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Artigos-->RESTOS DA INTERIORIDADE (Juliana de Oliveira Rodrigues) -- 28/07/2007 - 13:30 (Heleida Nobrega Metello) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Tomemos esta única foto.













RESTOS DA INTERIORIDADE



(porJuliana de Oliveira Rodrigues)





Não há nada impressionante. Mas é justamente isso que me conduz ao chamado repertório cultural do espectador para construção do significado da imagem.



Numa tentativa particular, parcial e limitada, a única foto se torna uma anunciação da miséria brasileira.



Meu olhar encontra uma criança perdida em meio ao entulho. Sou levada a crer na realidade que evoca tal imagem. A foto aponta um indício e desencadeia um cruzamento de outros olhares possíveis e polêmicos.



Assim, proponho interpretar a foto da criança, como um olhar acidental (ou certeiro!), um entulho bem arrumado, quase “comum” ou “banal” não fossem os meus “restos de interioridade” (Flusser: 1983, 116) ao cavocar algo na imagem.



Seja qual for a imagem, qualquer foto requer tempo e cuidado para ser vista, senão persiste o perigo de um número cada vez maior de imagens (e cenas) serem tomadas como banais.





MORADOR DE RUA OU O REGISTRO INVISÍVEL





Ao olhar pela primeira vez a foto, extraída do livro Casa de Clarêncio Neotti, não faço outra coisa senão reconhecê-la muito rapidamente no tempo de um virar de página: uma rua de comércio, em que se encontra uma massa de entulhos e uma certa confusão visual.



Dias depois revi a foto. Parei. Vi uma criança só em meio ao entulho e nesse momento ela era o próprio entulho, era parte da massa que me “enganou” à primeira vista. O branco e preto se encarregaram da mistura perfeita. Meu olhar foi capturado pela árvore mais iluminada, quase no centro, que constrói um caminho até cair nos cabelos brancos da criança.



Foi uma descoberta para mim. Terá sido para o fotógrafo?



É curioso pois em se tratando de um livro que fala da casa como se falasse de modos de vida, não esperava ver ali a ausência da própria casa, lugar físico, referência de teto que encobre as cabeças.



A casa que essa foto aponta é a rua como repouso diário, privado, que ao mesmo tempo é o espaço público para outros. É a casa da passagem, é a própria confusão da paisagem.



Esta imagem talvez pudesse não existir enquanto fato se não houvesse o destaque dado pela foto. O mesmo se aplica à criança e, nesse sentido, é uma “privilegiada” dado o recorte fotográfico. A sua existência não passa de um mero indicativo do que pode ser visto num espaço urbano.



Mas quantas pessoas por ali passaram e sequer notaram o entulho?



Fotografar gente oculta, gente invisível, pessoas que nem foram estimadas no último censo.



Gente oculta porque se confunde com a paisagem urbana?



São diversos os motivos que levam um fotógrafo a ferir e mutilar a continuidade do tempo para colocar em foco o seu assunto, e para apresentá-lo faz uso de composições, linhas, luzes, químicos, papéis, de uma câmera fotográfica enfim.



Este é seu instrumento que, tamanha a importância, chega a inverter a relação de operação, passando de instrumento a autor, desvirtuando a complexidade das relações de produção da foto e de seus desdobramentos, na veiculação e na recepção da imagem fotográfica.



Se a fotografia é produto de idéias prévias, se existe um próposito por trás da imagem, ela somente pode significar em comunhão com seu suporte material.



Aliás, a fotografia somente se dá por meios dessas condições materiais absolutamente contaminadas de intenção.



Técnica e tendência (Benjamin, 1993) não são revestimentos um do outro, quer pelo discurso da forma quer pelo discurso do conteúdo, ao contrário, constituem ambas uma conformação visual única, porém de múltiplos significados.



Portanto, a síntese do processo, ou seja, a foto, não é uma obra segmentada e sim fusão partilhada.



O fotógrafo tem o acontecimento em suas mãos e, seja qual for a intenção ou a dimensão de seu gesto, sua foto é a expressão não da realidade mas de uma dada realidade.



Ainda assim, persiste a atestação da existência das coisas do mundo que foram tornadas imagens; a criança retratada na foto de fato existiu ou existe, ainda que, eventualmente, sua existência não seja de tamanha importância histórica para a constatação do fato.



Aí está a denúncia da foto: o simples fato de não ser importante.



Eis o fator crucial para rediscutir a problemática que toda fotografia traz a fim de recuperar a importância singular de cada imagem.



Não há fotografia que não seja documento, que não revele questões inerentes a uma época, a um acontecimento de um tempo e lugar, mesmo que subjetiva.



Dessa forma, sem atribuir o tratamento singular e diferenciado que cada foto requer, torna-se cada vez mais justificada a imposição de fotografias banais de cenas ditas banais.



A forma como o fotógrafo se insere nas relações de produção fotográfica revela qual a dimensão (significado) de sua imagem-atividade, se está na foto ou no ato de fotografar.



O “querer dizer” por meio de uma imagem caminha ao lado da problemática da informação produzida ao longo do processo fotográfico.



Dessa forma, o posicionamento crítico do fotógrafo na sociedade requer muitas vezes a transformação das relações de produção da fotografia, da relação com outros fotógrafos, dos meios de veiculação e de utilização da imagem fotográfica.



Nesse emaranhado de funcionamento, então, a foto da criança em meio ao entulho adquire níveis de importância no reino da informação.



Poderíamos falar de uma mensagem suspensa, aquela deixada pelo fotógrafo na esperança de que alguém venha capturá-la. Porém de tão efêmera e frágil quase não resiste à força do tempo que muitas vezes se mostra traidor deste habilidoso caçador de instantes.



Ação e consciência e vice-versa numa nota só, longe de um grito panfletário. O fato é que julgamos superada e antiquada a idéia de reivindicação de direitos humanos, de postura crítica, que ainda teimam em reclamar um lugar nada confortável nesse universo homogeneizante construído pelo sistema “cultural” burguês.



Afinal, quem já não assimilou a palavra alienação? O resto é ironicamente uma elite pensante (da contramão).



Fotografar os marginalizados, abraçar uma causa, não faz do fotógrafo um aliado, não se pode criar falsas ilusões a respeito disso e contentar-se com a foto.



Sua atividade é um início e faz parte do processo que se expande e toma corpo, e atinge outras esferas da atuação pública, o que implica em deter e transformar os meios pelos quais atuar.



Analisar a foto da criança, em certa medida, pode gerar alguma discussão, mas (apenas) isso faz da foto mais um artigo de consumo, que, no máximo, tem teor apelativo e desperta sentimentos caridosos, dotados de algum assistencialismo passageiro.



A foto, para seu autor, se completa na interessante descoberta da criança curiosamente perdida em meio ao entulho?



Se dissermos que sim creio estarmos entrando numa outra dimensão da fotografia, a da imagem autônoma, que se “comunica” diretamente com o público, numa imposição clara do sonhado conteúdo explícito, da mera manisfestação do óbvio.



Salve a única foto da criança em meio ao entulho.





Bibliografia:



BARTHES, Rolands. A câmara clara .Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

BENJAMIM, Walter. O autor como produtor e pequena história da fotografia. In : ________. Magia, técnica, arte e política. 5.ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993.

CANCLINI, Néstor García. Fotografia e ideologia: seus pontos comuns.

FLUSSER, Vilém. Nosso divertimento e nossas imagens In:________. Pós-história: vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1983.

_____________. O instrumento do fotógrafo ou o fotógrafo do instrumento? Revista IRIS, agosto de 1982.

NEOTTI, Clarencio. A casa: um olhar fotográfico sobre a moradia. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1994.

PERES, Andréia. Gente invisível. Revista Única, janeiro de 2001.



FONTE: http://www.studium.iar.unicamp.br/10/3.html



postado por Heleida, 2007
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