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Cronicas-->PACA! -- 25/04/2000 - 00:39 (Mario Galvão) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Não tínhamos nem descido da caminhonete, quando o "Tinhoso", o melhor paqueiro do Zé Carlos, deu o primeiro ganido desesperado, bem lá em cima, ainda longe do grotão:
--"Auuuuuuuuu.....auuuuuuuu..."
--"Num falei prá não sortá os cachorro adiantado! - berrou o negro Eustáquio, juntando, rápido, os cartuchos e precipitando-se, com sua 32 de cano duplo, em direção ao córrego, jogando--se em meio às moitas de bastão e arranhando-se no tronco fino das embaúvas.
-- "Corre, gente, corre!!! - gritava - Sinão ela vai s´intocá!"
E foi aquela disgrama de correria, os cachorros uivando e ganindo no rastro da diaba, ela cada vez mais perto e nós, desabalados, barranco abaixo, procurando cada um chegar depressa a seu posto de tocaia, antes que a caça se antecipasse, escapando ilesa.
Zé Carlos atrapalhou-se na corrida e acabou levando um tombo daqueles, disparando, sem querer, os dois canos de sua mocha calibre 16, que mais pareciam canhões: BLÓÓOOOMMMM!
Por muita sorte não acertou ninguém, só destroçando uma moita de samambaiuçus na beira do brejo.
Acho que foi o catabrum do disparo da mocha do Zé que fez com que a paca se desviasse, na corrida, e viesse sair exatamente na minha direção, num carreiro que dava bem em cima de uma pedra grande e chata que acabava, abrupta, sobre o corguinho estreito.
Tive tempo de vê-la, num relàmpago, ciscando, pelo marrom escuro luzidio, cheio de pintas brancas, brilhando sobre a pedrona, procurando um caminho menos acidentado para chegar até a água. Puxei o cão da arma e disparei minha 28, presente de meu pai, caçador de pio, sem apontar, assim no instinto, que não deu mesmo tempo para fazer pontaria: PÓÓOOOOMMM!
Que nada! Os grãos de chumbo 5 fizeram uma roda no limo verde que recobria a pedra enquanto a porqueira tinhosa, TICHIMBUMMMM!!!, mergulhava, inteiraça, no poço.
A cachorrada, impaciente, enlouquecida, cruzava agora o córrego acima e a abaixo do local onde a paca desaparecera, fazendo uma algazarra dos diabos e olhando para nós, de tempo em tempo, como se reprovassem - AUUUUUU!!! CAIIMMMM!!! CAIIMMM - nossa pouca técnica e minha má pontaria.
O alarido que nós quatro fazíamos, gritando palavrões, de PUTA QUE PARIU para cima, uns com os outros, gesticulando, não era menor que o dos cães. Deixar escapar, vivinha da silva, aquela endiabrada que tão perto chegara dos canos de nossas espingardas, era coisa que não nos passava pela cabeça.
Estava entocada, nós suspeitávamos, ou melhor, sabíamos, com certeza. Não havia rastros nem do lado de cá, nem do lado de lá do riacho. Mas, onde?
Como toda parca esperta e vivida que se preza, esta já tinha sua solapa preparada no canto do barranco, com um respiradouro acima da linha d´água. Um esconderijo inalcaçável pelos cães, ou outras feras, talvez anteriormente já utilizado com sucesso em outras corridas mal sucedidas de caçadores desastrados como nós.
Finalmente, homens e cachorros se acalmaram.
Não adiantava recriminar o Toninho Jambeiro, que soltara os cães antes da hora aprazada. Também não adiantava xingar o Zé Carlos, ainda assustado com o disparo duplo de sua 16, que passara tão rente à sua cabeça, que lhe azulara a cabeleira loira e que, por muito pouco, não lhe arrancara metade do crànio.
Quanto a mim, estava ali, aparvalhado, morto de vergonha por ter errado o alvo da maneira que fizera. Só me perdoava e era perdoado pelos demais por ser o mais inexperiente do grupo e porque, na verdade, tinha havido uma sucessão de erros, cada um contribuindo um pouco para a perda da caça.
Entretanto, não tinha coragem de erguer os olhos para o negro Eustáquio que, agora agachado ao lado do Zé Carlos, montava uma estratégia para desentocar a paca sumida no barranco.
--"Só Zé, si hai uma solapa puraqui, vamu achá i fazê essa iscumungada disintocá. Disafóro di paca eu nunca levei prá casa. Si ela tá mermo no barranco, vamu chuchá, qui ela sái. Tem di saí!"
Facão longo e afiado na mão direita, mão que tinha cerca de 30 centímetros de envergadura, o negrão, em 5 minutos, já tinha cortado no mato acima do barranco, meia dúzia de enormes varapaus duros de guatambus e outras madeiras resistentes. Entregou um para cada um e ordenou:
--"Cada um de vancêis catuca um trechu du barranco até a filhadaputa saí."
Vendo que a segunda besteira seria maior do que a primeira, contribuindo para mais um insucesso, tive coragem de interferir:
--"Ó Eustáquio, assim ela vai escapar de novo. Alguém tem que ficar na espera para atirar quando ela brotar do barranco!"
O negro olhou-me, tirando uma linha de cima em baixo, meneando finalmente a cabeça em tom afirmativo:
-- "Ficam voismecê e o seu Toninho, que não atiram merda nenhuma, mas pelo menos dão uns parpite bão di vez im quando. Cuidado para não errar, dessa veiz!"
E ficamos, eu e meu amigo Toninho, fora d´água, espingardas em punho, o coração batendo forte, vigilantes, acima e abaixo do ponto em que a paca desaparecera no regato.
Enquanto isso, o Zé Carlos e o crioulo, nuzinhos, completamente despidos, entravam na água, corajosos, tremendo no frio da manhã daquele domingo de maio, com a serra ainda fumando na neblina esbranquiçada.
Lembro-me perfeitamente, com detalhes, que ainda estava rindo, olhando o corpo nu de barata descascada do Zé contrastando com a pretura luzidia do torso nu do Eustáquio, quando um berro do Toninho tirou-me da distração:
-- "A PACA, Mário! A PACA!!!"
Apavorada, ela ela ainda tentou se virar, tendo dado de cara com as minhas pernas, bem no meio delas, ao sair do mergulho, escapando dos varapaus pontiagudos, bem no ponto em que me encontrava, onde o corguinho fazia uma cachoeira, com pedras rasas que a impediram de continuar mergulhando pelo fundo.
"PÓÓOOOMM!!!"
O tirombaço ecoou desta vez mais longe ainda, pelas quebradas da serra fria.
Acertei bem no pescoço inclinado da bicha, abrindo um rombo da largura de um punho fechado, que o chumbo nem tivera tempo e espaço para se espalhar.
A explosão do cartucho da 28 e o cheiro de sangue na água, alvoroçaram de novo a cachorrada.
Aí foi uma festa só!
Os quatro dançávamos e gritávamos, feito tupi-guaranis, arrastando o corpo da bichona criada, enorme para uma paca, quase uma capivara, para a beirada do riozinho, a matilha endoidada, latindo sem parar em nossa volta.
Onze horas e meia da manhã, céu quase a pino, à sombra de uma figueira grande, o único som que se ouvia agora era o chiar da gordura da carne, caindo no braseiro.
Tutu de feijão virado havíamos trazido pronto de Roseira, da fazenda do Zé Carlos, preparado na noite anterior pela Isis, irmã do Toninho Jambeiro, mulher do Zé. Tutu daqueles cozidos lentamente, com amor e maestria, com pedacinhos de torresmo, pimenta de cheiro, farinhas de mandioca e de milho em mistura exata, iguaria de dar água na boca a quilómetros de distància,para quem sentia o cheiro de longe, ainda mais de perto. Paca assada, atravessada no pau de guatambu verde, arroz e feijão virado, servidos na folha de inhame e ainda cafezinho feito no óco de taquaruçu, passado num coador de meia limpinha do Zé Carlos, e mais uma farofa de óvo de arrancar suspiros e gemidos de prazer.
Tudo preparado ali mesmo pelo Eustáquio, reconhecidamente um cozinheiro de primeira água.
De lembrar, só de lembrar, me dá fome!
Saibam todos que nem o Cardeal de Aparecida provou iguarias de tão e inigualável sabor, nem mesmo quando foi ao Vaticano eleger o Papa.
Só que foi o meu último tiro com a 28, como já disse, presente do meu pai, o Professor Francisco Galvão Freire, caçador de pio, desses que percorriam semanas os alcantis da Serra da Mantiqueira ou da Serra do Mar atrás do piar sonoro dos inhambus-guaçus e macucos,que hoje quase não os há mais.
Foi também a primeira, única, última e derradeira paca da minha vida.
Uma semana depois da memorável caçada, perdíamos o Eustáquio, atropelado bestamente por uma carreta na Rodovia Presidente Dutra, perto da ponte do Paraíba, em Lavrinhas, onde tinha ido visitar parentes.
Perdido o Eustáquio, perdida a mania de caçar do Zé Carlos, que vendeu os paqueiros todos, até o "Tinhoso", o mais famoso levantador de pacas em todo o município e cercanias.
O Toninho foi estudar engenharia em São Paulo e eu, metido a jornalista, comecei a ler muito mais do que já lia e a entender que os animais silvestres brasileiros, como a paca, o mais saboroso deles, andavam acabando, dizimados, e que era importante preservar e não matar.
Aposentei a 28 e nunca mais.
Ainda ontem, abri o armário e lá estava ela, enferrujada, no fundo, em meio a ternos e gravatas. Peguei-a com saudade. Dobrei o cano avermelhado pela ferrugem e me assustei. Pronto para o uso, um cartucho velho, quase que desgrudado o papelão do aro de metal cor de bronze da espoleta. Torci-o pelo meio, derramando pólvora e chumbo na palma da mão, como querendo comprovar que não tencionava nunca mais utilizar aquele mortífero engenho.
Devolvi a cartucheira para o seu canto esquecido.
Enxuguei uma lágrima de saudade que teimava em rolar pela bochecha abaixo e saí, rapidinho, para tomar café na padaria e ir trabalhar.
Tem coisa que é mesmo difícil e dói muito ao se lembrar. Mas, como diria o negro Eustáquio:
-- "Cumo não se arrecordá, si num é nóis qui manda na nossa cabeça? É ela qui manda in nóis, só!"

Mário Galvão é jornalista e profissional de RP





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