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Contos-->DICO -- 28/04/2002 - 22:35 (ARCANJO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

DICO

Seria apenas mais um julgamento das centenas de outros presididos pelo Juiz Daniel nos seus muitos anos de Magistratura. Quase todos eram para ele iguais na forma e na essência, mas alguns ainda mantinham um sabor especial de desafio. Era o caso naquele dia; seria julgado um indivíduo acusado de ser o líder do tráfico de entorpecentes na Baixada Fluminense, o famoso, temido e famigerado “Dico”.

Há vários anos no comando da Vara Criminal da Comarca de Duque de Caxias, o Magistrado ouvira referências a um certo “Dico” em outros julgamentos de pequenos traficantes. Nunca pelos réus, é claro. Era sempre a polícia local que informava serem os acusados seus “soldados”, “aviões”, “fogueteiros”, etc...

A incomum causa da prisão do indigitado “Dico” não ajudava a Promotoria, já que, ao menos em princípio, em nada o ligava ao tráfico de entorpecentes. O acusado fora preso num hospital, onde buscara auxílio após ter levado um tiro na perna disparado por um desafeto. Este último, igualmente preso, confessou o delito, dando como motivação do incidente a cobrança violenta por parte do ferido de uma partida de cocaína por ele comprada e não paga.

Esta, ao menos em princípio, constituía-se na solitária prova acusatória.

No dia do interrogatório, ato privativo do Juiz, único momento no qual o acusado tem a chance de defender-se pelas próprias palavras, respondendo às perguntas do Magistrado, o acusado afirmou jamais ter ouvido falar em um tal “Dico”. Chamava-se José Dias, e nunca recebera qualquer apelido. Não seria difícil aceitar tal tese, considerando a avantajada dimensão corporal do réu, desencorajadora dos apelidadores de plantão, sempre prontos a estigmatizar com a eternidade da alcunha alguma característica humana marcante. Além disso, o que teria o nome José Dias que ver com “Dico”?

Não seria possível narrar o acontecido com um mínimo de fidelidade sem mencionar que o réu chorou. Dizia-se um perseguido pela polícia, homem bom e religioso, mas um pouco mulherengo, razão do tiro que recebera de um marido ciumento. É um verdadeiro choque emocional, um anticlímax total, o choro de um crioulo de mais de um metro e noventa e uns cem quilos.

Naquele dia a sessão começara com a oitiva das testemunhas da acusação. Não eram em verdade testemunhas na acepção técnica do termo. Testemunha é aquele que presenciou algo, sendo capaz de autenticar um acontecimento, fato ou afirmação com sua palavra, sob pena de ser preso caso venha a ser descoberta eventual impostura. Ver mesmo ninguém vira nada.

Foi ouvido o Comandante do Batalhão da Polícia Militar da área, que jurava ser o acusado o tal “Dico”, seguido por várias vezes pelo serviço reservado da PM, mas sempre se livrando do flagrante por alguma astúcia de última hora. Era “liso como pau de sebo”, nas palavras do Coronel, que arrancaram do Magistrado um ar de desconforto pela impropriedade da expressão no Tribunal.

Compareceu ainda o Chefe de Polícia da época, a provocar definitivo franzir de sobrancelhas do Juiz pela sua aparência desleixada. Barba por fazer, pés despidos de meias, parecia até cheirar mal. Talvez fosse um “tira disfarçado”. Não era. Tratava-se apenas de mais um exótico a ser aturado. De importante frisou conhecer o acusado como “Dico”, chefe do tráfico local, que jamais fora preso pela simples razão de que nunca entrava em contato físico com a droga, elemento essencial de um flagrante de posse ou tráfico de entorpecentes. Exercia o comércio espúrio sempre através de terceiros, de modo a colocar no mínimo possível a taxa de risco da nefasta profissão.

Alguns outros policiais de menor escalão foram igualmente ouvidos, apenas somando às acusações anteriores mais dados sobre a personalidade violenta e perigosa de “Dico”, o “facínora sentado na cadeira dos réus”.

A expressão facial dos advogados de defesa era de quase deboche. Sabiam perfeitamente que era impossível uma condenação quase que totalmente “por ouvir dizer”. Nem um grama de tóxico fora encontrada com seu cliente. Faltava o que se denomina na verborréia jurídica de materialidade. O traficante, sem dúvida alguma, era um tal “Dico”, que em nada coincidia com José Dias, um pacato comerciante, sem alcunhas conhecidas, segundo as testemunhas de defesa, também ouvidas naquele dia.

A assentada chegava ao fim, com um nítido enfoque de “fim de festa” para a acusação. A causa estava perdida. Ao final, após todos terem assinado os documentos pertinentes, o Juiz pronunciou a palavra de praxe a permitir-lhes a saída da sala de audiências;

- Estão dispensados.

Todos seguiram em direção à porta. O acusado ao levantar-se e dar os primeiros passos, deixou notar que mancava visivelmente da perna alvejada. O Magistrado indagou-lhe então com ares de preocupação;

- Dico. Por que você está mancando? Não está recebendo tratamento adequado na prisão?

- “Tô” sim “Dotor” . O “pobrema” é que o tiro acertou o joelho e...

Antes que o acusado finalizasse a resposta, com uma estranha luz no olhar, o Juiz novamente indagou;

- Cidadão, se você não é o Dico, por que respondeu quando te chamei por este nome?

Não houve resposta, mas apenas um olhar semelhante ao do gato pego comendo o passarinho. Os advogados de defesa ficaram mudos. E olha que um advogado ficar mudo beira o milagre.

O Juiz então fez todos retornarem aos seus assentos e produziu um adendo à assentada, narrando o ocorrido, como era seu dever, já que no termo de lavra do depoimento de testemunhas, segundo a lei, todos os incidentes devem ficar consignados.

Foi a última vez que José Dias, vulgo “Dico”, foi visto na Baixada Fluminense. Foi condenado a cumprir doze anos de prisão, e acabou por falecer no cárcere de doença cardíaca dois anos depois.

Segundo um Sargento da Guarda que o escoltara no retorno à prisão, após a audiência acima narrada, seus últimos momentos na terra em que exercera o tirânico reinado do tóxico foram pontilhados de lágrimas e marcados por uma recorrente frase, repetida aos advogados que o acompanhavam.

- Ele não podia ter feito isso.

- Calma Dico. Diziam os causídicos.

- Tem a apelação, e lá no Tribunal da Capital vê se não manca.



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