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Artigos-->Imagens mais pesadas do que o chumbo -- 16/11/2001 - 21:28 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Esta é a última crônica de uma longa série escrita por Ulrich Ladurner. Do Paquistão para o DIE ZEIT online, de Hamburgo. Leia, neste site, "DEUS NEON (ou: como depois de uma revolução", "A guerrilha dos dólares", "O amor em tempos de guerra", "Islamabad-Blues" e "Há esquinas das quais a gente não se esquece".



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Imagens mais pesadas do que o chumbo



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Por Ulrich Ladurner

Trad.: zé pedro antunes



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Não fui até Lahore. Quando todo mundo me dizia: "Querendo conhecer o autêntico Paquistão, vá a Lahore. Tem de ir até Lahore." Havia a insistência dos paquistaneses e a sugestão de colegas amigos: A Lahore! A Lahore!

Mas eu não fui a Lahore. Agora, ao final desta minha viagem de dois meses, eis-me aqui sentado e a me perguntar: por quê?



É claro que tentei. Só Deus sabe o quanto eu tentei. Um dia, estando na rodoviária de Islamabad, cheguei a reservar uma passagem.



"Para quando?", perguntou-me o homem por trás do guichê.

"Amanhã."

"A que horas?"

"Quais os horários de partida?"

"Tem um ônibus a cada quarenta minutos. O primeiro sai de Islamabad às cinco."



O empregado tinha à sua frente uma caderno grande. Na mão, uma esferográfica. E só espera pelo momento de incluir o meu nome. Meu nome num daqueles espaços, o número do assento, o horário de partida. Pronto.



Como quem me examinasse, ele me observava por sobre a armação dos óculos. Atrás de mim, duas pessoas. E um terceiro freguês acabava de entrar pela porta. Esperavam até que eu me decidisse. Eu hesitava.



"Quando o senhor disse que saem os ônibus?"

"A cada quarenta minutos."

"E ainda tem lugar?"

"Em todos eles ainda vai encontrar lugar."



O empregado batucava com a esferográfica em cima do caderno. Agora, depois de ajeitar os óculos, parecia mais rígido. E eu sentia que os homens atrás de mim se punham impacientes.



"Tenho de pensar. Queira desculpar-me", eu disse.

Aí perguntei: "Posso me sentar por aqui?" E ele, deixando cair a esferográfica: "É claro, por favor." E já acenava para o novo freguês se aproximasse.



Saí de lado e me deixei cair numa poltrona de napa. A poltrona rangeu e estalou. Fiquei estatelado. Uma indecisão paralisante me havia acometido, coisa que eu não conseguia explicar a mim mesmo. Eu me sentia ao mesmo tempo esgotado e nervoso.



À minha direita, estava sentado um homem de idade. Depositara no chão uma pequena caixa de papelão mal-amarrada. Uma galinha espiava por uma abertura. Ela forçava o buraco com a cabeça. Fosse possível ler as fisionomias das galinhas, diria que aquela parecia desesperada.



"Lahore?", eu perguntei e fiz um sinal com a mão.

"Lahore", foi a resposta, com o "R" se arrastando num lugar qualquer da garganta do velho.



Na minha imaginação, eu me vi a caminho de Lahore ao lado de uma galinha. Eu ficaria olhando para ela e ela ficaria olhando para mim. Por quatro horas e meia, o ônibus deslizaria calmamente pela auto-estrada.



"Nice city, Lahore", disse o homem.

"I know", eu respondi.

Aí me levantei e fiz a minha reserva: para as 6:45 da manhã.



No dia seguinte, acordei um pouco cedo demais. Caminhei até o balcão. A luz matinal ia se espalhando pela cidade. Lixeiros atravessavam a rua. Usavam uniformes amarelos e aparentavam ser pesados extraterrenos. Os primeiro carros do dia espalhavam seus ruídos pela rua.



Eu não conseguia me concentrar no que via à minha frente, não conseguia me alegrar à visão de um dia raiava. As notícias da véspera não me deixavam. Não tinham sido boas. Muita gente morta pelos bombardeios no Afeganistão, fugitivos se apinhando junto à fronteira, o governo do Paquistão tendo colocado o exército de prontidão, porque atiradores indianos haviam tomado a fronteira da Caxemira. O inverno que se aproximava no Afeganistão, a fome e a morte, eram esses os assuntos. Tudo isso se represava em minha cabeça e fluía como chumbo para as minhas veias.



Voltei para a cama e deixei o tempo correr. Tendo olhado para o relógio, vi que os ponteiros caminhavam adiante, indiferentes às minhas dúvidas e às minhas hesitações. Entreguei-me ao irresistível tique-taque do relógio. O ônibus partiu sem a minha presença.



Passei o dia envolvido com as atividades prescritas pela minha profissão. Tentava desemaranhar a selva de notícias e boatos, procurava pelo que realmente acontecera, precisava compreender o que se podia esperar e como as coisas seriam dali por diante. Eu caminhava ao ritmo da guerra. Era rotina.



À noite, eu e um amigo nos encontramos num bom restaurante para jantar. Ele parecia bem disposto, quase feliz. Tinha passado o fim de semana em Lahore. A noite inteira ele me contou sobre o Forte Vermelho, os mercados, os museus, o hotel maravilhoso onde se hospedara. Tudo isso eu já sabia. Mal aterrissado no Paquistão, li no meu guia de viagem as páginas sobre Lahore. Em espírito, eu já havia caminhado pela cidade.

"Tem de ir a Lahore. É realmente uma outra coisa. Vai ver o autêntico Paquistão."



Enquanto ele tomava um gole de vinho, pude olhar dentro de seus olhos: eram bem azuis. Senti inveja. A raiva foi subindo dentro de mim. Por que não tomei aquele ônibus?! Teria sido bem simples, embarcar, partir, chegar.



"Hei de ir. No próximo final de semana eu embarco", eu prometi. Ele ergueu o copo e nós brindamos: "A Lahore!" "A Lahore!" "Ao verdadeiro Paquistão!" "Ao verdadeiro Paquistão!"



Quebrei a minha promessa. Naquele final de semana eu não viajei para Lahore, e nem no seguinte, e nem no próximo. Mas bem que tentei, todos os dias. Preparei para mim mesmo um cronograma, escrevi uma lista de pessoas que valia a pena encontrar em Lahore. Tentava achar um bom motivo para a viagem, um motivo profissional. Mas todas as vezes que eu me preparava para partir, aquela conhecida paralisia me acometia.



Várias vezes me vi diante da mala de viagem. Eu a havia abastecido com o necessário para dois dias. Mas eis que tornavam a girar em círculos as imagens do dia: os mortos, os famintos, os que passam frio, as bombas, os vencedores e os vencidos, os mentirosos e os propagandistas, os carrascos, os assassinos e os delinqüentes de gabinete, os voyeuristas e os mórbidos – toda essa miséria e sujeira se juntou numa ciranda infernal, dançando e girando na minha cabeça.

A guerra ocupara em mim um lugar, qual uma deusa gorda e faminta. A guerra exigia tudo ou nada. Ela me queria aqui ou bem longe, num continente longínquo. Ou dela eu me distanciava, fugindo para um lugar distante, ou a ela teria de me entregar – incondicionalmente.



Eis-me agora no aeroporto de Islamabad. Sei que este não é um belo final, que estas linhas não trazem nenhum consolo, demasiado sangrentas para compor um fecho.



Ao ver a minha mala sendo levada pela esteira, fico pensando: Eu nunca estive em Lahore. Eu nunca estive no Paquistão.



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