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Contos-->FLORES -- 22/04/2002 - 09:24 (LIANA LARA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Parece que me seguem, esses sonhos, esses lugares que nunca vi, mas onde sempre estou. A cada noite os vejo em mais detalhes, imagens que, de apagadas, tornam-se mais vívidas. Emoções confusas, de um tempo anterior a mim, anterior ao tempo, mas que se tornam cada vez mais verdadeiras.


Por que sonho com as flores amarelas? Um campo, um campo extenso como um mar, coberto delas. Como um mar, as flores são fluidas: abrem-se para deixar passar a sorridente criança. A pequena mão que as acaricia, seus longos ramos, pétalas que acenam do alto; dois pequenos olhos brilhantes que se erguem para ver as flores amarelas, flores que se confundem com o sol. São, cada uma e todas, um pequeno sol perfumado de luz.


A criança que corre é uma menina pequena, de tranças muito negras, rostinho queimado do sol. A primavera chegou, a manhã é radiosa, e para espantar o que resta do frio, ela corre. Como se fosse seu único destino correr ao sol, entre as flores, entre as borboletas, sem se importar com coisa alguma. Nada pode atingi-la, se ela se esconder entre os botões, tão pequenos que apanharia muitos em sua mão, se quisesse. Mas não quer, quer deixá-los viver, balançando ao vento, assim como balançam suas tranças escuras se ela correr pelas colinas floridas. Frágeis, delicadas, as flores parecem ainda protege-la, abraçá-la suavemente.


Corre e chega do outro lado, essa menina de sonho. Do outro lado, entre árvores, um riachinho: não são fundas as suas águas. A correnteza também não é violenta, antes calma, suave como a brisa desta primavera recém chegada. O barulho do riacho entre as pedras é como uma canção, como se alguém estivesse murmurando palavras amigas.


Não há outras crianças para fazer companhia a essa menina, por isso ela brinca sozinha pelos campos. Bebe água do riacho, pula de pedra em pedra, sorri, feliz: é sozinha, mas não se sente solitária nesse dia tão bonito. Não cantam os pássaros, sobre as sólidas árvores? Não cantam as águas, entre as pedras, fazendo a curva do rio? Não canta o vento, fazendo dançar as suaves flores?


Sim, todos cantam, então ela se deita no chão e canta também, é impossível sentir solidão assim. Canta as alegres melodias da sua infância, ensinadas pelo pai. Por seu pai, que está sempre cantando, cantando enquanto caminha, cantando enquanto trabalha, cantando enquanto cuida dos filhos, enquanto leva suas crianças para a cama. Cantando para espantar a tristeza, e a saudade.
Um bando de pássaros passa voando, bem por cima de seu rosto. Ela sorri: se pudesse voaria junto com eles. Abre os braços, e se imagina um pássaro também. Como seria bonito ver os campos amarelos lá de cima! A sua casa decerto lhe pareceria pequenina, as pessoas menores ainda. Voaria, para onde? Não sabe, iria para o lugar os pássaros, seus amigos, vão passar o inverno.


O tempo, com seu inexorável mecanismo, passa, deixando suas marcas, mudando algumas coisas, e conservando outras, como se as quisesse iguais até o fim. Por mais que a menina cresça, por mais que seu rosto mude, ela continua correndo entre as flores. E os campos cobertos de flores amarelas continuam existindo.


Bravamente resistem ao inverno, que vem soterrá-los por uma camada de neve. Na primavera as pequenas flores ressurgem, apontando suas cabecinhas de pétalas amarelas para o alto, quase como que quisessem desafiar a força do frio, como se afirmassem que não podem, nunca, ser soterradas completamente.


E essa menina cresce no meu sonho. Vejo-a já uma pequena moça, um projeto de adulta, caminhando, correndo ainda no oceano da cor do sol. Por que ela perambula por esses campos, solitária? É como se, entre as flores amarelas, ela se encontrasse em um tipo de felicidade muito particular, aquela que só pode ser encontrada por uma pessoa sozinha.


Fico imaginando que tipo de vida leva essa menina. Sei que ela tem um pai, um homem que canta, que reza, que cuida bem dos filhos. Sei que tem irmãos. Sei que sua mãe morreu em uma fria noite de outubro, uma noite em que as estrelas povoavam o céu, mas não brilhavam. Sei que procura não pensar muito no passado, concentrando-se no dia de hoje. Sei que há recordações que não devem ser revolvidas.
O campo de flores amarelas fica perto de sua casa, que fica em uma pequena vila. Sei que lá todos se conhecem, que todos vivem juntos, trabalham juntos, às vezes comem juntos. Moram em pequenas casas de madeira, onde faz frio no inverno. Uma estrada de terra batida liga a aldeia até a cidade mais próxima, e continua, para o outro lado, margeando o campo amarelo. A menina é feliz neste lugar, apesar de não ter muitos amigos de sua idade. Ajuda o pai a cuidar de tudo, mas quando pode volta a correr pelos campos, entre as flores da sua infância. A vida parece harmoniosa e feliz, ninguém se queixa da sua sorte, as mágoas do passado jazem quase esquecidas.


Ah, mas por que, por que tenho que chegar a essa etapa de minha narrativa? Por que não posso deter-me nas coisas belas, aquelas coisas que tornam a vida poética, agradável de ser vivida? Por que não posso deter-me a narrar uma existência pacífica, camponesa, quase bucólica? Por que não posso calar, por que não posso esquecer? Meu destino não era meu, mas eu o escolhi. Tenho, assim, que continuar contando.


O que faz com que os sonhos nos afetem, mesmo quando sabemos que eles nada significam, que não passam de uma realidade simbólica construídas por nós mesmos? Talvez, quando esse sonho nos remete a um passado, ainda que anterior a nós, ainda que anterior ao tempo,ele possua um significado muito maior do que aqueles que dizem entender a alma humana nos querem fazer crer.


Então agora é uma noite de outubro, uma noite fria, uma noite que poderia ser bela, se as estrelas brilhassem normalmente. Mas até as estrelas parecem paralisadas, como que na expectativa de algo que está prestes a acontecer. A estrada de terra que liga a vila à cidade mais próxima está ainda silenciosa, uma vaga poeira no ar. As casas estão com suas janelas fechadas, ou fechando, uma ou outra pessoa caminha ainda sob o ar parado. Os animais e as crianças já dormem, as flores amarelas estão imóveis em seus lugares no campo, como se dormissem também. Só as estrelas, e a menina de olhos que são como estrelas, é que não estão tranqüilas. Parece até que aquelas, as que lá de cima enxergam o mundo inteiro, tentaram avisar a menina de que algo não está bem. As estrelas são como olhos de crianças, enxergam longe, com muito mais clareza que nós. Elas veêm tudo o que acontece sobre a terra, e nesta noite elas não gostam do que vêem.


A menina se levanta, enrolada em um cobertor. Coloca seus pés descalços para fora da cama, pisando delicadamente o chão frio. As tábuas rangem. Ela passa pelos irmãos adormecidos, sai do quarto, desce a escada. Ao chegar na sala, senta-se em uma cadeira, na semi-escuridão, e inclina-se para espiar a rua por uma fresta na janela. Lá fora, tudo em paz. Adormece novamente, encolhida a um canto.


Acorda com um salto. Uma confusão inesperada toma conta do ambiente outrora tranquilo de sua casa. Gritos, pessoas correndo, subindo e descendo a escada, entrando e saíndo. Volta-lhe à memória, lentamente, pela primeira vez em tantos anos, o que aconteceu em uma noite tão parecida com essa. Apesar do cobertor, é invadida pelo frio, por um frio que vem de dentro do seu coração. A recordação deixa-a imóvel de terror. O sonho, antes tão puro e tão alegre, adquire agora contornos de pesadelo.


Confusão. Relinchar de cavalos na rua. Mais gritos, risadas, cacos de vidro se espalhando no chão. A voz de seu pai, angustiadamente falando com alguém do lado de fora, alguém que fala mais alto, alguém que tem uma voz cruel.


Não há dúvidas, a história se repete. Ela larga o cobertor, abre a janela, sai, não quer passar pela porta. Pés descalços sobre a terra batida, hesita um pouco antes de decidir para onde quer correr. Hesitação fatal.


Sente que é agarrada pela camisola, empurrada contra a parede com tanta violência que cai no chão. Tenta se levantar, sua cabeça gira, alguém a puxa pelo pulso direito, que se quebra com um estalo seco e audível. Grita, recebe um tapa no rosto que faz com que sua cabeça doa ainda mais. O mundo começa a escurecer, perde os sentidos.
Quando abre os olhos, pouco depois, deseja que não tivesse acordado. Parece que cada centímetro de seu corpo dói, ouve um zumbido, um silvo dentro da sua cabeça. A confusão em sua volta é cada vez maior, deitada no chão, parece que está cercada de muitas pessoas. Em um momento ouve uma gritaria, sente uma dor violenta no ombro, e a largam. Consegue levantar-se, sem saber como, quando lhe dão as costas, e sem saber de onde tira a força, começa a correr. Não sabe para onde vai, não percebe nem que, da ferida aberta em seu ombro, o sangue escorre cada vez mais, cada vez mais rápido, mas seus pés a levam por um caminho que lhe é conhecido, o empoeirado caminho para o campo. Para o campo de flores amarelas.


Corre e é como se, correndo entre as flores, tudo o mais se esquecesse. Como um mar, as flores são fluidas: abrem-se para deixar passar a cambaleante criança. É uma criança ainda, com seus cabelos desgrenhados, seu rostinho inchado, e sua roupa empapada de sangue. Os delicados botões parecem envolve-la, como se a quisessem proteger, como se a quisessem consolar. Sua suavidade é como um abraço.
Ela cai no chão. Seus olhos, e as estrelas, já estão quase brilhando normalmente. O sol não está lá, mas as pétalas, que são como pequenos sóis, cumprem o seu papel, aquecendo pela última vez o coração de uma criança solitária.
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