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Contos-->RETRUQUE À CONTRA PROVA - 1 -- 01/06/2002 - 13:29 (José Roberto Pereira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
À medida que o sêmen jorrou de mim, e a cada jorro aumentava a vontade de que o ato fosse repetido mais vezes, uma certa... sofisticação aconteceu.

Não se pode envelhecer sem adquirir alguns penduricalhos no ego.

De junto de minha depressão, nasceu um bichinho diferente. Uma coisa com centenas de patas, redonda, mais ou menos do tamanho de uma unha do dedão do pé. Preto. Coberto de olhos, pequenos pelos no meio dos olhos e uma boca que estava fechada. Quando entrei nos 18 anos, a boca do bichinho se abriu e vi uma fileira irregular e torta de dentes afiados como faca recém amolada... mas de cor amarela, como se ele fumasse a mais de 80 anos. E cheirava a cinzeiro sujo.

Era o cinismo.

No começo eu achava que o cinismo fosse uma coisa feia. Falta de educação, dizia minha mãe, ficar olhando para as pessoas como se elas fossem mentirosas. Falta de respeito duvidar, falta de respeito dar risada amarela, falta de respeito sair e deixar as pessoas falando sozinhas.

Só que o cinismo cresceu à medida que eu fui perdendo espinhas e ganhando barba e pelo no peito. O cinismo saiu de meu coração e foi morar em meu pescoço, tomando minha cabeça, guiando meus olhos.

Não achei nada demais quando ele começou a falar comigo.

"Olha aquilo." dizia ele, querendo me chamar a atenção para uma puta. Uma senhora puta, para dizer a verdade. Loirona, bunduda, peituda, encolhida de frio na avenida da Liberdade, do lado do Fórum. "Parece uma galinha que fugiu do galinheiro."

- Ela é uma galinha.

"Esperto você, heim? Mas olha lá. Será que ela dá porque gosta?"

- Acho que ela faz isso porque tem fome.

"Que fome o caralho! Ela poderia mendigar. Poderia ir para a casa da mãe dela e comer um prato de pão com mortadela (como você acabou de fazer, né, putinho?), poderia ir na igreja e pedir ajuda. Mas tá lá, dando."

- Nunca pensei nisso... Que puta dá porque gosta.

"Você pensa em tantas coisas..."

Quando fiz 18 anos, passei num concurso da prefeitura e virei escriturário. Fui designado para trabalhar na Secretaria da Habitação, no prédio Martinelli, ali na São João. Me deram uma mesa, carimbos, fichas, uma janela as minhas costas com vista para o prédio do Banespa, carpete fino e quase 100 metros quadrados de espaço vazio. Era uma espécie de castigo, porque eu era um punk.

Eu não era punk de verdade, só me vestia de preto, tinha cortado meu cabelo careca e usava coturno. Ainda tinham as cicatrizes em minha cara por causa da surra que tomei há alguns anos... Mas eu não era punk, nem de rock eu gostava. Eu gostava de ouvir rádio AM debaixo do travesseiro, gostava de futebol mas não torcia para time nenhum, gostava de ouvir ondas-curtas... Mas disseram que eu era punk, pronto. Eu era. Ninguém queria ficar com um punk e me deram o trabalho mais maçante, no canto mais isolado do andar.

Os meus dias escorriam que nem mel estragado. Eu subia pelo elevador mais estourado, andava pelo corredor sem conhecer ninguém, ia para minha sala, fazia meu café, ligava meu rádio portátil vermelho Aiwa e ficava ouvindo rádio de outros países, enquanto carimbava páginas de processos de oficialização e denominação de logradouros públicos. As fichas eu usava para conferir se as ruas estavam catalogadas no banco de dados. Se não estivesse, eu ia até o armário do fundo do andar e pegava mais fichas, até que o nome aparecesse e fosse confirmado.

O sol entrava pelas janelas grandes a minha esquerda e eu media a passagem do tempo por ele: quando batesse na tomada do chão, era meio-dia. Quando chegasse na minha mesa, era hora do café. Quando chegasse na minha mesa, era hora de ir embora. O único ser vivo na sala, além de mim, era uma samambaia. Seca e despinguelada, que se recusava a crescer, por mais que eu colocasse água em seu xaxim.

O Natal chegou e houve festa no prédio: soltaram rojões, compraram bolos, salgadinhos, refrigerantes, e todos os funcionários foram para a cobertura do Martinelli. Só eu fiquei em minha sala, batendo carimbo.

Para comemorar a passagem do ano novo, bebi água gelada e comi um pedacinho de papel de bala.

Até que teve um dia que a Sandra bateu na minha porta.

Eu meço um metro e oitenta de altura. Na época eu tinha um metro e setenta e pouco. Sandra tinha um metro e meio, no máximo. Um toquinho. Veio com pastas abraçadas em si, olhando para tudo quanto é lado, medindo a sala, eu mesmo, a papelada que eu achava ser minha mas era menos minha que eu.

"Dá licença?"

- Hm?

"Eu vim trabalhar aqui".

- Hm??

"Aqui é o Departamento Cadastro Setorial 32-A, não é?"

- Hm...

"O senhor é o seu Zé?"

- Hm!

"Eu sou a nova estagiária. Aqui."

E me deu um memorando de encaminhamento. No memorando dizia o horário dela, de onde fora encaminhada, seu registro funcional, seu nome (Sandra Akemi Kobayashi), estagiária de arquitetura.

Sandra era toda pequena. Pequena na estatura, pequena no corte de cabelo, pequena nos pés, pequena nas mãos, pequena nos olhos. Ela era uma boneca importada da China que andava e falava mais que cinco palavras. E se vestia como boneca, vestido de seda javanesa, tailler, chapéu coco, corte chanel, anéis, pulseiras, salto alto. Tava na cara: foi punida por ser rica. Jogaram-na no meio do poço, junto com o troglodita.

"Minha mesa...?"

Apontei para o sofá. Ela me olhou, desconfiada, desapontada.

"Não posso trabalhar ali", quase implorando.

- Hm...

"Posso usar sua mesa para pôr minhas coisas?".

- Humph?! - concordei.

E assim ficamos, repartindo minha mesa. Ela conferia o que eu fazia, já que não havia mais nada a ser feito.

Akemi (ela não gostava que eu a chamasse de Sandra e eu não queria me indispor) e eu começamos um estranho relacionamento. Ela me falava de sua vida de menina rica, me falava dos namorados, do shopping, dos trabalhos comprados da faculdade. Nosso entrosamento foi rápido porque eu sou fácil de ser levado no bico.

Um dia ela apareceu com maconha e fumamos tomando banho de sol num canto. Era uma maconha leve, que ela picou na minha frente, e eu enrolei. Eu fumava maconha uma vez por mês, quando meu amigo Igor oferecia. Ele pegava em Diadema e de vez em quando eu saía para arrumar máquina de fliperama com ele e dava uns pegas e bebia uns rabos-de-galo.

Akemi não ficava chapada de dar vexame. Ficava poética, mansa, falando de coisas que não me lembro mas que eu prestava uma atenção danada. Semana sim, semana não, toda sexta, no final do expediente, fazíamos uma festinha. Eu comprava a garrafa de vinho, ela trazia a maconha. Li suas poesias, seus hai-kais, vi suas fotos de família, seus origamis de passarinhos.

Abri meus olhos e Akemi havia tomado conta de tudo. Haviam caranguejos de papel, vasos de bonsai, pôsteres do Japão, mangás antigos, brinquedos de robôs que viravam carrinhos, um videogame em miniatura, uma máquina de fazer chá. A vida que eu tinha fora da Prefeitura estava virando irreal e o que eu tinha com ela era o real.

Akemi descobriu que no banheiro desativado que usávamos havia um chuveiro e, prestativa, instalou uma ducha Lorenzetti. E depois, no fundo da sala, uma caixa de isopor com gelo e uma espiriteira elétrica.

No dia seguinte, foi nossa lua-de-mel.
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