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Contos-->Meu guri -- 30/04/2002 - 01:08 (Luís Augusto Marcelino) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Meu guri

“Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento
De ele rebentar
Já foi nascendo com cara de fome
Eu não tinha nem nome
Pra lhe dar...”

Das Graças trabalhava em casa, lavando roupa. Os varais eram imensos, tomavam conta de toda a extensão do corredor estreito da casa de trás da velha Maria de Lourdes – viúva sexagenária que não dava trégua quanto à pontualidade do aluguel. Era 1976. Pouca coisa boa guardei daquela época. Tinha chegado a São Paulo há menos de um ano. Morei com um primo, o Geraldo, que me expulsou de seu quarto fedorento assim que se passaram dois meses sem que eu arrumasse emprego. Deus, meu Deus! Estava quase para voltar para a seca. Para a fome. Para o mundo que não é mundo do sertão de Pernambuco. Um amigo do bar – e dizem que amizades de bar para nada servem! – disse que em sua firma estavam precisando de ajudante. Ajudante, sempre pensei, quando estava no Norte, em ser ajudante em São Paulo. Não tinha muita idéia do que era esta profissão, mas achava que era o máximo. Tantos e tantos conterrâneos conseguiram sobreviver, voltar à terra natal e esbanjar alguns cruzeiros nos puteiros, nos botecos, na praça... Eu era acostumado com roça. Roça no Norte pode ter um significado diferente, talvez os sulistas não compreendam bem. Dependíamos da chuva de Deus para roçar uma lavoura improdutiva. Era uma ocupação, ao menos. Pouca, mas era uma ocupação. Meu amigo Raimundo, mais Nosso Senhor, mais Padrinho Cícero, mais o encarregado daquela indústria química quiseram que, naquela terça-feira chuvosa, eu arranjasse um emprego. Meu primeiro emprego.

Conheci Das Graças quatro meses depois. Trocávamos olhares durante o batente, mas eu tinha medo de os encarregados repararem. Então nunca me atrevera a procurá-la. Ficamos no lenga-lenga da troca de olhares, dos sorrisos sutis, das tentativas de sentarmos próximos no refeitório da firma. Tudo isso por semanas, até nos encontrarmos num forró na Barra Funda. Àquela altura eu já tinha me acostumado com tudo em São Paulo. Com quase tudo, é verdade. Ainda não entendia ao certo porque o céu era tão cinzento e porque as pessoas não se cumprimentavam quando se encontravam nas ruas. Quanto às outras coisas eu já estava escolado, por assim dizer. Quanta gente, meu Pai! Os ônibus eram velhos, fedidos, mais fedidos ainda pelo fato de os trabalhadores terem de andar quilômetros para chegarem a uma avenida asfaltada. E a chuva constante não colaborava. Os vidros eram insistentemente fechados e os odores se concentravam dentro do coletivo. Todos os odores. Bufas, perfumes baratos, brilhantinas, suor, mênstruo, sovacos, um que tinha pisado na merda do cachorro. Isto para mim já era trivial. Das Graças estava envolta num vestido branco, decotado, que permitia avistar seus seios generosos de muito distante. Requebrava com a desenvoltura de uma bailarina clássica, só que ao ritmo do som cadenciado da música nordestina. Temi aproximar-me, mas foi impossível. Encontramo-nos no balcão do bar da casa, e não resisti a lhe oferecer uma bebida. Ela aceitou. Foi o bastante para eu pressentir que aquela cabocla seria minha para o resto da vida.

* * *

Das Graças deu à luz no dia no mês de fevereiro. Ela queria muito que fosse uma menina, mas Deus não atendeu as suas preces. Nasceu Paulo Roberto, poucos quilos, pouca chance de sobreviver – segundo os médicos. Morávamos no Morro Grande, numa pequena casa de alvenaria. O garoto não tinha forças para nada, vivia nos hospitais públicos, acompanhado pela mãe, que teve de abandonar o emprego. Eram tantas suas complicações de saúde que eu não tinha mais esperança de o moleque sobreviver. Tinha um olhar tristonho, desde pequeno. Um olhar de perdedor. Eu conhecia bem aquele olhar.

- Papá!

Quando o menino pronunciou sua primeira palavra, aos 2 anos de idade, Das Graças já tinha nos abandonado. Dona Lourdes foi uma espécie de avó para o garoto. Reprimia-me pelas noites de luxúria, porém nunca deixou de tratar bem o menino. Queria encontrar Dona Lourdes hoje em dia, mas tenho quase certeza de que ela já foi dessa para a melhor. Não houve alternativa senão deixar Paulo Roberto nas mãos da portuguesa e seguir meu rumo – como fez Das Graças. Houve um tempo de alegria em meu convívio com ela. Estava empregado, lutando para juntar uns trocos, comprar uma casinha. Minha mulher queria mais, sempre mais. A distância entre querer e poder é muito longa, e ela não entendia isso. Quando o menino tinha apenas quatro anos ela foi embora. Deixou-nos. Sem aviso, sem despedida, sem explicação. Quando Paulinho chorava em plena madrugada eu sentia vontade de sufocá-lo com a própria fralda de pano cheia de bosta. Não conseguia. Eu o acalentava, cantava umas cantigas do Norte que ele certamente não compreendia. Foram anos difíceis até eu resolver deixá-lo em casa, sozinho e desprotegido, e partir para o mundo afora.

* * *

Mais uma Copa do Mundo. Não sei distinguir o amarelo do verde, minha visão não permite. Este asilo é uma merda, não há médicos. O último doutor que apareceu aqui e me examinou disse com sua frieza costumaz que eu não sobreviveria por mais de três meses. Acho que ele tinha razão, porque sintia meu corpo irremediavelmente inerte. Apenas olhava as coisas. Olho e penso. Ouço pouco, não falo além do que minha língua permite. Coisas como sim e não. Vivo tomando sopa, e eu odeio sopa. Uma coisa que sobreviveu foi minha memória. Tive a notícia de que meu guri viria aqui no doming. Aquele mesmo guri que deixei aos cuidados de Dona Lourdes. Soube que ele se tornou um importante biólogo, reconhecido por toda a comunidade latino-americana. Procurou-me por anos, mas só agora, justamente quando estou para bater as botas, encontrou-me. Será que ele virá mesmo? A madre Austina me garantiu que o guri virá com a mulher e os filhos – que são meus netos. Pena eu não poder falar. Queria falar para ele um monte de coisas. Queria culpar Das Graças por ter nos abandonado. Há muitas coisas que gostaria de falar. A velhice não me permitirá, contudo. Talvez fosse melhor que não me achasse. Realmente, melhor seria ele ficar lá e eu pensando que tivesse morrido de desnutrição, de tuberculose, de qualquer coisa. Pelo menos não teria de enfrentar seu olhar me condenando, culpando-me por tê-lo abandonado. E sua mãe, por que não a procurou? Se eu tivesse forças, sairia dessa maldita cadeira de rodas e me dirigiria à mata serrada da Cantareira. Só que não posso. Só posso olhar e pensar.

Há um lago maltratado no asilo. Foi construído para os idosos pescarem e jogarem conversa fora. A falta de preservação deixou o lago morrer. Acredito que lá só existam bosta, água e uns parcos girinos. Ainda assim é a melhor paisagem que existe por essas bandas. Por alguns minutos fico apreciando o reflexo do sol naquele lago emporcalhado. É o que me resta. Olhos e pensamentos. Por que não fiz as coisas de outro modo?

- Ele vai comigo!

- A coisa não é bem assim, senhor!

- Trouxe meu advogado e a ordem do juiz. Ele vai, pronto e acabou.


Paulo Roberto gosta de ler trechos de livros para mim. Minha nora me ama, e mal me conhece. Coisas que não compreendo, que não sei explicar. Meus netos acham minha presença estranha, mas estão se acostumando. Paulo Roberto ganhou uma bolsa de estudos e vai para a Inglaterra no mês que vem. Até que seu apartamento é ajeitado. Quando soube de sua viagem, lembrei de uma coisa que o guri me disse pouco antes de eu largá-lo à sorte.

- Eu chego lá, pai!

“Olha aí, ai olha aí, olha aí...
Olha aí... é o meu guri...”
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