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Contos-->RÃ-CÁLCIO -- 21/05/2000 - 22:41 (márcia carrano) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

O primo distante, farmacêutico formado, entrou casa adentro. Após a troca inicial das frases de praxe, "como foi a viagem", "tudo bem", "como vai a mulher", etc e tal, a bomba veio, esparramando esperança na casa de dinheiro assalariado.
— Olha, Mané — dirigiu-se ao pai da menina — tenho um negócio excelente pra nós... — Ora, já vem você com seus negócios!— interrompeu Manuel.
— Calma, sô! Nem falei ainda. É coisa boa mesmo. Um laboratório, fabricação de remédios. Afinal, disso eu entendo. Ou meu diploma de farmacêutico não vale pra nada?
Manuel, ainda desconfiado, ouvia as explicações do primo Tonho: fabricação de vitaminas, de tônicos; custo baixo, lucro alto. E Tonho, com seu jeito convincente de falar, seu anel no dedo, foi devagarinho vencendo a resistência do primo de salário curto. E arrematou sua explanação procurando causar efeito, lançar o foguete da esperança para o espaço:
— Olha, primo, é deitar e deixar o dinheiro cair.
A menina esperta, gordinha e corada, ouvia atentíssima a conversa, com o anonimato que os minguados quatro anos de vida lhe davam. Adultos, quando falam de assuntos sérios, não costumam perceber criancinhas caladas, que , fingindo-se de tolas, cantarolam ou brincam como se nem estivessem por perto. Ninguém sequer notou sua presença. E ela ali , com a cabeça fervilhando. Papai ganhar sem trabalhar! Quem sabe assim deixa eu despentear os cabelos dele? Brinca comigo. Conversa. Tira aquele terno, aquela gravata, aquele ar sério . Ih! Ele pode até perder a hora, tirar o relógio do pulso... frio o tique-taque! Me levar pra escolinha. Aí os meninos vão parar de rir de mim, me chamar de lua. Vão saber que tenho pai, que não estou sozinha. Já pensou papai rindo, brincando? sujando os pés de areia, me colocando no colo? E os chocolates, os brinquedos, as férias na praia, casa bonita, casa da gente mesmo, não esta de aluguel. Tudo dançava na imaginação de Cecília , num maravilhoso baile de conto de fadas, mas nada lhe parecia tão fantástico quanto a possibilidade de o pai, príncipe enjaulado nas mesas do escritório da fábrica de tecidos, passar a ter tempo para ser carinhoso, disponível, presente. Brinquedo nenhum se mostrava tão fascinante em sua fantasia como ter o pai mais perto, mais pai. E ficou sonhando com o laboratório, os tônicos.
E, com a sociedade que acabou se realizando, vieram os vidros de vitamina, os tônicos, tudo em embalagens grandes,bonitas. " Era só deixar o dinheiro cair e ela ganhava um pai, um pai de verdade" , pensava a garotinha.
Mas o tempo foi passando, passando... os quartos da casa se enchiam cada vez de mais vidros de remédio. O dinheiro ficando mais raro do que antes. O pai, mais sisudo. Os sorrisos, mais escassos. Até a mãe, que era sempre divertida, andava quieta, preocupada. Cecília não gostava de ficar assistindo , apenas assistindo, sem ajudar. Se o primo do pai dissera que o dinheiro viria fácil, pensava ela, era verdade. Alguma coisa devia estar faltando, alguma coisa...
Do alto de sua sabedoria de criança, começou a pensar, a pensar e. O que faltava era propaganda. Isso mesmo! Propaganda igualzinha às que vivia ouvindo no rádio. A cabeça trabalhou depressa. Todo mundo aperta minhas bochechas. "Que bonitinha! Coradinha!" E, heuristicamente, Cecília encontrou solução para o caso. Preparou-se para começar seu "trabalho" no outro dia cedo. Por falta de comercial, o pai não ia deixar de ganhar dinheiro. Aquele vidro esquisito — Rã-Cálcio — com certeza daria muito lucro. Pena que fosse uma caixa tão séria, sem figurinha nenhuma. A menina sabia que não poderia ir muito longe. As pessoas sentiriam sua falta. Mas havia a farmácia do doutor Melido bem perto de sua casa.
Saiu de manhã e postou-se na porta da botica. Esperou o primeiro freguês, o coração batendo forte, o sonho de o pai ganhar dinheiro ficando próximo.Preparou-se. O primeiro comprador em potencial passou por ela e nem disse nada. Decepção! Mas veio vindo uma mulher e, como sempre outros faziam, beliscou as bochechas da menina e soltou a frase esperada:
— Bochechinha corada. Vermelhinha!
O coração de Cecília pulava no peito que nem cavalo bravo. O pai sorrindo, pertinho... conversando... a mãe alegre como sempre... os chocolates, as férias permanentes... o dinheiro caindo, caindo... E a coragem faltando. Vão rir de mim... Mas a lembrança de alegria no rosto do pai, como já havia visto em algumas ocasiões — raras, é verdade — , lhe deu força para vencer a timidez. E largou no ar a frase que havia planejado: — Eu tomo aquele remédio ali — e apontou para a prateleira onde estava o vidro de tônico. E reforçou: — Eu tomo Rã-Cálcio.
Cecília não percebeu qualquer reação. Será que falei muito baixo? Ah! mas consegui falar. E não desanimou.Continuou firme em seu posto na porta da farmácia. Estranhar sua presença, ninguém estranhava. Ela vivia rondando as lojas, o armazém, a oficina e tudo o mais que havia perto. Já era conhecida. Por isso, foi sem despertar muita atenção que ela ficou o dia inteiro na botica do doutor Melido. De vez em quando, corria até sua casa para que não dessem falta dela. Depois voltava e continuava a proeza de comunicar que tomava Rã-Cálcio.
Fez assim por vários dias. E foi ficando até mais atrevida. Antes que lhe apertassem as bochechas, já ia dizendo:
— Olha aqui, moço, eu tomo Rã-Cálcio.
Em casa, ansiosa, esperava ouvir a conversa dos adultos sobre o aumento das vendas. Esperava. Esperava. E nada.
Mas um dia ouviu o pai dizendo para a mãe:
— Sabe, Maria, vamos tirar os vidros daqui. Desocupar os quartos, que estão entulhados.
Cecília exultou. Venderam tudo. Deu certo! Agora é só esperar o dinheiro cair. Ah! o calor de aconchego em colo de pai... como seria? A voz da mãe torna a menina atenta novamente:
— Por que, bem? Não gosto de bagunça, mas não estou reclamando.
— Num é isso não, querida. É que acabei com a sociedade. Essas idéias de Tonho nunca dão certo. Melhor sair antes que as coisas se compliquem mais. Até agora só prejuízo... Pra mim chega! Cecília abalou-se terrivelmente com a notícia. Passou dias sem comer direito. Ela, sempre gulosa, rejeitava até chocolate. Ficava horas e horas abraçada com seu cachorrinho, tristonha, cabisbaixa, escondida no seu cantinho solitário, do lado de fora da casa. Ninguém entendeu o motivo de seu recolhimento nem de sua melancolia. Mas não havia muito tempo para conversas com criança. Jamais saberiam que Cecília perdera sua primeira campanha publicitária. Isso nem ela mesma sabia. O pior é que o pai nunca chegaria a descobrir que a filha sentia falta do carinho, do sorriso, do aconchego dele.
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