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cronicas-->Martinésia -- 23/02/2002 - 02:05 (Vitor Hugo de Oliveira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Dia desses à tarde estive em Martinésia. Foi uma destas saídas esperadas (porque há muito planejava uma visita com "papos e fotos"), e inesperada (porque ocorreu numa tarde de segunda-feira "braba", depois de um pagode no domingo chuvoso, super estafante). Acabamos de acertar as contas com a galera do samba, peguei a Cris e o Lucas, uma máquina fotográfica com 36 poses, uma rápida passada numa loja de conveniência, batatas, Skiny, coca-cola, água e lá vamos nós. A estrada é bonita, cheira mato e prenuncia a terapia "anti-stress" que vem pela frente. Logo na entrada do povoado, percebe-se a simplicidade do local e de sua população. Martinésia é um dos municípios de Uberlàndia, distante 25 km. Deve ter uns 9 quarteirões ao todo, que dão a nítida impressão de estarem dispostos como se fossem um jogo da velha (#), e fica encravada entre fazendas que se constituem na principal (única) fonte de trabalho dos cerca de 1000 habitantes. Avistei uma "vendinha" (fechada, diga-se de passagem). Toda colorida, com uma mesinha de sinuca na porta. Que bonitinha! Desci do carro e clict! Clict! Clict! Ouvi, um pigarreado à minha esquerda. Percebi um caboclo deitado sobre uma rede estendida no chão de terra batido do passeio de sua casa. Parecia também querer ser fotografado. Ocorreu-me que o povo simples gosta de ser fotografado. Alguém já me disse isso, não me lembro quem... Entretanto, como o meu contato era por demais primário, resolvi não arriscar a sorte. Entrei no carro e pedi que a Cris tocasse em frente. Uns 50, 60 metros em seguida e aí sim, lá estava um dos meus principais atrativos: um casebre verdadeiramente histórico, na esquina, datado de 1920, com 2 janelas frontais retangulares, duas laterais, assim como a porta da frente de mesmo formato. Uma cozinha encravada entre árvores na parte dos fundos e à primeira vista com muita história pra ser contada. O estado de conservação era péssimo. O telhado despencado, apodrecido, as paredes trincadas, caindo aos pedaços, o madeiramento das portas e janelas se decompondo... Dois homens me observavam sentados tranquilos e curiosos na porta de um botequim em frente, um dos poucos que não tinham uma mesa de sinuca naquela vila. Puxei conversa com os nativos. Disse que era de um jornal e que tirava fotos daquela casa porque tinha achado ela muito interessante. Fiquei sabendo o nome de um dos matutos: Paulo Henrique. Mais interessado e falante que o outro (que não descobri o nome), me informou logo de cara que o casebre era de um tal "Capitãozinho".
- É antiga sim "sinhó" e é do jagunço Capitãozinho que mandava "matá" todo mundo que "travessa" o caminho dele. O nome dele era "Merenciano Càndido da Silva".
Julguei que o nome correto deveria ser "Emerenciano".
- Mas é muito antiga esta casa, né?
- É de 1920. "Óia" lá do lado. Apontava para a fachada lateral superior da residência, perto da eira ou da beira, sei lá. E continuou:
- O ano tá gravado no cimento.
Eu conversava com Paulo Henrique e clicava. Estava no meio da rua, posicionado para uma foto que pegava a frente e a lateral daquela relíquia, quando perguntei em voz alta:
- Ele era jangunço mesmo, moço?
O homem pigarreou, olhou meio desconcertado pra dentro do bar e eu, percebendo que havia falado muito alto, me aproximei dele fingindo naturalidade.
- É... Jagunço, jagunço ele "num" era. Ele só tinha quem fazia o "serviço" pra ele, quando precisava. Ele era ruim "messss".
- Puxa! Uma beleza destas devia ser tombada pelo património histórico, né Sr. Paulo? Fazia referência à casa, mudando de assunto para não afugentar meu informante com a famosa "curiosidade de forasteiro".
- É. Já vai "sê".
- Vai? Tem certeza?
- Tenho. Os "político" já "teve" aí "oianu" ela.
Apesar da naturalidade sertaneja daquele homem, parecia que ele estava certo do que falava. Ficou meio sem graça quando lhe perguntei se trabalhava. Desconcertado, me disse que não, só tomava conta da mãe adoentada. Preparei-me pra buscar outras paisagens, naquele imenso paraíso (quase) natural. Meu "informante" se inquietou e eu notei. Pedi pra tirar uma foto dele. Todo sem graça, ele se posicionou no tóco em que estava sentado: cliquei. Menti novamente ao dizer que a foto sairia no jornal e ele ficou todo emocionado. Sentiu-se importante, deu pra ver. Encaminhei-me para o carro, ele veio atrás. Conversava compulsivamente:
- Vai com Deus, que Jesus te "abençoa", volte quando "quisé", eu "tó" sempre por aqui, moro só com minha mãe aqui na rua debaixo, vai lá em casa, vai com Deus, que Jesus te "abençoa"...
Até que meu coração doeu e eu inventei um outro anglo do casebre do "Capitãozinho", para tirar uma foto. O sertanejo exultou de alegria:
- O "sinhó" gosta de Festa de Reis?
- Adoro, respondi. Ouvi dizer que as Festas de Reis aqui de Martinésia são fabulosas, né?
- Pois "vó" "fazê" uma agora em agosto, o "sinhó" tem telefone?
Confesso que nunca havia ouvido falar em Festa de Reis no mês de agosto. Pra mim, a comemoração somente acontecia no dia 6 de janeiro. "Êta" saudade que me deu do senhor António Pereira, "só"! Mas a convicção e naturalidade do mateiro foram suficientes pra me convencer. Anotei meu telefone residencial e o celular num pedaço de papel entregando-o ao meu novo amigo. Ele, visivelmente mais calmo me acompanhou até o carro, se despediu (apenas duas vezes), me convidando para quando voltar ir à sua casa, na Rua (debaixo), n.11, prometendo me ligar quando da Festa de Reis (de agosto).
Um pouco mais à frente, a Cris achou o Correio, amarelo e azulzinho, feito uma casinha de bonecas, "uma gracinha". É certamente dali que a população de Martinésia faz contato com o resto do mundo.
- Vamos fotografá-lo?
Logo de frente ao Correio havia um outro sertanejo curioso a olhar. Era Sr. António que, sentado na soleira de sua casinha simples, parecia saudoso da esposa que partira "desta pra melhor" fazia 3 anos. Foi logo contando a desilusão vivida ao me ver com a máquina fotográfica, argumentando que uma fotografia tirada no ginásio de esportes em dia de jogo, era a única lembrança que "de tudo, de tudo" restara da falecida companheira. Em seguida reuniram-se a nós o Sr. Jairo que é o dono do cómodo do Correio, da casa ao lado e do imóvel que abriga um barzinho na esquina logo em frente à casa do Sr. António, e outros dois matutos cujos nomes não ousei perguntar. Todos eles exprimiam grande interesse pela conversa que começava a se desenrolar. Tudo girando em torno da violência que se estabelecia em Uberlàndia e a grande tranquilidade daquele aconchegante "povoadozinho". Martinésia é, na verdade, pura poesia para o verdadeiro sertanejo. Todos se cumprimentam e sorriem. Sentam nas portas ao entardecer coçando as frieiras dos pés calejados e sentindo o cheiro forte da terra molhada, o perfume da chuva no verde fértil das fazendas que circundam aquela pequena ilha de tranquilidade muito próxima a Uberlàndia. Os peões tiram o chapéu pra cumprimentar uma mulher e principalmente ao passar na porta da igreja. As carroças e cavalos são o principal meio de transporte. De vez em quando podemos ver uma bicicleta e caminhões de leite. A missa do domingo é muito concorrida. A Festa de Reis é uma das mais tradicionais do Brasil. As crianças correm pelas ruas livremente só de camiseta muito suja, sem calça, com aquele pipiu parecendo bico de chaleira e o catarro correndo nariz abaixo. Êta Triàngulo. Aqui "deve de tá" enterrado um "pedacim bão" do seu coração!
Sr. Jairo tem um netinho com meu nome: Vitor Hugo. Menino esperto! A esposa do Sr. Jairo logo tratou de se aproximar da Cris e puxar também uma boa prosa. Em seguida saíram as duas, como se fossem velhas amigas pra buscar queijo. Foram atrás do "saborzinho" daquela tarde de segunda-feira, inesperadamente gostosa e brejeira. Senhor Jairo contou que já trabalhou em São Bernardo do Campo, mas que não se acostumou. Os outros dois mateiros (que eu não sabia os nomes), se enturmaram na conversa. Um deles era o típico capiau: moreno queimado do sol, com falhas de dentes na frente, mãos calejadas, mas com o brilho no olhar daqueles que não perderam a esperança e que encontram alegria naquele viver tão simples. Pedi permissão ao Sr. António para fotografar sua casinha (era só uma desculpa para registrar a imagem dos meus novos amigos), e assim o fiz. Clict! Clict! Clict! Um gorduchinho, careca, com ar tímido, se inquietou e disse que iria sair porque tinha vergonha de fotos. Atravessou a rua, sentou junto ao dono do boteco da esquina que desfilava curioso de um lado para o outro tentando adivinhar qual era o assunto dos nativos com os "forasteiros". Ali eles também ficaram a prosear. Os outros, aqui estavam, aqui permaneceram. Acho mesmo que gostam de ser fotografados. Mas quem foi que me disse isso, meu Deus?
No decorrer da nossa conversa notei que tudo o que se referia a fatos inusitados e desconhecidos daquela gente, causavam-lhes risos e até gargalhadas. Já que o assunto girava em torno de cidade grande, cidade pequena, prós e contras, resolvi contar-lhes da oportunidade em que me vi dentro do Banco do Brasil e sendo assaltado por uma quadrilha de alta periculosidade. Acertei em cheio! Os olhos se esbugalharam, adquiriram um brilho incomum e todos eles se concentraram em mim. Quando cheguei no ponto em que o assaltante colocava a arma em minha cabeça, todos sorriram e o matuto sem dentes gargalhou. Era uma risada honesta, franca, de quem está feliz por viver tão longe de todo aquele perigo. Vi credibilidade, inocência e alegria naqueles homens. Eles sabiam que tudo aquilo existia, mas talvez fosse raro encontrar alguém que havia sentido na pele tamanho perigo. Ou pelo menos incomum o contato tão próximo com um personagem real daquelas histórias. Senti que muitos "causos" poderiam ser contados a partir daquele dia. Da minha parte, falsos ou verdadeiros. Da parte deles somente histórias de vida que diante de tanta simplicidade e inocência não podem se submeter a juízo de veracidade. Seria um pecado, um desperdício com a nossa cultura! A Cris voltou com os queijos. Apresentou-me o "Vitor Hugo deles" e eu iniciei as minhas despedidas. Mais uma vez senti aquele aperto no coração ao observar o pedido implícito no olhar dos populachos, para que não fosse, ou, no mínimo, para que voltasse. Entendi a mensagem. Prometi que voltaria lá, para que pudéssemos "estender aquela prosa". Para que pudéssemos continuar aquela troca de experiências.
- O "sinhó" vai mais volta, né?
- Volto sim Sr. António, talvez na próxima segunda-feira. Fique com Deus.
- "Fi´cum" Deus também e que Jesus te abençoa.
- Amém. Fique com Deus, Sr. Jairo.
- "Cum Deus fio, e vê se vorta".
Parece que não trocaram palavra até que o carro virou a esquina. Eu sabia do pesar que eles sentiam, pois sentia a mesma coisa. A Cris quebrou o silêncio me pedindo que fotografasse um "casebrinho" muito parecido com a casa de sua avó lá em Abaeté dos Mendes. Foi bom porque eu me distraí. Fotografei ainda a igreja (que também está precisando de uma boa reforma), o coreto e o cemitério. Ah! O cemitério de Martinésia é uma graça! Parece um brinquedinho dos anjos! Deve ter uns cem metros por cem, é bem quadradinho, com um murinho de aproximadamente um metro e meio. A contemplação daquela "belezura" só é quebrada quando atentamos para as sepulturas que estão no seu interior. Mas que o conjunto é bonitinho, ah isso é. Clict! Clict! Paramos para fotografar mais um casarão que parecia antigo e interessante. A fachada deste enunciava "A AMERICANA FILIAL DA CASA PÓVOA". Mais uma vez bateu aquela "saudade imensa" do senhor António Pereira da Silva*. Só ele pra nos contar qual o significado desta casa de comércio no passado daquele "povoadozinho" tão voltado para a agricultura. Ninguém à vista, somente fotografamos: moleques a correr atrás de uma bola e cachorros preguiçosos (também pudera, eram 17:30 de uma tarde de segunda-feira). Uma última passada na fábrica de foices, onde meu pai comprou algumas peças quando do romantismo e entusiasmo inicial da aquisição da chácara Sonho verde. A fornalha da fábrica estava linda contrastando com o cair da tarde e com o céu escuro ameaçando chuva. Clict! Clict!
- Estas não sei se ficarão boas porque a fábrica era muito escura e eu me esqueci de acionar o Flash!
Entrei no carro. A Cris dirigia e nós ficamos em silêncio. Precisávamos dele pra melhor saborear aqueles momentos que acabáramos de viver. A estrada é linda! A chuva se mostrava do lado direito e do lado esquerdo do horizonte em faixas escuras que uniam o céu e o verde do cerrado. Martinésia ficara para trás. Agora era o aroma do mato. Da chuva. Da terra. Oh! Tarde abençoada do meu Triàngulo Mineiro! Paulo Henrique, Senhor António, senhor Jairo (doou o cómodo do Correio), sua esposa, o matuto banguela, o fujão da máquina fotográfica, o dono do bar em frente e o Vitor Hugo, meu xará "capiauzinho". Sertanejos que nos orgulham e nos enchem o peito com um sentimento verdadeiro de "mineiridade". Esta é a Minas poética, brejeira e sertaneja que o meu amigo Luís de Lá, Saulo e o Paulinho Pedra Azul cantam. Martinésia é a Minas que o mineiro do pé rachado vê mais não enxerga. Não sabe que existe. A chuva nos alcançou na entrada de Uberlàndia, mas já estávamos de alma lavada. Até segunda que vem matutada! "Se Deus quisé". "C`um Deus todo mundo e que Jesus abençoa!" Amém.

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