DA VOZ À LETRA: A QUESTÃO DO JOGO PARA A EMERGÊNCIA DO SENTIDO
Nas culturas do Norte, é ainda na condição de feto que o filhote de homem recebe um nome na palavra dos adultos do seu meio.
Nas culturas tradicionais de tipo oral, será preciso esperar pelos ritos de apresentação à comunidade, isto é, pelo "nascimento cultural" da criança, para que a palavra dos adultos a nomeie como pertencente a uma linhagem, como ligada a um ancestral. É, então, no meio do ruído das vozes que o cercam, que tudo começa para o filhote de homem.
Do primeiro grito ao primeiro "Eu", é entre diferentes vozes que a criança vai poder afirmar sua presença como sujeito.
A voz da criança está já no grito que adquire sentido porque a voz dos adultos não abafa essa emergência, porque a voz dos adultos está, por algum tempo, ausente.
Enquanto a voz do outro não deixar um vazio para a voz da criança, esta será apenas grito. É "a criança-grito", o autista que não pode vir-a-ser porque o outro o colocou num lugar onde nenhum jogo de vozes é possível (caso, por exemplo, da criança concebida para substituir um irmão morto).
Quando há vazios nas vozes que a cercam, a criança usará sua voz, dando-lhe sentido e fazendo-a tornar-se palavra.
A palavra está presente para preencher o vazio, para dar-lhe um nome, para colocar um objeto onde só haveria um não-objeto.
A palavra é isso: é o objeto de um não-objeto.
Trata-se, então, de um objeto a ser sempre recriado, o que implica que o ser não é ser, é vir-a-ser, é ter de ser.
A palavra é realmente uma propriedade do sujeito humano que, em estado de vir-a-ser vai dispondo por aí as palavras a fim de estar sempre criando outras.
A palavra preenche o vazio entre mim e o outro, criando os objetos do nosso encontro.
Do grito à voz, da voz à palavra, da palavra à letra, trata-se do mesmo processo. Mas, se a palavra é "para o outro presente", a letra é para o "outro ausente".
A letra me permite encontrar o outro, encontrar a alteridade e, sobretudo, construir "meu outro" em mim.
A letra, objeto do outro se a leio, objeto para o outro se a escrevo, é um espelho mágico que me permite reconhecer-me, descobrindo-me outro.
O problema do acesso à leitura, como o da iniciação à escrita, está aí. Para que, pela letra, eu possa conhecer-me outro, é necessário que eu possa antes reconhecer-me nela.
Se sou obrigado a reconhecer nela o outro que eu deveria ser, antes de me reconhecer a mim próprio, encontro-me mergulhado num non-sens, num delírio.
É o problema da aprendizagem da leitura (letras do outro) quando não houve antes iniciação à escrita (minhas letras – cartas – para o outro).
É o problema da alfabetização numa língua diferente da materna, é o problema dos "métodos" de leitura, sejam quais forem, quando, em vez de serem uma ferramenta a serviço do aprendiz, fazem dele o objeto de uma ideologia pedagógica.
Tudo o que o aluno pode fazer é, então, aderir ao espelho oferecido da letra, sem nele se reconhecer.
Essa aderência anula todo espaço de jogo e, impedindo então de se ver outro, impede o acesso a qualquer funcionalidade da letra, ou então cria uma funcionalidade mínima que logo se perderá.
fonte:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-25551998000200009&lng=pt&nrm=isso&tlng=pt (pesquisa em 15 de novembro de 2006)
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