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Cartas-->Meu Jovem Pai -- 11/06/2002 - 15:22 (Valéria Tarelho) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
MEU JOVEM PAI

Meu pai faleceu aos 48 anos. Era jovem e — por ironia, talvez predestinação — chamava-se Jovem.
Teve vida intensa, muitos amigos e um vício: a bebida. Contava piada como ninguém, um humorista nato que divertia muitas rodas de "amigos" nos bares da vida — e fez chorar uma família inteira. Convivi 18 anos com ele em um inferno! Bebia de inverno a inverno sem descanso, e sem dar descanso. Minha mãe tinha um carma, não um marido. Eu simplesmente não tinha nada (a não ser o mesmo carma). Não tinha o pai que eu sonhava: um simples, humilde e carinhoso pai. Tinha lá seus raros dias de sóbrio. Nesses dias, era outro homem. Chegava a ser próximo ao protótipo do pai sonhado. Tive pai em poucos momentos; nos demais, coabitava com o medo. Eu achava que só tínhamos uma saída: a morte dele. Que descansasse em paz e que a paz reinasse em minha casa — que estava longe de ser um lar. Orei tanto, tanto roguei aos prantos que um dia aconteceu. A bebida, sua fiel companheira, enfim mostrou suas garras e seu poder de destruição — destruição daquele corpo que a amava, porque o resto de nós já estava destruído. Ele se foi, eu chorei. Chorei pelos anos perdidos, por sua ausência desde que nasci, pelo que podia ter sido, pela oportunidade que ele próprio perdeu de conhecer os futuros netos; de conhecer suas próprias filhas. Não foi um choro de saudade ou pelo vazio que ele deixaria, como este que choro agora, 22 anos depois, quando, enfim, compreendo que ele também sofria por ser dependente (e que era doente). Foi um choro de alívio.
Nas raras vezes em que não bebia, parecia querer viver cem anos em um dia. Nesses dias (poucos dias) ele se revelava um bom pai. Por vergonha (imagino), fingia-se esquecido de tudo o que havia feito e eu fingia que acreditava no seu esquecimento, deixava de lado o rancor para aproveitar o momento tão especial e incomum. Foram tão parcos que me lembro de todos ainda hoje. Também não esqueço as brigas pela constância e violência.
Hoje sei que apesar dos danos que trago na alma (e dos traumas), o maior mal foi em causa própria. Não viu as filhas encaminhadas na vida (graças à minha mãe, mas isso não importa), não conheceu os netos lindos, inclusive os meninos — os filhos que ele não teve. Em todos eles alguma semelhança com o ausente avô: seja no andar, no porte físico, na cor dos olhos. Meu pai tinha lindos olhos azuis, em dias de sol, e verdes, em tempo e humor ruins... era um camaleão. Não conheceu principalmente os pais de seus netos, maridos de suas filhas; todos PAIS no significado mais amplo da palavra: dedicados, amorosos, presentes. Os pais de meus filhos não bebem — sempre mantive distância de quem ingeria álcool — mas foi coincidência ter me casado com completos abstêmios, ou fui poupada pelos deuses. Acredito que já passei por sofrimento demais em virtude dessa doença e que agora eu mereça paz.
Sinto-me feliz por meus filhos terem pais tão maravilhosos. Realizo-me por eles, e vibro! Oro e peço por esses pais, para que possam estar presentes por muitos anos ao lado das nossas crias; oro para que meus filhos valorizem essa presença. Peço a Deus, em oração, também por meu pai, para que ele tenha paz agora... Essa mesma paz que só hoje sinto, porque o compreendo, perdôo e homenageio. Se, devido às circunstâncias, ele não foi o pai que eu queria, foi o único que podia ser. A seu modo, em meio a dor e aparente desamor, ele me amou.



Valéria Tarelho - 11/06/02
http://www.poesiailustrada.hpg.com.br
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