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Contos-->A MORTE NO ESPELHO -- 26/05/2000 - 14:08 (Fernando Antônio de Araújo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Senti uma estranha sensação de já haver passado por aquela cena, quando vi o quadro “A morte no espelho” numa exposição na galeria de artes plásticas do Teatro Alberto Bonfim. Um sentimento de pânico e horror tomou-me a alma como uma maldição. Nunca havia me sentido tão próximo de um túmulo e tão desesperadamente sepultado na solidão do meu medo. Enraizado como uma Secóia, não pude me mover de imediato, mas meus lábios trêmulos murmuraram algumas sílabas ao homem que se encontrava ao meu lado.
- A quem pertence essa obra? - murmurei.
- Na verdade não sei dizer - respondeu o homem. - O que sei é que o autor enlouqueceu logo após terminá-la. Ele ateou fogo na própria casa, onde morava sozinho! Tudo se queimou exceto o lugar onde o quadro se encontrava! Toda a casa desabou ao redor do quadro, que foi encontrado pelos Bombeiros intacto ainda sobre o tripé onde havia sido pintado. Foi assustador! O fogo não chegou perto do quadro que ficou protegido num círculo imaginário de um raio de dois metros! O pintor também foi encontrado ainda com vida entre os escombros, seu rosto e partes de seu corpo sofreram algumas queimaduras... Ele gritava pedindo a própria morte! Mas foi levado a uma clínica para recuperação de queimados, onde assassinou o próprio médico e outras cinco pessoas com um bisturi! Isso faz dez anos, mas até hoje ele se encontra confinado no manicômio sem receber visitas. Dizem que ele não tinha família, pouco se sabe sobre ele. Seus documentos e seus objetos pessoais foram todos queimados no incêndio. No manicômio todos o chamam de ADJ, sigla que, como o senhor pode ver, está pintada no canto direito inferior do quadro.
Percorri meus olhos pelo quadro e encontrei a sigla. Mas o que me deixou mais assustado foi o conteúdo da obra. A pintura retratava a minha pessoa em meu próprio quarto trajando as mesmas roupas! Foi assustador! Eu me encontrava diante do grande espelho que existe do lado de dentro da porta negra do meu armário, ao meu lado estava minha cama com lençóis muito brancos e sobre ela o meu revólver calibre 38 fora da caixa, que foi jogada sobre as almofadas no canto do quarto. O meu tapete persa também estava lá, pintado nos seus mínimos detalhes, sob os meus pés e sobre ele a minha caixa de balas caída e as balas esparramadas. Pelo grande espelho e atrás de mim, via-se a porta da sacada aberta, onde as cortinas muito brancas balançavam no vento da chuva como uma dança de fantasmas. E entre as cortinas, um vulto no escuro fixava seus olhos satânicos sobre mim, empunhando um machado! Não era possível duvidar do que eu contemplava, o autor da obra retratou em detalhes todos os objetos no meu quarto! A cama e os lençóis brancos, o armário negro, o tapete persa, a caixa do meu revólver e o meu revólver, a caixa de balas, a porta da sacada aberta, a chuva, as cortinas brancas e o espelho, tudo retratado com muita realidade e ação!
- Não percebe alguma semelhança entre eu e a pessoa pintada nesse quadro?! - disse trêmulo.
O homem fitou-me dos pés à cabeça e em seguida contemplou o quadro. Olhou pra mim novamente e depois para o quadro, e balançando a cabeça negativamente disse:
- Não...não acho que você se parece com o personagem do quadro.
Ele olhou novamente pra mim, depois para o quadro.
- Talvez só um pouco semelhante por causa das roupas que você e o personagem pintado usam... Impressionante! É a mesma cor e o mesmo modelo! - ele concluiu.
Mas eu sabia! Pois era o meu quarto! A minha cama! Eu mesmo quem estava pintado naquela trama de morte! Arranquei os pés do chão como quem caminha num pântano lamacento e girando nos calcanhares caminhei dirigindo-me à sala do diretor da galeria. O homem estava de saída. Se tratava de um velho muito prestativo e simpático.
- Senhor aquele quadro está à venda? - perguntei aflito.
- Boa tarde! - disse o homem, sorrindo.
- Desculpe - respondi sem graça. - Boa tarde! O senhor, por favor, pode me dizer se aquele quadro intitulado “A morte no espelho” está à venda?
O velho contemplou o quadro a distância. Tirou os óculos do bolso esquerdo do paletó e os colocou encaminhando-se em direção da obra. Eu o segui. Ambos paramos em frente ao quadro.
- Sim! - disse o homem. - Ele pode ser vendido. O senhor deseja compr...
- Quanto ele custa! - disse nervoso. - Desejo comprá-lo!
O velho me fitou surpreso, franzindo as sobrancelhas.
- Ele custa quatrocentos e oitenta reais. - respondeu.
- Tudo bem! - respondi. - Fique com o troco!
Dei-lhe quinhentos reais em cinco notas de cem. O velho as segurou com a ponta dos dedos. Atravessei o cordão de isolamento e peguei o quadro. Saí às pressas da galeria com o velho me perguntando se eu não queria que ele pedisse que embrulhassem o quadro...
O crepúsculo lá fora era alvejado pelo anúncio de uma terrível tempestade. Abri a porta do meu carro e joguei o quadro no banco traseiro. Entrei rapidamente, ligando o carro e em alta velocidade parti para minha casa. O vento forte da tempestade já estava arrancando as placas das lojas do centro da cidade e levantando a poeira das ruas. A chuva começou arrasadora.
Parei no meio do caminho num armazém abandonado, saltei do carro com o quadro nas mãos e um isqueiro. Peguei um monte de jornais velhos jogados num canto, embolei-os e joguei-os dentro de um latão de lixo. O quadro também foi jogado dentro do latão. Ateei fogo nos jornais e no quadro que começou a arder em chamas. Um relâmpago seguido de um estrondoso trovão talhou o céu escurecido.
- Conversa fiada - gritei. - Conversa fiada! O quadro queima sim! Vá queimar nos quintos dos infernos quadro maldito!
Saí correndo. Entrei no carro e saí do armazém deixando o quadro em chamas dentro de um latão de lixo.
Eu ria. Eu dava longas e profundas gargalhadas que saíam das profundezas mais sombrias de minha alma. Quando entrei na rua de minha casa senti o demônio! Era um horror tão angustiante e profundo que mal pude estacionar o carro. Subi com ele no passeio em frente à minha casa. Saltei do carro na chuva. A noite já havia caído como um manto de viuvez sobre a cidade. A tempestade parecia as lágrimas daquele pesar lúgubre. A morte rondava minha casa. Eu pressentia. Outro relâmpago seguido de um trovão fez estremecer a terra.
Caminhei apressado rumo à porta da frente com as chaves em minhas mãos trêmulas. Quisera eu nunca ter atravessado àquela porta! Quando a destranquei e girei a maçaneta o meu corpo molhado pela chuva sentiu um calafrio. A porta se abriu vagarosamente e lá estava ele! O quadro “A morte no espelho”, estava intacto! Pregado na parede de minha sala bem diante de meus olhos.
- Nãão! - gritei.
Meus olhos não queriam acreditar no que viam. Meu estômago girou dentro de mim, senti náuseas, minha garganta secou, minha língua parecia uma lagarta peluda dentro de minha boca. Meu olhar perplexo percorreu por todo o ambiente. Eu sentia que ele estava ali!
Gritando, eu corri até as escadas que me levava ao andar de cima da casa, fui até o meu quarto. Quando abri a porta e acendi as luzes, um vento muito forte empurrou a porta da sacada e invadiu meu quarto. As cortinas muito brancas ergueram-se como fantasmas. Desesperado, corri e fechei a porta da sacada. Voltei até o meu armário e abri a porta do meio onde, por dentro, ficava um grande espelho. Puxei de dentro de uma gaveta a caixa com o meu revólver calibre 38. Abri a caixa, tirei o revólver e joguei a caixa em cima das almofadas no canto do quarto. Entrei em pânico quando destravei o tambor do 38 e vi que ele estava descarregado. “As balas”, pensei. Joguei o revólver em cima da cama. A caixa de balas estava bem ao lado de onde estava a caixa com o revólver. Quando eu a peguei um grande relâmpago e um monstruoso trovão, seguido da explosão do vento e da tempestade empurrando a porta da sacada e invadindo o meu quarto, me deu um susto. A caixa de balas escapou de minhas mãos trêmulas e caiu no chão em cima do tapete persa esparramando a munição do revólver. Foi nesse instante que pude ver no espelho o meu rosto pálido como cera, suando frio. Naquele instante percebi tudo, quando vi um homem molhado pela chuva, com as mãos e o rosto cheio de cicatrizes de queimaduras, saindo da escuridão da noite, entre as cortinas brancas como fantasmas, empunhando um machado e dirigindo-se em minha direção. A última coisa que vi, foi minha própria morte no espelho.

Fernando Antônio de Araújo
Maio de 1998
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