parecer o mais natural possível aos olhos do marido. Atentava para um alvitre de sua mãe o qual prognosticava que a admoestação ou a repreensão nestes casos, não raro, mais afetam a relação e obstruem o entendimento que qualquer benefício que eventualmente pudessem auferir. Todavia, e não obstante todas as forças que Solange reunira para prosseguir neste desígnio, a falta de alento e o sentimento de desprezo, que as atitudes de Alfredo ensejavam, mina-vam pouco a pouco e inexoravelmente seu ânimo, seu amor e sua paz. A última gota era inevitável e verteria da xícara de Alfredo, quando ele, inadvertidamente, deixou cair o café no chão da cozinha.
 Alfredo! Será que você é incapaz de beber alguma coisa sem derramá-la no chão? – Pro-testou Solange, colocando ambas as mãos sobre o cabo da vassoura.
 Não se trata disso, meu bem. É que eu estava distraído e aí... – Tentava Alfredo contem-porizar quando foi bruscamente atalhado por Solange.
 Estava distraído? Alfredo, você já nasceu distraído. Talvez, tenha sido por isso que você incorreu no erro de se casar comigo. – redargüiu Solange, a esta altura, encolerizada e dando vazão a sentimentos tão inóspitos quanto represados.
 Mas, meu amor, eu me casei porque te amo...
 Ah! Você me ama? Será que você me ama tanto quanto às suas amantes?
 Mas de que diabos você está falando?
 Ora, Alfredo, prá cima de mim? Então, com quem é que você está transando este tempo todo? Sim, porque a mim você não procura faz muito tempo. Aliás, você está sempre alegando al-gum pretexto para me evitar: ora é um trabalho urgente que não pode esperar até o dia seguinte, ora é um mal-estar súbito e tão duvidoso que, ao primeiro momento em que se encontra só, você mira-culosamente se restabelece. Ao menos tenha mais imaginação, Alfredo!
 Mas, meu amor, não é nada disto. Você não está entendendo...
 Ah! Eu não estou entendendo? Ainda mais furiosa com a aparente calma de Alfredo, So-lange largou a vassoura no chão e prosseguiu, descontrolada. Então espera! Deixe-me adivinhar! Agora, você é padre? Está usando batina escondido? Não, padre não. Você levaria toda a paróquia à loucura e até mesmo o Papa não agüentaria o seu cinismo...Você é viado? Vamos, Alfredo! Você agora é gay?
Alfredo, por mais que se esforçasse, não conseguia atinar o quê houvera com sua esposa. Estava atônito. Como uma simples mancha de café pode gerar tanto desentendimento? Que cami-nhos mentais percorrera Solange para inferir semelhante ilação? É bem verdade que não a procura-va há algum tempo, mas daí a imputar-lhe uma amante vai uma diferença considerável. Aliás, trata-va-se até mesmo de uma injúria, dado o comedimento e a morigerança com que sempre pautou sua vida familiar. Mas viado? Ser chamado pela própria esposa de viado era inadmissível. Sendo ela a própria repositária de todo o seu amor, seus sonhos e auto-estima, tal ofensa tratava-se de um pode-roso golpe desferido contra os seus sentimentos, suas realizações e seu orgulho. Todo o seu instinto masculino protestou e Alfredo retirou-se colericamente, batendo a porta da sala.
Solange, logo após a saída de Alfredo, deteve-se ainda algum tempo defendendo suas ra-zões. Afinal de contas, fora ele que, através de sentimentos machistas, engendrara toda essa situa-ção. Por que um homem é incapaz de manter a sensibilidade e a candura dos primeiros anos? Que ser malévolo habita no homem para fazer com que ele, após solidificada a conquista, despreze a que elegeu e necessite furiosamente de uma outra? Por que cargas d’água não poderia ser ele igual a ela para quem Alfredo era o único e suficiente?
Todavia, logo em seguida, a lembrança de seus pais, do seu casamento e, sobretudo, um sentimento misto de fracasso e depressão que inesperadamente lhe acometeu fizeram com que So-lange larga-se o corpo sobre uma cadeira, novamente aos prantos.

CAPÍTULO III – DAS CONFISSÕES


 O que é que você está fazendo aqui, Alfredo? Numa tarde de sábado? Separou-se da So-lange?
 Não, o que é isso? Tivemos um pequeno desentendimento sim, mas está tudo bem.
Alfredo necessitava desatar o nó que se formara em sua garganta. Havia dores e ódios inso-pitáveis num único peito, volumosos em demasia para uma única alma. Seus tentáculos açambarca-vam toda uma existência e necessitavam, para o bem prosseguir da experiência e para o arrefeci-mento do coração, verter em escapes disponíveis e acessíveis.
Entretanto, era com extrema dificuldade que o fazia. Que vertia o fel que lhe transbordava o íntimo. Temia tornar público a intimidade de seu lar, tamanho era cumplicidade que sempre manti-vera com Solange, e a idéia de que um juízo incorreto de sua esposa ou dele mesmo brotasse de seu desabafo, fazia-lhe escassear as palavras.
Permaneceu, assim, monossilábico até que alguns copos de cerveja lhe vencessem as resis-tências e um pensamento o encorajasse a atitude: sua intimidade resumia-se à Solange que era, a um só tempo, a vítima e o algoz de suas vicissitudes. Assim, inicialmente através de circunlóquios, mas agora às claras, através de precisas denotações, o interlocutor de Alfredo foi aos poucos tomando ciência de todas as mazelas domésticas que uma simples xícara de café é capaz de engendrar.
 Dizem que o sexo com a mulher amada é o mais sublime dos prazeres, entretanto, fazer amor com Solange parece-me insosso, uma atitude mecânica e obrigatória, uma burocracia conju-gal. – Falava mais para si que para outrem, enquanto acendia um cigarro emprestado, apesar de ter parado de fumar há três anos.
 Mas você se sente atraído por outras mulheres?
 Sim, é claro!
 Neste caso, o problema não é você, é a Solange.
O interlocutor era Juvenal Aleixo, um antigo amigo de bairro com quem, além da primazia no futebol e do melhor desempenho escolar, disputara a doce e bela Solange nos idos bailes de dis-cotecas. Os afazeres da idade madura e a opção de escolha de Solange encarregaram-se de os sepa-rar. Entretanto, a contemporaneidade, mesmo que contendora, e a convivência no mesmo bairro tratava de os reunir, ainda que esporádica e superficialmente.
 Eu cheguei mesmo a duvidar de minha própria masculinidade, Juvenal.
 Mas o que é isso, rapaz? Você não está indo longe demais, não, Alfredo?
 Juve, Solange hoje é uma balzaquiana que manteve a beleza e a graça juvenil, acrescen-tando ainda a elas uma compleição firme e magnífica. Não ignoro que seus atributos físicos incitam olhares insidiosos por onde quer que vá. Com mil diabos, por quê, então, não consigo me sentir atraído mais por ela?
 Tranqüilize-se, rapaz! Você não disse que as outras mulheres ainda o atraem? En-tão...Calma! Dê tempo ao tempo! Respondeu Juvenal cobrindo a boca com um guardanapo que mal disfarçava um sorriso vindimado nos cantos dos lábios. Façamos o seguinte: você me espera aqui que eu vou lhe apresentar uma amiga!
 O quê? Quem?
CAPÍTULO IV – A OUVINTE


Era uma jovem com pouco mais de vinte anos, muito atraente e desinibida. Após as formali-dades de apresentação, não tardou muito para que, com um sorriso encantador e um olhar enigmáti-co, centra-se todas as atenções sobre si.
Alfredo, ainda que embriagado, recolhera-se dentro de uma antiga timidez, que os vários anos de casamento fizeram-lhe acreditar que não mais existia. Sentia-se desastrado e infantil nos pormenores de suas atitudes e repreendia-se mentalmente por estes equívocos involuntários atribuí-dos à falta de hábito. Por outro lado, um sorriso amarelo e uma atenção circunspecta às palavras de sua interlocutora cuidavam de sua postura exterior.
Conquanto todo o esforço para parecer natural, Alfredo malogrou infinitamente. Entretanto, sua autoconfiança retornava timidamente, a medida que sua nova amiga demonstrava um maior in-teresse por ele. Efetivamente, a falta de jeito e de tato de Alfredo parecia-lhe divertir o humor e cortejar seu poder de sedução.
Quando o amigo de Alfredo retirou-se à pretexto de cumprimentar uma outra amiga, obse-quiou e retirou-se da mesa sem deixar saudades, o tema predominante do assunto desviou-se lenta-mente das banalidades cotidianas para a esfera pessoal de ambos os recém-conhecidos. Esta guinada na conversa deixou Alfredo ainda mais à vontade e, o mais, a simpatia e o carisma de sua amiga encarregaram-se de obter.
 Mas você gosta de sua esposa, não gosta? A medida que proferia estas palavras, a mu-lher cruzava as pernas lentamente, mordiscava a azeitona do Campari e olhava profundamente nos olhos de Alfredo numa seqüência sensual e inquiridora.
 Sinceramente? Eu já não sei de mais nada: por vezes, eu a amo profundamente e me fica a certeza disto; por outras, pequenos detalhes que dentro de um casamento é tudo levam-me a crer que não mais estou apaixonado por ela. – Alfredo levantou os olhos para a mulher que inconscien-temente tentava evitar e, não obtendo nenhuma palavra em resposta, prosseguiu de chofre – Não falo isto para eximir-me de responsabilidades. Não me interprete mal! Se o digo é porque, de fato, estou sentindo muita necessidade de me abrir com alguém e você me pareceu uma pessoa excelente, além de ótima ouvinte...
 Está necessitando de uma ouvinte? Hum! Normalmente, eu não me presto a este papel, no entanto, abrirei uma exceção por um único motivo: gosto de sinceridade num homem, faz-lhe parecer maduro; e gosto ainda mais dos elogios excelente e ótima.
Sorriram juntos.


CAPÍTULO V – SUICÍDIO INVOLUNTÁRIO


Na manhã seguinte, um enorme mal-estar acometeu Juvenal em decorrência dos excedentes da noite anterior. Entretanto, ao tomar posse de sua trôpega consciência, este seria o menor de seus males: toda a sua alma revestia-se de remorsos e inquietações. Apegara-se, na noite anterior e sob os auspícios de Baco, à idéia de que não mais amava Solange. Não poderia amá-la; caso contrário, como explicar a inapetência sexual que tanto o humilhava? Parecia-lhe justo pensar que Solange fazia-lhe mais mal que bem e isto revestia de licitude quaisquer de seus atos. Mas, agora, tendo os primeiros raios da manhã por testemunha e deus-sol por confidente, nada disto lhe parecia tão claro. Posto que é próprio do sol apontar os delitos que a noite mascara com sua dignidade cortesã. Se por um lado, tinha sido sim bastante magoado; por outro, suas providências foram descabidas, super-valorizadas, talvez, até mesmo draconianas. Eram os raios solares quem o dizia, peremptoriamente.
Ao abrir a porta, deparou-se com Solange dormindo no sofá da sala, tendo a televisão ainda ligada a sua frente e a paz de espírito de uma criança no semblante. A simples visão de seu sono, de sua paz e de sua singularidade asseguravam a Juvenal que ainda a amava. Amava Solange, sabia-o agora e a amava por demais.
 Meu Deus, como a amo! Sussurrou enquanto desligava a televisão e sentava –se à frente de Solange para contemplá-la, para vigiar-lhe o sono, para se desculpar. Meu Deus, como poderia viver sem ela? Agora, posso ver tudo tão cristalinamente. Eu te amo e sempre te amarei, meu amor. O que será que eu fiz Que pérfidos motivos incentivaram-me a derrocada? E se Solange não me perdoar? O que será de mim? E dela? Perder alguém que se ama assim é muito mais que morrer por dentro; é um suicídio involuntário.
Não pode mais agüentar a perda que se avizinhava e, num gesto de último desejo, ajoelhou-se próximo à esposa e, aos prantos, abraçou Solange; como se abraça alguém pela última vez. Quando as lágrimas de Alfredo tocaram-lhe as faces, Solange despertou num sobressalto, fazendo Alfredo irromper em prantos mais intensos e cingir-lhe ainda mais forte entre os braços.
As lágrimas acusadoras e as culpas mudas de Alfredo desataram em Solange o nó górdio do desacalanto e da mágoa que, sob a forma de lágrimas, juntaram-se as de Alfredo. Assim permanece-ram por um longo período de tempo até que nasceu por dentre a cachoeira de lágrimas e dores, um beijo tão inesperado quanto apaixonado. Sem emitir uma única palavra, os cônjugues tudo disseram um ao outro e, ali mesmo, na sala, tornaram-se novamente ardentes amantes.
GERSON ESPINDOLA SERPA
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui