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Cronicas-->A história do suburbano que esnobou Plácido Domingo -- 23/02/2002 - 18:30 (Odir Ramos da Costa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A história do suburbano que esnobou Plácido Domingo





Reinventar o mundo através da arrumação das palavras, colocando-as de forma que a realidade se torne mais agradável, faz parte do ofício dos contadores de história. Entenda-se como tal toda espécie de gente que usa a palavra como ferramenta para suas reinvenções: pescadores e caçadores em dias de folga, políticos em véspera de eleição, escritores de folhetins e novelas, redatores de bula de remédio para emagrecer e para impotência, cronistas de jornal, enfim, qualquer reinventor de realidade, ofício cada vez mais necessário para se suportar a amarga pílula da vida.

A justificativa acima é para pedir licença e lhes contar a incrível história do campo-grandense que esnobou Plácido Domingo. Além de esnobar, recusou-se terminantemente a trabalhar com o tenor espanhol. Fez mais. Com a recusa em contracenar com o famoso cantor, quase afunda a temporada da ópera Aída, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

A história aconteceu, garanto, embora aqui e ali possa ter acrescentado uma reinvençãozinha.

O notável campo-grandense que desdenhou o grande cantor, merecendo figurar no rol das celebridades operísticas, para honrar o gentílico, nasceu no terreno ao lado da quadra da escola de samba Império de Campo Grande. A escola de samba do Lorda, os mais velhos do lugar se recordam. Portanto, ninguém mais campo-grandense que ele.

Nasceu por ali e ia tocando a sossegada vidinha suburbana, até o dia em que a Tatiana Memória, diretora de produção do Teatro Municipal, atarantada com a produção da ópera Aída, ligou para o Teatro Artur Azevedo:
- Tenho problemas sérios na produção da ópera. Para a
Marcha Triunfal, o encenador fez uma exigência que só vocês aí do subúrbio poderão resolver.

A diretora da Central Técnica de Inhaúma passou a justificar a aflição. Na conhecida cena do segundo ato da ópera de Verdi, o jovem guerreiro Radamés, interpretado pelo Plácido Domingo, deveria retornar vitorioso da batalha da Etiópia em cima do lombo de um jumento. Era cena grandiosa, de exército voltando de batalha, e que envolvia cavalos, carros de guerra, centenas de figurantes, orquestra, coro, além dos solistas internacionais contratados a peso de ouro.

- O retorno de Radamés ao Egito representa, para o mundo da ópera, um momento tão formidável quanto, para os cristãos, a entrada do Nazareno, em Jerusalém, no Domingos de Ramos - exagerou Tatiana Memória para salientar o que iria pedir: - Me arranjem um jumentinho de presépio, pois queremos que o público estabeleça a co-relação entre os dois fatos. Mas, vejam lá, arrumem um jumento dócil, mas forte o suficiente para suportar os cem quilos do Plácido Domingo.

Com a pretensão de conhecer um pouco o modo de pensar dos muares, ainda tentei argumentar que, por ser uma incongruência histórica, talvez o jumento não concordasse em plagiar o episódio que um seu aparentado só iria viver muitos séculos depois.

- Ópera é teatro, não tem nada a ver com história - cortou Tatiana Memória.

- Melhor entregar a responsabilidade a um cavalo, bicho treinado para obedecer e sem compromisso com verdades históricas.
A diretora de produção bateu pé:
- O diretor da ópera exige um jumento. Se virem.

O campograndense em questão, vocês já perceberam, pastava ao lado da quadra da escola e, de música, só ouvira sambas-enredo comandados pelo mestre Felipão.

Iniciadas as negociações, o dono do bicho logo impós sua condição para participação do novo artista lírico: que o contrato valesse para os dois, jumento e tratador, com cachê para ambos, além de almoço em quentinha para um, milho e alfafa, para o outro. Negócio fechado, providenciou-se transporte, e um canto da coxia do teatro transformou-se em cocheira.

Tudo transcorria perfeitamente normal, se é que se pode considerar normal a instalação de uma cocheira em plena Avenida Rio Branco. Mas, em teatro cabem essas recriações, vocês sabem.

Os ensaios preliminares ocuparam uma semana, sem que o jumento fosse apresentado ao tenor. O ensaio da Marcha Triunfal, pela sua complexidade, fora deixado para a véspera da estréia. Enquanto isso, o bicho ia pastando e ouvindo a cantoria vinda lá do palco.

- Estamos aclimatando o jumento à boa música, levando um pouco de cultura européia para ele - dizia Tatiana Memória.

No dia do ensaio geral, véspera da abertura da temporada, instante em que o nervosismo toma conta de todos, mandaram aprontar o jumento para a estréia no mundo operístico. Vestiram-no com reluzentes arreios, ao tratador destinaram papel de prisioneiro de guerra etíope, deixaram os dois prontos para o grande momento.

Tudo ia muito bem, os trompetistas preparavam-se para anunciar a aproximação do exército vencedor, quando deram ordem ao jumento para subir no elevador de serviço, de acesso ao palco. Não deu outra. Coerente com a verdade histórica, o jumento empacou, não havia jeito de convencê-lo a entrar no elevador de carga.

Os trompetes lá do palco atacaram a famosa introdução, anunciando o exército: fom-fom-foooom, fom-fom-fom-fom-fooooom. Cadê o jumento, cadê o Plácido Domingo?

O maestro suspendeu a música, interrompeu-se o ensaio. Orquestra, coro, solistas, comparsaria, maquinistas, um mundo de gente parou, desconsolada com a teimosia do jerico.

Tatiana Memória cobrou do tratador, que se explicou com a humildade de escravo etíope:

- O bicho estranhou a música. Não dá pra trocar por um sambinha da Império?

Rescindiu-se o contrato, jerico e tratador foram dispensados. Para remediar o ensaio, Radamés desfilou sua glória a pé, em nada parecido com o Nazareno de Jerusalém, igual a qualquer pedestre. Tudo por causa de um jumento campograndense.

Para a récita do dia seguinte, providenciou-se uma parelha de cavalos brancos do regimento de cavalaria da Polícia Militar. A Aída estreiou com grande sucesso. Como cavalo da PM é fogoso demais para carregar artista lírico, Radamés retornou da guerra caminhando com as rédeas dos bichos na mão.

O desempenho dos cavalos de Campo Grande foi satisfatório: seja por contribuição ao realismo da cena, por emoção, ou mesmo solidariedade ao jerico desempregado, ambos desfilaram muito garbosos, e enchendo o palco de bosta.

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