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cronicas-->Barriga Fracassada -- 26/01/2002 - 12:33 (Athos Ronaldo Miralha da Cunha) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Há alguns dias, folheando um antigo álbum de família, deparei-me com uma foto datada de 01 de janeiro de 1941, eram os ferroviários dentro de um depósito, toda uma turma, sorridentes, alvorotados, engraxados, naquela tradicional pose de time de futebol, os da frente agachados e os de trás em pé, bem ao fundo via-se, no meio da penumbra do ambiente, uma Maria-Fumaça.
As suas fisionomias demonstravam que aqueles homens estavam felizes. A foto foi tirada na comemoração da passagem do ano novo. Naquele depósito, muitas vezes insalubre, os operários suavam no trabalho, sujavam seus macacões de graxa, calejavam as mãos e viviam uma vida simples de homens simples que sonhavam felizes um futuro melhor para seus filhos. Os mais "craques", jogavam na várzea no sábado à tarde, outros jogavam bolão no Grêmio Ferroviário, canastra na Associação e frequentavam a missa das dez aos domingos na capela, iam com a melhor roupa que tinham, acompanhados das esposas e da filharada que fazia muita algazarra em frente da igreja.
Reportando-me aqueles áureos tempos fiquei imaginando o tumulto na estação, o vaivém dos guarda-malas. O aceno com o chapéu ao amigo que acabava de chegar. Dali a pouco o chefe da estação batia o sino e o trem partia rumo a fronteira. O andar trópego do velho carregador de malas, curvado pelo tempo e lento pelos anos vividos. No outro dia o mesmo burburinho e pessoas indo e vindo por este mundo de Deus.
O Seu Joaquim, um dos mais conceituados funcionários da viação, que não era de fazer voltas e não media as palavras, quando o salário não comprava o rancho do mês era comum os seus reclames, principalmente quando um "graúdo" da empresa estava em visita, inspeção ou apenas de passagem na velha estação lá de Ramiz Galvão, primeira parada após Rio Pardo. As lamúrias eram sempre as mesmas:
- Assim não dá "dotor", com este salário não dá pra comprar a comida, o senhor sabe né, a gente fica com fome, e a gente com fome a barriga vai fracassando... a barriga vai fracassando "dotor".
Tanto repetiu este discurso que passou a ser chamado de Barriga Fracassada.
E o Barriga Fracassada ía fazendo história no barulhento depósito da Viação.
-Assim não dá "dotor", a barriga vai fracassando. Fracassando "dotor".
Também não consta que o salário tenha tirado sua barriga do fracasso nos anos seguintes, por outro lado, sabemos o destino de maior abandono que foi relegada à Viação e os seus funcionários pelos governos vindouros. Hoje, para acobertar este descaso ou negligência administrativa, de malha em malha fomos privatizando a rede ferroviária. Em pouco tempo, a bordo de um trem bala que nos leva a Porto Alegre, teremos esquecido que a Rede foi grande sendo pública, que os ferroviários foram uma das categorias mais organizadas deste país e que a Cooperativa da Viação foi uma das maiores da América.
Naqueles longínquos e romànticos anos 40, em que o tempo passava com morosidade, a Maria-Fumaça fumegava trilhos à fora, levava e trazia sonhos e saudades para cada estação à beira do seu caminho. No depósito da Viação Férrea, no meio da graxa e das ferramentas o Seu Joaquim batia martelo nas bigornas, o dia todo, anos a fio.
Batia bigornas e reclamava do salário. O Seu joaquim, de Ramiz Galvão, o velho Barriga Fracassada.

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