A CORDA ESTENDIDA
Luís Sérgio Santos
Para Tânia
“A mulher amada
É o tempo passado no tempo presente no tempo futuro
No seu tempo”
Vinícius de Morais.
“Meu corpo de lavrador selvagem te escava
e fez soltar o filho do fundo da terra”.
Pablo Neruda.
1.
Eu te amo no fluir de um amor maduro.
Pacto insondável, risco de clarão no escuro
existindo entre o fruto e as sementes,
e no resplandecer do que em mim inventes.
Eu te amo até a exaustão das folhas
que o vento folheia na árvore dos adventos
disto que é essência dos conhecimentos,
íntimos como a água e a terra, ou outras escolhas.
Outras escolhas para ver o teu rosto
nos espelhos, nas poças dos desejos da tarde,
outras escolhas para te fazer um alarde.
És uma música estremecendo o decomposto
silêncio quando faço em ti viagens
criando ruas, praças, e moradas em tuas paisagens.
2.
Almas nos cristais, palavras nos cristais,
conheces como a estes seres que fogem dos quintais
quando transpomos os muros da infância
para desvendar o azul, e abrigar a ânsia.
Conheces os olhos dos bichos, e as selvagens
ternuras neles ocultas, e os enigmas nas mensagens
dos brinquedos dos parques em dias de equinócios.
Sabes que temos trabalhados para alguns ócios.
Sabes da beleza que há num cavalo marinho,
e que o aquário é um temporário desalinho,
e que morrer é a nossa vida mais antiga.
Sabes a fábula da cigarra e da formiga
e como as pequenas coisas pesam nos ombros,
quando percebemos que é nelas que estão os assombros.
3.
Plenos, calmos, e claros, assim
vão teus passos pela casa e fronteira,
estavas ali pronta a vida inteira.
Há um tempo sem princípio e sem fim.
Andas longe, depois andas perto,
sei onde estás e sou descoberto.
Diurna és noturna e prontamente
vives o que o teu ser consente.
Pisas sobre o dia dentro da noite e vem,
pisas sobre a noite dentro do dia e vai,
para onde a sombra na tua sombra se esvai.
Este é um tempo em que caminhar contêm
todos os teu passos encontrados
e então se silencia em nossos lados.
4.
Há ventanias entre os teus cabelos.
Há um cata-vento em tuas portas,
e rangem as primaveras nas comportas
do tempo, rangem a te pedir os zelos.
Há latitudes, profundos meridianos
que não dividem e só ampliam os danos
em distâncias. Se para sempre anoitecer
apenas iremos desta mesma noite renascer.
Nas raízes dos dias os relógios são magos,
não há como fugir de um calendário de afagos.
As águas dos olhos não molham o mar.
Aonde decifraria em mim o teu estar ?
O tempo nunca é perdido nem encontrado,
se eu te prendesse, seria por mim mesmo aprisionado.
5.
Garimpo o minério dentro do teu mistério.
São afáveis e vertiginosas as cachoeiras,
andarei descalço pelo teu nome nas rudes beiras
do abstrato, do concreto, do infinito, e do etéreo.
Abstrato amor, se me alcanças, somos alcançados.
Haveremos de formar letras para uma palavra,
seremos tênues e assim mesmo ossificados
a renovarmos a terra onde a luz se crava.
Concreto amor, és de uma míngua, e és de um excesso,
tens diversa natureza, singular e plurificada
a quem entrego os braços de uma enseada.
Infinito e etéreo amor, somos pedaços do tempo,
pedaços infinitos porque divisíveis qual o vento.
Vento de nosso princípio, vento onde não cesso.
6.
Por razão de ser um, os que eram dois,
o amor nos prepara outra identidade,
e reconhecemos no antes e no depois
a entrega, e espera de cada metade.
O amor é rio rompendo a terra
e atravessar é ato que não se encerra,
sempre estaremos no princípio, porém cedo
ou tarde, faz um só tempo: o do passaredo.
Tempo de horizontes e de existir o que é asa
para quem ultrapassa, e extravasa
para o outro ser o espaço do voar.
Voar após mergulho, e ver do alto
o alvo, o salto/sobressalto
do que pode ser o amor em vôo e navegar.
7.
Vemos os rios, e somos o que é correnteza,
vemos e somos partes da natureza.
Há em ti múltiplos rumos de sabores
prontos de plenitudes em vastas cores.
És guardiã e sigo os teus passos,
abro tuas aquarelas, teus prontos laços.
És guardiã do muito e do pouco
e a minha linguagem é de mar feito rouco.
Sei o ruído após o silêncio, teu mundo
sei o incêndio de um mar profundo
vejo a água que sai dos teus olhos.
Sei o inventário de tuas margens
divides o vento das minhas paisagens
teus olhos são partes dos meus olhos.
8.
Percorri o pânico dos teus olhos ao vento,
esqueci no fogo o sopro e o assobio,
dependurei pássaros em fios sem sustento,
molhei as mãos e perdi os meus dedos no rio.
Todos os pensamentos não cabem num porão
onde trocaria a luz pela lâmpada de um cego.
Há sangue nas faces das facas e não nego
que os esquecimentos germinam um vasto grão.
Ante o rio em que escavo uma das margens
deixo o grão-semente sendo alguma foz,
e na outra margem busco a origem da tua voz.
Nunca estarei onde só te vejo em imagens:
É como a chuva não afogando a uma cidade,
é como faiscar a treva para trovoar a claridade.
9.
A mão direita deve ter outra mão direita
certo como há um sol que se levanta e se deita,
a mão esquerda deve ter outra mão esquerda,
certo como todo achado é de alguma perda.
Não a perda eventual e dita desnecessária,
mas a perda que é o exato e grande ganho
do amor arrumando com gravidade o seu lanho
para que possa pousar e demarcar uma área.
Área / Áurea de alacridade com frente e dorso,
área de se ver face a face e no esforço
de quem abre o mar e pensa um navio.
Navio para aventuras de se chegar a ilhas
onde ser descobridor é criar as maravilhas
do que permite o tempo com seu inarrável poderio.
10.
Vives em mim e trazes o teu beco,
guardas ali a minha espada
dentro da árvore alada
que germina o frio-quente-úmido-seco.
Vives em mim quando vou a nascente,
uso o sol, e te vejo de uma janela
onde teu nome me escuta e revela
quando / onde sou em ti nascente.
Sou em ti nascente, sou em ti poente.
Vejo o mar, imagino desafios,
vejo o mar e teu corpo são rios.
Vives em mim qual uma nascente
da água que vou na chuva, no rio, no mar.
Vives em mim, és um mar dentro do olhar.
11.
Percebo haver em mim um novo acontecimento,
um poder de quem abre um livro e não se ilude,
e porque deverei ser saciado numa plenitude
farei signos e profecias neste firmamento.
Aconteces novamente em minha antiguidade.
Acho que escrevi estas linhas noutra vida.
Há uns cento e cinquenta anos de sensualidade,
de sonetos, e de neles haver dito: - És florida.
Ajardinas as férteis terras da minha juventude,
trazes em teu cio os verbos da lua: - luarir,
luançar, lurejar, luacenir, luranar, enluir.
Não somos irreais, e nem encontrados ao acaso,
e este profundo calor, e este frio tão raso
são os meus silêncios ante a tua amplitude.
12.
A carne se recompõe bem mais que a alma,
áspero e úmido é o coração, é quase um lago
onde caem pedras, e na turva água não há calma.
A carne é o pão, e as terras de uns países
nos quais as árvores nascem com cantigas nas raízes,
e após expandem as folhas até as distraídas
ruas que caminham para dentro de nossas vidas.
Trago muitos dias do teu corpo ao meio do dia
que não os demarcados pelo clamor da numerologia.
Eu te recomeço, tu me recomeças: - vamos nascer.
Há um tempo em que o amor não pode ser
a idéia de uma estrela perto da idéia do carvão,
terrível é querer as sombras das árvores da paixão.
13.
As palavras da carne são várias
quais faces de luzes em luminárias.
São ventos ou quase dentes,
são montanhas ou seios em poentes.
És em luz branca, branca qual lírio,
és de repente outra cor, és delírio,
podes ser olhos cheios de laranjas
podes ter flores que em ti arranjas.
Há horizontes em um lugar – céu.
Há vozes descobertas sem véu,
e a carne conhece desconhecida palavra.
É onde o silêncio sempre fala,
é onde o silêncio mais cala
que a carne se faz palavra que se lavra.
14.
Volto às lendas do mar e da areia
e a olhar crepúsculos por longo tempo,
deve ser a paixão repentina aldeia
de pontes, vales, e um trem com os vagões de alento.
Volto as pedras e nelas vejo significados.
Penso terias vasculhando teus nexos
coloridos onde antes nem os comuns reflexos
diziam que os prismas poderiam ser encontrados.
Volto a amanhecer, a entardecer, e a anoitecer,
a estas três estâncias que conviviam numa só
enquanto estive único, e torto no próprio nó.
Volto aos fôlegos, e aos quatro ventos a dizer
que a esperança tece uma rede que nos levita.
Volto a ser o acreditado, e o que ainda acredita.
15.
Serei um guerreiro e o repouso
é o que te pedir ainda ouso,
a(r)mar, a(r)mei para amar
a armadura de quem vai o amor arcar.
Desa(r)mado porém estou para a guerra
trago as noites fechadas, e serei escudo
para tua defesa. Só iludo
se disser que a paz não encerra.
Não me defenderei, seremos vencedores,
vejo a tua pele de mulher em rubores
de quem tem a chave dos dias para nos mover.
Não te defendas, seremos vencedores,
vejo que caminhas, e sei dos rumores
que hás de voltar sendo o nosso vencer.
16.
Vens de regiões antigas e conhecidas
eras o mistério de uma maçã,
sabes das dores consentidas
do que era costela e se fez lã.
A lã do sol acordado iluminado
qual novelo se desfazendo em raios
de onde se tece um dia e se faz um arado
para o que há em ti, de arco-íris e ensaios.
Arar todo o teu corpo, em guerra
onde cada gota noutra se agarra,
como se ali habitassem todas as chuvas.
Saber teus olhos e abrir
qual o sol trazendo o repartir
de laços em tuas mãos, e nos campos uvas.
17.
De que argila faz teu ventre o não limite
na construção de um espaço sem medida
que volta em ondas, laços, e não omite
as linhas da minha mão em tua vida?
Repartir a fúria dos dedos, dos sopros, das bocas
metamorfose de nó sendo nós a substância,
tuas margens, tuas árvores, tuas frutas ocas,
e saber como fica perto, perto qualquer distância.
Saber / repartir numa exata ciência
e estar entre estes grãos, esta consciência
de que somos muitos quando dois em unidade.
Montanhas como terras planas, montanhas
sendo um dia que se escala quando me acompanhas
onde habito o teu ser, teu ser como a uma cidade.
18.
Agita tua voragem de sono não consentido e vem,
e vem dançar na rua de minha artéria, pulsa,
dança até o amanhecer, dança até o gemido
de um galo que não se cansa de te anunciar. E pulsa.
Pulsa para cada ramo onde o sangue dobra
em minhas partes, em tuas úmidas partes,
o sangue como a língua de um rio e obra
de alimentos, e desenhos que em mim repartes.
Pulsa, salta que salto de assalto a tua boca
e tua caverna dúbia, tua caverna espessa e oca.
Pulsa e lateje tua chuva, teu brando crepúsculo.
Andar teus caminhos, andar / nadar
como se atravessando um rio a molhar
o tempo, o sentido e a direção de cada músculo.
19.
Do verde em meus olhos arranquei a rosa
que te dei, que te visto, sou prosa
para poder teu ser assim ajardinar,
tens a fertilidade da semente no ar.
Tua paisagem permite vastos cultivos
e são canteiros de gestos cativos
que um dia te dão rosas, noutro margaridas,
- um dia se faz terras, noutros vidas.
És acolhida de um tempo por inteiro
invadindo o verão, outono, inverno
e trazes a primavera em cio eterno.
Para que nasçam flores é que cantas,
e porque cantas, as flores são tantas.
És a terra, és a terra, és terna, sou verdadeiro.
20.
Eu é que lavo os olhos em tua boca,
e ainda te escavo atravessando através
do luar rondando uma nuvem oca
quando naufrago no ruído das marés.
Tu que és a criação de uma floresta,
- o que aprendemos em um vagalume?
Por quais sombras levas o que resta
do que me ensina o que lume?
Eu que te respiro em vastos arrepios,
por que não vens e bebes dos meus rios?
O meu coração é um peixe que acorda.
Te invoco sonho, e te invoco musa
e tocaria em teus dedos mesmo na recusa:
- És a viola onde estendo a minha corda.
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