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Teses_Monologos-->Carta de Suicídio -- 23/03/2002 - 10:41 (Guilherme Laurito Summa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Meu nome é Lúcia. Em latim: “luminosa, luzente, que brilha, nascida ao romper d’alva”. Meu irmão disse-me que nosso pai sussurrou-lhe isso no ouvido, antes que o câncer consumisse por inteiro sua vida. A minha história foi muito simples, pode ser contada no tempo em que fumo um cigarro. Meu irmão, que sempre esteve do meu lado, participando dos principais acontecimentos da minha vida, disse-me que nasci num dia de muito sol, no meio de uma confraternização de bissexuais, à neblina deixada por baseados, ao cheiro forte de bebida misturada que emanava da garganta mal-cheirosa da minha mãe. Nasci à beira de poças de vômitos espalhadas, deixadas por gente fraca e ignorante. “Você era a única que prestava naquele antro”, dizia ele.
Estou revelando minha vida, meu passado, minhas experiências, através destas palavras, na esperança de que alguém interessado numa vida desinteressante leia, logo depois de descobrirem meu corpo narcotizado. Não é drama, é muito simples: viver é deprimente.
Há alguns anos, quando morávamos juntos, uma tal de Irene Castrano, ou Catano, alguma coisa assim, apareceu na vida do meu irmão. Ele tinha vinte e oito anos na época e eu quinze. Não gostava muito da situação, afinal, ele estava trocando aquela mulher, mais velha e mais madura, pela irmãzinha que sempre cuidou. Apesar de tudo, estava feliz por ele, por ter encontrado “a mulher que estava em seus sonhos”, e por ela também, por ter a sorte de ser “a mulher que estava nos sonhos” do meu irmão.
Ele a idolatrava. E ela, na minha opinião, apenas gostava dele. Um amor que não tinha um equilíbrio! Ele me consultava sobre “presentes a dar para uma mulher”, e eu aconselhava a dar uma caixa de bombons: ela engordaria, não existiria mais atração dele por ela e estava tudo bem, mas ele acabava pensando melhor (sabia como agradar uma mulher) e lhe dava um buquê estupendo de flores, com direito a cartãozinho com declaração. Em troca, ela lhe dava “amor”, abraçava-o, beijava-o, transava com ele no mesmo dia em que recebia as flores. Para ele, claro, o amor dela bastava, era tudo, mas ela nunca dava nada além disso para ele, nem uma gravata ou sequer um par de meias!
Três meses depois de tê-la conhecido, ele estava totalmente diferente do Roberto que eu conhecia: só falava dela, só arrumava-se bem pra ela, só pensava nela. E aquela morena “bonitinha e pequenininha”, como ele a chamava, estava começando a se encher dele. Eu via isso nitidamente naquela mulher: em seus olhos e em seus gestos, principalmente quando vinha jantar em casa, ela evitava ficar grudada nele e não era porque eu estava por perto. Acho que ela estava cansada do excesso de afeição dele. Na verdade, acho que chegava a irritá-la e o pior é que só nós duas víamos isso.
Algum tempo depois, me lembro muito bem desse dia, meu irmão chegou em casa totalmente bêbado. Eu estava sempre por dentro da vida dele, portanto, tinha entendido imediatamente o que havia acontecido: ela tinha terminado com tudo. Naquela madrugada ele estava muito alterado, chorava muito e bebia cada vez mais. Houve um momento em que ele largou a garrafa de uísque e se acalmou, encostando sua cabeça no meu colo e desabafando. Disse que não entendia o que tinha feito de errado e que ia acabar que nem nossos pais: mortos por alguma doença incurável. Meu pai foi aniquilado pelo tumor no cérebro. Minha mãe ficou tão deprimida que se suicidou, cortando os pulsos com a faca que meu pai usava para cortar mexerica, a fruta que ele mais gostava. Meu irmão morreria de amor. Parece tudo tão lindo, mas é uma merda! Uma merda para quem fica neste sofrível plano: a vida.
Meu irmão me ajudou a vencer o trauma de crescer sem pais. Eles morreram quando eu era bem pequena e se não fossem por algumas fotos que ele guardou, eu nunca os teria “conhecido”. Ele dizia que meu pai era muito inteligente e, o mais irônico de tudo, que era um cancerologista, e que desperdiçou sua vida pensando só nos outros. Dizia que minha mãe pesquisava sobre assuntos polêmicos e fazia teses sobre os mesmos. “Ele era tudo pra ela... e um pouco mais”, dizia, esclarecendo a relação entre os dois.
Meu irmão me ensinou a não desconfiar das pessoas, que pensasse nas conseqüência antes de fazer isto ou aquilo, que não fosse fraca como nossa mãe fora. Mas eu sou fraca também. E é por isso que vou acabar com a minha vida através das cápsulas que estou ingerindo. Não sinto o gosto delas na minha língua e nem sei se estou engolindo-as ou se estou chupando-as. Estou completamente alucinada! O porre vai ajudar a acabar com tudo isso o mais rápido possível. Se deu coragem ao meu querido irmão para se matar, vai me dar coragem para tomar todos os comprimidos desse potinho vermelho.
Faz cinco anos que meu irmão se jogou da sacada do apartamento onde morávamos, no décimo andar. Acordei com frio naquela noite e descobri que ele não estava no quarto. Um cheiro forte de bebida estava no ar. Logo vi duas garrafas de bebida no chão. Fui até a sala e vi as cortinas se balançando bruscamente por causa do vento: a janela de vidro estava aberta. No vidro havia um bilhete. Só percebi o bilhete, claro, depois de verificar o que não imaginava que fosse acontecer: meu irmão tinha saltado, sim. Vi um corpo estirado no pátio, lá embaixo, com uma poça de sangue imensa em volta na cabeça visivelmente estourada. Antes de descer chamei a ambulância; foi o desespero, sabia que o corpo dele não tinha mais vida. Chorava e berrava “oh, meu deus, não!” enquanto descia a escadaria. Não consegui esperar o elevador sabendo que o meu irmão estava lá embaixo, talvez ainda respirando, dizendo algumas palavras. Mas não foi assim. Por um momento, quando cheguei perto de seu corpo arrebentado, simplesmente não acreditei que fosse ele. Seus olhos estavam esbugalhados e as pernas quebradas. Havia um rombo imenso na cabeça, por onde escapava todo o sangue de seu corpo, e a cara estava colada no chão, como se ele estivesse afundando no piso. Foi horrível, insuportável!!! Abracei-lhe o corpo e não parei de chorar... até hoje.
Não consegui superar a morte dele. O bilhete de suicídio dizia que aquilo era uma prova do quanto amava a vadia da Irene. Nos primeiros meses, fiquei louca e até cheguei a ameaçar de morte a vagabunda. Parei os estudos, perdi todos os meus amigos, fiz terapia e acabei indo morar com meus tios. Não deu certo a mudança. Não sabia que meu tio de segundo grau gostava de garotinhas. O filho-da-puta tentou abusar de mim, mas os ensinamentos do meu irmão me tornaram madura e, uma semana depois, aquele desgraçado estava na cadeia, onde não irá se aproveitar de mais ninguém. E vai precisar de uma boa pomada pra passar na bunda, todas as noites.
Depois de todo o escândalo na casa dos meus tios, acabei indo morar com uma grande amiga que conheci no colégio, quando estudava. A família dela me aceitou muito bem, sabiam o que eu tinha passado e praticamente me adotaram. Mesmo vendo o protótipo perfeito do ser humano no meu irmão, um homem, descobri que sentia atração por mulheres com quatorze anos. Então, os pais e irmãos da Alissa, não sabiam que nós namorávamos nos tempos de colégio, às escondidas. Ambas tínhamos forte desejo uma pela outra naquela época e isso aumentou muito quando fui morar na casa dela. Tocar seus seios, sentir seus lábios, fazer amor com ela, puro e gostoso, longe de qualquer aborrecimento, preconceito ou notícia de morte, me ajudava a esquecer por uns momentos o sombrio do passado. Meu irmão, obviamente, não esquecia.
Hoje fez seis que anos que meu irmão morreu. Essa data é muito dolorosa para mim, sempre me faz lembrar os melhores dias que passamos juntos. E isso dói. Mas me conformo um pouco pois sei que quando estou sozinha, como agora, ele está aqui ao meu lado, na forma de um espírito, enviado por uma Força que desconheço. Ele está me olhando agora. Está vendo o estado lamentável que estou, mas está sorrindo. Não entendo o porquê de estar sorrindo, devia estar triste por eu estar destruindo a vida que ele ajudou a construir com muito cuidado. Não importa. Talvez ele esteja feliz por eu estar deixando todos os sofrimentos da vida, e por eu estar indo diretamente ao encontro dele.
Estou indo. Estou me sentindo mal, cansada e com uma dor de cabeça interminável. Alissa me abandonou. Ela escondia de mim que usava drogas, drogas pesadas, e há dois dias uma overdose de cocaína acabou com sua vida: estraçalhou seu cérebro. Ela era o único motivo pelo qual eu queria viver. Sempre ouvir dizer que quem tira a própria vida acaba no inferno, mas não acredito nisso. Quando meu espírito deixar esse corpo, vou me encontrar com Alissa e com meu irmão, as únicas pessoas que amei e que me amaram. Talvez cruze com meus pais também, mas não vou reconhecê-los. Estou morrendo ao som de The Cure, que poético.

Vou guardar isso só para mim. Acordei há dois minutos e termino aqui minha “carta de suicídio”. A próxima vez que pensar em Alissa será para tentar esquecê-la. Digo o mesmo sobre meu irmão. O que é passado é passado. Percebi ontem que cheguei bem perto de cometer a maior besteira da minha vida! Eu ia acabar com a minha história. Ia morrer que nem minha mãe, de um jeito ridículo. Viver não é deprimente. Viver é compensador, é questão de sorte. Tenho que lembrar que fui um entre milhões de gametas e que isso é um privilégio. Agora entendi o sorriso do meu irmão. Essa é minha segunda chance. Não haverá uma próxima tentativa de suicídio, mas se houvesse estaria mais lúcida e não iria ingerir Tic-Tacs novamente.

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