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Artigos-->Notas esparsas sobre o Engenhoso fidalgo Dom Quixote de La m -- 25/02/2007 - 10:05 (Júlio Carvalho) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Cervantes não poderia imaginar, quando criou a dupla mais famosa da literatura, que os seus dois personagens poderiam alcançar tanta fama e sucesso. A fama que Dom Quixote esperava conseguir com suas aventuras, ele alcançou com a leitura delas. O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote, logo na publicação de 1605, tornou-se conhecido em toda a Europa. Foi tanto o sucesso que aconteceu o que era comum, na época, quando uma obra de arte se consagrava: ser imitada. Por isso surgiu a versão do Dom Quixote do Avelaneda, considerada como “edição apócrifa”. Talvez premido por este fato, Cervantes resolva, em 1615, publicar a Segunda Parte já prometida.

Em uma entrevista na TV, um fotógrafo, Eyen Baycan, chamou atenção para o seguinte: a visão do Dom Quixote é uma (irreal;) e a do Sancho é outra (real). Achei interessante esta observação. Na verdade, na organização do enredo, este contraste é parte significativa de uma significação central do romance. O Quixote vive na “fantasia” e o Sancho é um homem prático. S e bem que, a partir de um certo momento, o Sancho acaba se deixando envolver pelo “mundo de sonho” do Quixote.

O Quixote é um personagem criado pela leitura. Ele deixa de ser o Quijada (o texto até brinca com o nome civil do herói - ser Quijada ou Quesada) o que “pouco faz para a nossa história”, como diz o texto. Ele, o Quixote, é o Quesada lendo os romance de cavalaria, os romances pastoris e outros tantos textos, até, que, em certo momento da história, o Quixote é ele se lendo em sua própria história. Complicado? Um pouco, mas altamente inventivo; ponto a favor da literalidade desta obra.A narrativa do Quixote é uma narrativa sobre narrativas e fatos literários. Como o personagem lê histórias literárias, ele e seus parceiros ficcionais vão gostar de ouvir histórias.

O Dom Quixote, trabalhando criticamente o modelo do Romance de Cavalaria, acabou por gerar as bases para um novo padrão ficcional. O texto de Cervantes significou um “Rito de Passagem” Literário.

Esta lógica do novo, da liberdade criadora, fará com que a narrativa, renovando a sua técnica, a todo o momento, ceda seu espaço para outros textos literários. Alguns textos, intertextualizados com o principal, são líricos, sendo que alguns estão carregados da “coita” do amor.

Cervantes sabia que o texto existia na realidade da leitura e que cada leitura era uma realidade. O seu romance é uma homenagem à leitura (e ao leitor). Enquanto texto escrito ele é leitura (toda escrita é uma leitura!) preparando-se para ser outra leitura. O escritor no ato da escritura morre para renascer como um outro, o personagem.

Dom Quixote tem como arma a lança. Dom Quixote é a alegoria do homem-escritor. Sua arma é igual à lança; a pena com que escreve.Alegoria por um lado, por outro, uma metáfora de um ser envolvido por um sonho de uma vida ideal. O personagem acreditava que o “mundo da cavalaria” era um modelo ideal. Para ele, naquele universo havia perfeição. A leitura será responsável por registrar o anacronismo: um ser anormal porque acredita no irreal. O texto marca um fosso intransponível entre um ideal e o real.

A narrativa, na segunda versão que deu continuidade ao romance, quando a história está em suas derradeiras linhas, encontra uma original solução e não só reafirma a condição do personagem como um ser da escrita como também se previne contra os apócrifos:



“/.../de como Alonso Quijano, o Bom, chamado vulgarmente Dom Quixote de La Mancha, fora levado desta vida presente e morrera de morte natural, e que pedia esse atestado, para evitar que outro autor que não fosse Cide Hamete Benengeli o ressuscitasse/../ (II, 511)”.



O escritor deseja a façanha, a aventura da criação, guiado pela fantasia. O nosso personagem também deseja a Glória e a fama. Verônica Rangel Barreto, em seu artigo sobre o Quixote (Andanças Idéias Insanas/.../In; _www. Ile. cce.ufscc.br), também percebe que o personagem e seu autor têm “sede de fama”.



Com relação ao que dissemos antes; que o relato abriga em seu corpo outras histórias, vezes há que estas são independentes; histórias com principio, meio e fim que nada tem a ver com o que vinha sendo contado. Episódios que podem ser extraídos da história principal, mas, o que, na verdade, não deve ser feito, pois sempre há um propósito correto para esta intercessão. Um exemplo: Capítulo XXIII-o episódio da Serra Morena.



A narrativa “brinca” com a nossa leitura, pois em certos instantes o Quixote começa a viver com certo bom senso, mas, rapidamente, volta ao seu estado natural. A leitura se interroga: será que ele poderá mudar? O Quixote tem cura? O jogo gera alguma expectativa para a leitura, o que é correto, pois o desempenho literário de uma narrativa depende, em termos de qualidade, destas “expectativas”. A narrativa vive de “burlas” com o leitor. O próprio narrador, de repente, deixa de ser o narrador e passa o serviço para outro: um narrador árabe sendo traduzido por um árabe. Mas o próprio texto nos adverte que com árabes é preciso ter cuidado porque esta gente gosta de mentir. Na segunda parte, a narrativa “perturba” ainda mais o leitor fazendo com que o personagem, agora, seja marcado pelas leituras que dele se fizeram: o texto parece dizer: olha, a partir deste instante o Quixote está marcado pelo Quixote-lido.O Quixote, em sua modernidade, afirma que romance é ficção, portanto nada a ver com uma verdade verdadeira. Romance é loucura, fantasia, sonho, espaço do ireal, paródia; um grande Carnaval.



Não compreendemos o Dom Quixote como uma crítica ao Romance de Cavalaria ou como um réquiem do gênero. O uso desta forma ficcional tem uma significação mais complexa.Em princípio poderíamos dizer que o texto chama nossa atenção para o desgaste do gênero, vítima de uma utilização abusiva e sem inspiração. Ilustraríamos isto com o que ocorre quando da primeira saída do Quixote que, ao voltar todo ferido, faz com que o Cura e o barbeiro, preocupados, com o que ocorrera, comecem uma “Santa Inquisição” na biblioteca do Quesada. O livro que é bom fica, o que é considerado ruim vai para a fogueira.No Prólogo, o possível amigo a quem o autor dedica as primeiras notícias de seu texto, declara “tende sempre a mira em derribar a mal fundada máquina destes cavalheirescos livros aborrecidos de muita gente, e louvado os queridos de muito mais”. Então há os que são “queridos de muito mais”. Depois falaremos disto.



Outro ponto curioso em nossa história são as “cenas dramáticas”, verdadeiros episódios teatralizáveis. Lendo é como se estivéssemos assistindo a uma representação teatral.Isto vai acontecer intensamente na Segunda Parte da obra, no Castelo do Duque. Um exemplo é o que ocorre na estalagem, no Capítulo XXVI, no encontro de Cardênio, Lucinda, Dom Fernando e outros. A cena tem a intensidade dramática que se consagrará, depois, com o teatro do Romantismo. O texto desde o início mostra sua vinculação com a teatralidade. O ator Quijada veste o seu guarda-roupa e passa a ser o personagem Quixote. O seu texto é o Romance de Cavalaria.



Acabando a narrativa o Quixote quer ser outro personagem; um pastor; o Quixote. Todos se espantam, vendo nisto uma “nova loucura”.(II, 504) Mas não cumpre com o prometido, nem poderia. Ele era para ser apenas e tão somente Dom Quixote. Não há mais tempo para outra “peça”!

No último capítulo o personagem que fala à sobrinha não é o Quixote; este já morrera com o fim da história. O que diz:



“Tenho o juízo já livre e claro sem as sombras caliginosas da ignorância com o que ofuscou a minha amarga e contínua leitura dos detestáveis livros das cavalarias/.../” (II, 507)



Não é o Quixote, é o Quijano; um ser insignificante no seu mundo real, mas glorioso em outro (o da narrativa) como Dom Quixote. O Quijano é quem não quer “renome de louco”.

“Já não sou Dom Quixote de La Mancha, mas sim Alonso Quijano”. (II,508)



Sancho percebe que o que está falando é outro, mas tem a esperança de que o seu personagem verdadeiro possa renascer.

Quijano sabe que não é O Quixote. Ele, para a vida verdadeira da narrativa, morrera; para o fim da história volta a sua condição inicial: um morto.

Cide Hamete, o heterônimo do narrador, diz bem: “Só para mim, nasceu Dom Quixote, e eu para ele: ele para praticar as ações e eu para as escrever” (II 511). Esta afirmação genial poderia servir de epígrafe para um bom Seminário sobre a teoria da narrativa. Acrescentamos: nasceu pelo narrador para o leitor.

O que o personagem fez? Ele colocou toda a sua heroicidade a serviço de uma luta titânica contra toda ameaça. Coisas julgadas maléficas em nome de princípios pessoais que pretendia defender com a sua luta.

Há uma realidade para o personagem que é irreal para a leitura, Informada pelo texto, a leitura sabe que o que o personagem está enfrentando não é um monstro, mas simplesmente as pás de um moinho movidas pelo vento.



A leitura vai recebendo a todo tempo informações semelhantes que persistem em justificar a caracterização do personagem como um louco movido por um fantasia doentia. Este é o móvel principal das ações.

Por que a leitura não desiste desta narrativa com uma trama tão repetitiva? Por que a leitura não se cansa em acompanhar um personagem que é um autômato? A resposta está no fato de a história nos seduzir (a nós leitores) com um personagem, que não se modifica, mas que, ao mesmo tempo, é tão complexo; tão humano...demasiadamente humano !

Dizer que o personagem é um louco, que é movido por uma grande perturbação é simplificar o fato. O personagem é ricamente complexo, por isso precisamos indagar mais profundamente esta questão. O personagem é complexo, mas toda a obra é complexa.Maria Augusta da Costa Vieira, lendo Hauser, nos auxilia na visão desta complexidade que surge com o Maneirismo.



“Abandona-se por completo o idealismo de que a obra de arte é um todo orgânico

e indivisível e nasce a concepção de que a obra se compõe de elementos heterogêneos e múltiplos que guardam certa independência entre si”.

(VIEIRA, 1998; 56).

Cervantes, graças à sua grande experiência com relação à Fauna Humana, esculpiu este personagem especial. Observando-o, notamos que poderíamos fazer sua “leitura” recorrendo a alguns elementos da Psicanálise Contemporânea. O que gostaríamos de mostrar é que Cervantes há quatrocentos anos estrutura um personagem que pode ser examinado com base nestes pressupostos.

Seu comportamento, com relação ao Real exterior, despertou-nos a idéia da Alucinação, da ação da Fantasia. Tudo isto aliado a uma enorme nostalgia do passado; esta ausência de elementos de uma ordem anterior que não podem ser recuperados, além de, por parte do personagem, a esperança em uma realidade fora do tempo e do espaço; uma Utopia. Descrença com o seu tempo histórico.O romance confirma o afirmado por Christine Brooke-Rose de que todo romance “ tem suas raízes em documentos históricos e sempre teve uma relação íntima com a história” . (ECO e outros. 1993; 161-162).

Dom Quixote é a Ficção tornando-se Ficção! Ser do “livro”, o Quixote é o homem ocidental em um momento histórico em que o texto impresso ganha importância, Os poderes do livro e da leitura estão no nascedouro do homem moderno. O livro, trazendo uma nova forma de contacto com a informação, agita o pensamento deste homem e o ajuda no seu isolamento; um ser, agora, abandonado no mundo.

Quixote é um personagem do mundo da Reforma e da Contra-reforma. Lutero prega o acesso individual, pela leitura, ao conhecimento de Deus. O movimento da reforma também participa deste cenário do homem moderno.

O homem moderno é o homem das neuroses e das psicoses!

Toda esta complexidade que percebemos no Quixote, Hauser atribui ao Maneirismo: “/.../as varias alusões feitas pelo autor ao fato de que o mundo de sua narrativa é fictício, a constante transgressão das fronteiras que dividem a realidade imanente na obra e a realidade fora da obra”, isto, e muito mais, o autor da História social da arte e da literatura aponta como elementos do estilo maneirista (Hauser. 200; 416ss).Para ele, portanto, devemos sempre levar em conta que Cervantes trabalhou subordinado ao Código Estético do Maneirismo.

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