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Contos-->Manhã de Outono -- 21/04/2002 - 18:00 (Richard Sterr Cory Jr) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Un souvenir heureux est
peut-être sur terre
Plus vrai que le bonheur
ALF. DE MUSSET


- Boa noite, tchau
- Tchau
Mas Marcos não desligou. Deixou-se ficar ali, a ouvir tudo o que o silêncio daquelas duas respirações tinha para dizer. Não diz muita coisa, viria a concluir. O silêncio, que para Marcos havia se tornado de um certo modo inquietante, durou apenas alguns poucos segundos na contagem fria e indiferente do relógio, mas durou, ou pareceu durar, longos e inacabáveis minutos na contagem feita pela emoção daquele momento, daquele coração que esperava ouvir em breve a voz terna e suave que tanto lhe provocava os sentidos. Ou talvez não fosse isso, fosse apenas uma contagem, não menos indiferente, mas mais demorada, que o tédio realiza.
- Tchau
Foi essa a última palavra que Marcos ouviu da boca que tanto amara. E, curioso, notava ele, a voz não parecia mais tão terna e tão suave como ele estava acostumado a achar. Parecia sim um pouco distante deste mundo, como a voz daqueles que cantam o requiem na missa dos mortos. Depois desta palavra, o que se ouviu foi o sinal mecânico e maçante que avisa que é hora de colocar auscultador no gancho. No entanto, Marcos, que ficou ali a ouvir aquele som, percebeu que este pulsava num ritmo compassado, tal qual seu coração, sem acelerar, sem diminuir, enfim, indiferentemente. Marcos estranhou sentir-se assim, nem um pouco atordoado com o que sucedera. Ah, só mais uma dessas brigas, pensou, logo passa. No entanto, aquele som começou a ganhar um novo colorido, a ganhar uma nova forma. Ele permaneceu ali, e, entrando nesse jogo, pôs-se a decifrar a mensagem. Em breve concluiu que tudo o que o som dizia era que não havia mais ninguém para falar, e, mais ninguém para ouvir. Só isso. Ou tudo isso. Pousou lentamente o auscultador no gancho e ligou o som.
Abriu o vinho, pegou a taça. Uma, duas, três foram as taças que ele tomou. Taças que estavam cheia de um vinho doce e purpuro que a todo gole lhe trazia à memória a lembrança dela. Talvez pela semelhança de cor com o cabelo, ou talvez pela doçura e suavidade de ambos. De repente, o mesmo vinho que lhe trazia tão amistosas lembranças, fez com que Marcos se lembrasse de sangue. Bobagem, pensou, é hora de parar. Deixou a taça de lado e pegou um livro. Um livro banal, meteu-se a folhea-lo, gostou do enredo, pôs-se a lê-lo. Estória simples, mas que a cada página ia tomando contorno de clássico da literatura. Marcos percebeu que as palavras estavam carregadas de uma conotação imensurável, e, ali naquela estória, conseguiu ler tudo o que queria dizer. Talvez, fosse o vinho.
Cansado da leitura, que havia perdido o brilho das páginas iniciais, dirigiu-se a cozinha. Olhou ao redor, e sentiu aquele branco intenso entrar por seus olhos e espalhar-se pelo seu corpo, e com todo o branco dentro de si, Marcos sentiu que aos poucos seu corpo ia manchando-o. Sentiu-se mal, sentiu náusea, correu e abriu a janela. A brisa fresca e úmida de uma madrugada que se iniciava fez com que ele recuperasse os sentidos. Sentindo o leve toque suave e doce dessa brisa, Marcos deixou-se levar a um mundo de sonho. Nesse mundo tudo era desconexo e de difícil entendimento, como os são todos os sonhos. Quis sair, retornar, não conseguiu. Foi obrigado a ver e rever tudo o que o mundo em que ele havia entrado insistia em mostrar. Percebeu que tudo não se passava da sua vida vista por uma nova forma, por um novo angulo. E isso o assustou. Tudo ele enxergava metade, tudo tinha metade na luz, metade nas trevas. Aos poucos se adaptou as regras desse jogo, entendeu a disformidade das coisas nesse mundo e entendeu, talvez não o que tivesse que entender, mas o que tinha pra ser entendido. Talvez fosse o vinho.
Fechou a janela, tudo voltou a sua órbita, as coisas voltaram a ser reais e palpáveis, as idéias voltaram a ser pobres e plausíveis. Riu-se do que havia se passado, riu-se do que havia pensado, e mais ainda, riu-se do que havia concluído. Deve ser o vinho, pensou. Bebeu água e foi dormir.

- Marcos está morto.
- Como?
- Sim, ele morreu ontem à noite ou hoje pela manhã, ainda não sabemos.
- Morreu como?
- Suicidou-se. Fechou todas as janelas do apartamento, ligou o gás e foi dormir. Bem, você era a única pessoa que ele tinha nesse mundo. A polícia quer-lhe perguntar algumas pequenas coisas, e você tem que assinar alguns papéis para que possamos remover o corpo.
- Sim, claro, estou a caminho.
- Mantenha a calma.
Ela já havia desligado.

A expressão do cadáver de Marcos era curiosa. Parecia ser de uma agonia extrema, mas trazia consigo algo de contentamento. Talvez fosse o discreto sorriso, que em contraste com a expressão dos olhos, criava uma imagem interessante e ao mesmo tempo desconfortante. Bem dizem que o espelho da alma são os olhos, por isso, todos os curiosos e vizinhos que ali estavam presenciando a cena e analisando a expressão de Marcos diziam ser evidente o arrependimento que havia tomado conta dele no momento em que não mais queria aceitar o fim que havia lhe dado, todo o pânico de saber que aquele jogo ele tinha perdido, toda a batalha para tentar escapar do fado que ele mesmo havia se imposto, uma decepção por ver que também ali, num espetáculo onde ele mesmo era o diretor, ele sairia derrotado. E, diziam alguns que era possível que ele houvesse chorado dado um inchaço nos olhos. Mais tarde o legista viria a confirmar que a bolsa lacrimal estava cheia.
Ela chegou meia hora depois, analisou o cadáver atentamente, mas não demonstrou nenhuma reação extrema e concluiu para si, indo de encontro a tudo que foi dito, de que havia sido uma morte procurada e bem recebida, procurando justificar-se (como se precisasse) com o leve sorriso estampado na face de Marcos. Talvez não estivesse totalmente errada.
- Onde e quando será o enterro?
- Amanhã, no cemitério São José, às 8:30.
- Está certo, até breve.
Depois disso, virou de costas, deixou atônita e decepcionada uma multidão que comparecera sedenta para ver o desespero humano em sua forma mais sincera e insana, e partiu. Deixava para trás o homem que tantas vezes jurou amar, que tantas vezes planejou uma vida longa e feliz ao seu lado e nenhuma lágrima desceu-lhe dos olhos, e nem um volver de sua cabeça para um último e definitivo adeus. Nada.
- Fria, disseram os curiosos e vizinhos, descontando na palavra dita todo o ódio e a frustração de não verem o espetáculo para o qual haviam levantado cedo para assistir naquela fria manhã. Alias, a manhã de outono sim era fria, e com chuviscos, talvez, em homenagem a Marcos.
Ela apertou o botão e esperou o elevador chegar. Ele veio, ela foi.
- Qual o andar?
- Estacionamento, respondeu.
- Ah sim, o subsolo, disse o homem de voz firme e decidida.
- É, o subsolo, repetiu ela numa última lembrança de Marcos. E, em seguida, perguntou, - Qual o seu nome?
- Eduardo, e o seu?
- Gabriela...
E talvez o frio da manhã tonar-se-ia em calor ardente muito em breve.
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