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Contos-->A Eternidade é um Peido -- 29/04/2002 - 21:05 (Jactâncio Futrica) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A Eternidade é Um Peido
(Rompantes de Um Espírito Sem Luz)



A crise foi repentina. De noite veio a dor, cirurgia de manhã, mais tarde aquele sorriso forçado na cara dos parentes: “Que susto cê dá na gente, hem, Carolino! Só por causa dumas pedrinhas na vesícula, tu me apronta uma dessas!” O fato é que os médicos, do mesmo jeito que o abriram, fecharam. Não havia o que a fazer; já tava tudo tomado. Seis dias depois, Carolino rendia sua alma ao Criador.

No velório se comentava: o pai, fumante há décadas, enterrou o filho. “Ele, que se cuidava tanto...” É que desde os 20 e poucos anos de idade, Carolino seguia uma rígida dieta naturalista, criação dum pseudo-japonês iluminado que também pifou com menos de 50, também de câncer (embora os discípulos do tal guru, a despeito dos laudos médicos, jurem que ele teria desencarnado por livre e espontânea vontade: este mundo seria impuro demais para ele.)

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Carolino deslumbrou-se com as teorias dum maluco (carismático, dichavadão e tudo o mais _ mas maluco!). Viajou e tomou dentro. Trumbicou-se de graça. Agora, já liberado da labuta terrena, será obrigado a constatar que um outro mestre seu também se equivocou seriamente.

Todo mundo pisa na bola, não tem jeito; e o druida Alan Kardec não foi a honrosa exceção. Ao professar a doutrina da transmigração da alma, ele estava prenhe de razão; mas enganou-se num ponto crucial: o fenômeno da reencarnação não é regido por qualquer ética divina, mas por uma vasta e intrincada rede de urucubaca humana! Reduzindo a coisa a termos bem simples, podemos dizer que o ódio histérico de uma ex-amante aliado a um forte sentimento de inveja por parte de um cretino qualquer, pode perfeitamente gerar o magnetismo necessário pra fazer com que você reencarne em forma de porco, gambá, ratazana ou qualquer outra criatura danada, ou renasça com alguma deficiência física ou mental, e daí por diante... Já um crápula que praticou o mal a vida inteira, mas que caprichou no marketing pessoal e soube, hipocritamente, vender uma boa imagem de si, este ascenderá aos céus, leve e iluminado, desimpedido de urucubacas e maus-olhados, e certamente reencarnará num corpo geneticamente triunfal! Por isso, um alerta: quando o finado não tiver conquistado, em vida, a perfeita simpatia da sociedade, é imprescindível em seu velório a presença de pelo menos uma beata empedernida _ dessas que gostam de comandar rodadas intermináveis de orações (dessas ladainhas mórbidas que fazem qualquer criança de 6 anos sentir-se uma velha desconsolada, mas que fazem o defunto gritar uma ‘aleluia’ vibrante, lá do meio da escuridão)... Carolino entretanto não teve esta sorte e, ademais, os parentes não divulgaram sua morte pra patota do grupo espírita, que poderia ter estabelecido bons contatos pra ele no Além. Assim, as poucas preces que seu espírito recebeu não foram suficientes pra demover as correntes magnéticas da urucubaca humana: sua alma foi vertiginosamente arrastada ao lamaceiro do mundo espiritual. Embora pudesse ter sido ainda pior.

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Carolino reencarnou no corpo duma vaca leiteira, na fazenda do seu Constantino; lá se vão dois anos e meio.

A tarde vai caindo mansamente por sobre a bucólica Quindim do Paracatu. Nos quintais, o canto do pintassilgo seresteiro da serra misturado ao rumorejar abafado da rodada do futebol nos radinhos de pilha. Ao longe, a cadência melodiosa do trem a colear por entre os vales. Cambraia (o novo nome de Carolino) olha o rio que corre lá embaixo e suspira, mas suspiro de vaca não arranca estaca. Solta um mugido preguiçoso, olha pruma moita de capim, se esquece do rio, abocanha a moita.

Em cima do mourão da cerca, doutor Flammarion Fonseca (ex-médico e compositor de hinos maçônicos) cacareja e esbate as asas, parecendo recuperar-se de algum susto...

Ah! quisera também eu ser uma vaquinha, a pastar no verde dessas colinas; a desferir mugidos domingueiros nessas tardes lassas; a sentir as mãos jeitosas do caboclo bombeando o leite de minhas tetas intumescidas; o leite que é o verdadeiro fundamento de um povo saudável!

Se você por acaso acha que o Carolino se deu mal por ter virado vaca, é porque não és escravo, como eu, desta tormentosa e inelutável sina de poeta.

C’est la vie. Foda-se!


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