Usina de Letras
Usina de Letras
153 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62210 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10450)

Cronicas (22535)

Discursos (3238)

Ensaios - (10356)

Erótico (13568)

Frases (50604)

Humor (20029)

Infantil (5429)

Infanto Juvenil (4764)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140796)

Redação (3303)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6185)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->O encontro -- 13/05/2002 - 19:25 (Francisco José de Lacerda) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
0 Encontro,



Tenho medo. Há muito tempo que eu não escrevo, e o computador não tem ajudado em nada, pelo contrário. Achei a princípio que a facilidade em digitar o texto, brincar com as teclas, com a tela colorida, fosse um estímulo, mas qual o quê. Dois anos sem escrever uma linha. Só trabalho. Hoje, porém...
Deitado ali no quarto, sozinho, às três da manhã, vendo o vulto da janela, e os resquícios do que mais pudesse estar no quarto naquele momento, me veio urna idéia, e em seguida um pavor enorme. Eu podia regressar, se quisesse. Nunca tive isso tão claro na cabeça, eu podia. Algumas vezes tenho sentido essa mesma sensação, mas só hoje pude perceber realmente do que se trata. É regressão, disso que se trata. Pavor. Viver duas vezes. Pois parado ali no quarto, era como se eu estivesse de novo em Lençóis, trinta anos atrás, eu menino de doze anos, o som da estrada de rodagem ao longe, meu primo roncando ao lado, meus pais no outro quarto, o barulho dos pneus no asfalto. Mas... se a casa ficava tão longe da estrada de rodagem, como é possível?. Vim aqui pra tela, com as luzes apagadas pra não perder o clima, digitando tudo isso rapidamente e sem me preocupar com erros ortográficos ou com mais nada, em total silêncio, e agora estou começando a ficar com medo de verdade. O que é que me fez levantar da cama a esta hora e vir para esse quarto, quando eu tenho sido preguiçoso durante muito, muito tempo? Parece que o Cavalo baixou em mim de novo, como antigamente, só que desta vez fora de controle, os dedos martelando sozinhos o teclado. E eu que só escrevo a lápis primeiro... A sensação de estar aqui em Lençóis, de madrugada, é muito boa, faz a gente se sentir protegido, não sei porque. Meus pais ali no quarto ao lado, nessa casa velha caindo aos pedaços, meu primo aqui, roncando feito um porco. Como o porco que ele não quis vender hoje à tarde, praqueles fazendeiros que na certa são agentes do governo. Eles não querem saber de porco nenhum, com aquela conversa de perguntar aquilo; se o porco tinha sido morto na chácara...
-É porco de São Lourenço morto ali na chácara, não é? Como eles podiam saber? O que interessava a eles e ao governo deles, desgraçados ambos, onde meu tio matava os porcos? Fecho os olhos e esfrego levemente a ponta dos dedos, nesse silêncio de morte, nesse escritório frio como
um túmulo. Como é frio aqui dentro, o quarto se parece mesmo com um túmulo. Bem, não sei, ninguém volta do túmulo pra saber como é. Tenho medo. Medo do que eu possa encontrar em Lençóis, 1972, julho, o pessoal na praça, Bastião, Pé Grande, aquele baixinho que minha mãe chama de Tarrequinho. Meu primo. Nós estamos todos na praça, esta noite. Faz frio, meus pés estão frios, vou lá no quarto pôr uma meia, e continuo. Passar pela sala me apavorou um pouco, mas que diabo, eu preciso ter medo, preciso passar por essa experiência.
Estamos na praça, eu e esses sujeitos. Não tem mais ninguém na rua, está frio. O Bastião ‚ meio arrogante, mais velho, (eu queria ser como ele), eu sou mais novo do que todos os que estão aqui, tão pequeno se comparado a eles, evidente que só me deixam ficar aqui, por causa do meu primo, que é muito legal. Ou será que não, que gostam de mim de verdade? Afinal eles são muito infantis apesar do tamanho, e dos quatro anos de idade que nos separam. Pé Grande mesmo não é uma criança? Não consigo ouvir que estamos conversando. Eu (o eu que escreve), estou no banco da praça do lado de cá , e ali, a vinte metros, estão eles todos, (o eu pequeno e os outros). Meu outro eu está ali, último à direita no banco, ao lado do Bastião. Os demais estão de pé, pode ser? Vem vindo alguém, ou antes, me preocupa o fato de minha prima ter pedido pra comprar uma bolacha de coco, daquelas que tem na padaria de cima, e que é uma delicia, minha prima na porta paquerando e esperando o o bolachão, como ela chama o biscoito de coco, eles ali, chegou um vulto e todos fizeram uma gracinha boba, não dá pra perceber bem o quê. Nunca vi esse sujeito, um velho. Que, pensando bem, deve ter menos idade do que eu tenho hoje. Mexem com ele, é um bobo que chega rindo, sambango. A cara é nojenta, a boca fica se contorcendo num sorriso besta. Sentou ao nosso lado. É o tratorista, um tratorista qualquer, conhecido deles (o chulé que sobe dessas meias está me matando), há pouco passou por aqui aquela menina, desculpem, eu não me lembro do nome de ninguém, ou com os diabos, eu estou escrevendo pra mim, não é mesmo? Aquela menina, tão novinha e bêbada andando pelas ruas de madrugada, mexem com ela, e ela grita, VIADO, VIAAADO, o desespero dela, que parece fingido, por que não vai embora então? A praça não é propriedade dela, nós estamos aqui atormentando a coitada, digo, eles estão atormentando, eu fico parado me olhando, pequeno, tão quietinho. A menina grita, não sabe mais o que falar ou o que xingar, inventa palavrões, -VIAADO ELÉTRICO, VIADO PÓÓÓÓ... e chora, e vai embora. Ficamos aqui, apareceu esse vulto sob as lâmpadas fracas antigas, vagabundas, está frio e a neblina cobre tudo com seu manto. Mas que raio de manto é esse? A neblina cobre tudo, ponto. Não dá pra perceber o que esse tratorista velho faz aqui no meio deles ali, garotos, de madrugada. Mas veja só: pois não estão mexendo com ele também, como se fosse uma mulher, a menina de agora há pouco? O Bastião tira o ... o troço lá dele pra fora, as coisas ficaram meio estranhas. Por que é que eu não vou embora? Porque vim com o meu primo, é isso? A gente mora ali mesmo. O sujeito pega no pau do Bastião e começa a mexer, dá um nojo, e todo mundo está achando tudo normal, não está acontecendo nada, acho que é só minha inocência que está indo embora aos cacos. Esse quadro na parede está torto. O sujeito invocou comigo, comigo pequeno. Todo mundo está ali, mas ele quer ver como é que eu sou, e ninguém vai me ajudar. Todo mundo é amigo, todos são bonzinhos, e ninguém vai me ajudar. Por que é que eu não fui embora correndo pra casa antes, hein? Iam me chamar de mariquinhas, ou será que ia acontecer alguma coisa na noite ainda que eu não podia perder? Poder ficar até tarde (dez da noite), na rua, tomar licor de cacau no bar, depois do cinema. Licor de cacau o garçom deixa beber. Fumar um cigarro. O sujeito ri praquele menino que sou eu com o bagaço dos dentes, diz assim:
-Segura, que eu faço ele me comer na marra. !
E parece que eles vão segurar, o desgraçado está pegando no meu braço, eu aqui não posso fazer nada para me ajudar, só resta assistir impassível a tudo que está acontecendo. Meu primo tem autoridade no grupo e gosta de mim, que eu sei, mas não vai ajudar, ninguém vai. Não, chorar não, de jeito nenhum, agüenta aí, pelo amor de Deus. Isso. É tudo brincadeira, bobo, não estão dizendo pra você? Todo mundo viu o bebezinho com medo, vai pra casa!
Ontem foi a última vez que eu me aninhei junto ao meu pai, estava frio, e ele me abraçou debaixo do capote, estavam falando do campeonato, da fórmula um, o primeiro em que um brasileiro estava indo bem, e minha tia é fanzoca do Emerson. O pai não está aqui agora para me amparar, mas se ele estivesse vendo tudo isso, ah, ia ter! E não ia ser pra mim, não. Ou ia? A impressão que dá é que meu pai não pune por mim, mas pelo outros. Como é que esse tratorista, um homem adulto, casado, pai de filhos como dizem, fica de noite na praça pegando nos garotos. Eu não quero mais crescer, se é isso o que o mundo tem pra mim, é melhor ficar pequeno. Meu primo comprou um sapato novo e não quer que a mãe dele saiba, foi caro. Aqui, ó! Vou contar tudo!
Vamos todos embora, afinal, é bom andar pelas ruas da minha infância no interior, o cheiro dessa noite é o que basta pra deixar bêbado a qualquer um. A cor de terra das calçada, por que é que eu tenho tanto apego ao passado, às coisas antigas, ler a Realidade, olhar as propagandas? Viver naqueles tempos, como adulto, não teria sido a mesma bosta? E no entanto, viver não é uma bosta. Posso estar errado em tudo nessa vida, mas viver ...viver é o que há! Essa estante já estava pronta em 1972, e continua a mesma, bem cuidada por mim, não envelheceu um dia sequer. Aqui ao meu lado, esse monumento que é a minha estante, o primeiro bem que eu comprei na vida. Comprei sozinho, eu digo. Agora preciso ir. Deixo esses bons rapazes caminhando pela noite, a frase é bem esta, não estou querendo ser piegas não, é de propósito. Lá vão eles, em boa hora, dobrando a esquina, meu primo e eu entramos pela porta da rua que fica sempre aberta, todos deixam a porta aberta, a que dá direto pra rua. Vão dormir, e eu volto ao teclado, minhas mãos enormes, carregadas de veias e de anos. É muito idiota o que eu vou dizer, mas minhas mãos aqui, nesse instante, se parecem com os galhos de um carvalho retorcido, e eu nunca vi um carvalho de verdade. Melhor dormir. Desligar tudo. Mas antes passar esse corretor ortográfico, que é uma mão na roda.





Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui