A seleção brasileira de futebol entra em campo. Mídia, anunciantes, todos de mãos dadas convocam os cidadãos-torcedores para o pacto maior, torcer para onze jogadores, verdadeiros símbolos da galhardia nacional.
Sem muita opção de lazer, restrita a televisões abertas com programação de baixa qualidade, a multidão de 180 milhões de almas se abraça, louvando alguns indivíduos que conseguem fugir dos baixos salários e condições de vida bastante difícil para exorcizar todos os demônios e mazelas sociais.
O transe pode durar noventa minutos no caso de um amistoso, ou um pouco mais se a competição for a Copa do Mundo. Neste momento os milhões de fiéis torcedores procuram coisas verdes, amarelas, azuis. O compromisso hipnótico devora as almas, pintas as ruas, as faces, enfeita quarteirões, restaurantes e escolas. A pátria, a cidadania finalmente tem forma. E todos podem carregar nas cores verde e amarela maquiando prédios e residências.
Com ou sem vitória, a cidadania da pátria sem chuteiras termina em poucos dias. Então é a vez dos garis entrarem em campo recolhendo restos de foguetes, roupas, purpurinas e bandeiras estraçalhadas pelo vento, sobras da guerra futebolística.
A cidadania da vibração, da festa efêmera, vira lixo nas ruas, sinal maior que não existe respeito coletivo. Ninguém sabe quem colocou as faixas, espalhou lixo, amontoou esquinas com latas e garrafas de cerveja. Passou o jogo, passaram os sentimentos coletivos.
É quando os cidadãos deixam de ser integrantes da sociedade para se tornarem indivíduos, como afirmou Sartre. Vou mais longe, o cidadão que se despoja do sentimento coletivo deixando detritos espalhados é um elemento, aquela coisa mal definida que os policiais militares tão bem sabem classificar ao deterem um transgressor.
A cidadania antes compartilhada pela alegria e futilidade dos jogos de futebol vira um espetáculo egoísta, descompromissado, sem a menor responsabilidade. É uma cidadania às avessas, besta, já que obriga os cofres públicos a eliminar uma sujeira que poderia ser controlada.
Alguns sociólogos afirmam que jogos de futebol no Brasil permitem uma catarse, mas isso ocorre apenas em caso de derrota, pois a expiação dos pecados recai sobre os técnicos e jogadores, que de heróis passam a vilões em segundos.
Assim a sociedade estabelece seu compromisso descompromissado, buscando no futebol da seleção motivação espúria para se movimentar, e como na lei do eterno retorno, resta o lixo ao final da festa maior da cidadania sem compromisso. Retratos do Brasil.
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