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Artigos-->Caminho Iniciático de Compostela -- 20/11/2001 - 22:23 (ANGEL DRAVEN) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O Caminho Iniciático de Compostela





Pelas trilhas e caminhos que atravessam a Navarra, a Rioja, Castilla, León e a Galícia, tornou-se familiar a figura do Peregrino a Compostela. É parte da paisagem que compõe a própria rota.

A pé, de bicicleta e até a cavalo, aproveitando as épocas menos frias e chuvosas do ano, o peregrino cruza suado e alegre os campos abrasados pelo sol. Em sua caminhada, lhe chamam atenção os velhos monumentos, busca sombra nas estreitas ruas dos pueblos que encontra, incansável, ao som dos pássaros e das folhas ao vento. Cruza rios, sobe montanhas, atravessa vales. Sempre movido pela ilusão de alcançar a meta fixada que o aguarda ao final da beleza mística e insondável do próprio Caminho. Sua iniciação.

Alguns marcham solitários, cercados por seus pensamentos e com o olhar num ponto ao longo da senda que se descortina a sua frente. Outros caminham em casais, compartilhando alegrias, desfalecimentos, infundindo ânimos e ilusões, calados ou cantando ao caminhar. Todos despertam curiosidade em sua passagem. Muitos gostariam de saber algo sobre os motivos que os impulsionam em sua aventura, de seus esforços, sacrifícios e alegrias. E isto vem acontecendo a quase 1.000 anos.

Por quê? Quais são as razões que movem milhares de pessoas, de todas as idades, lugares, credos e condições a repetir hoje os passos daqueles que começaram, há tanto tempo, a peregrinar pelo Caminho das Estrelas , em direção ao Ocaso?

Antes de escrever este trabalho, cheguei a escrever e terminar 3 outros. O primeiro somente tratava de aspectos históricos e culturais, possível de ser encontrado nas melhores livraria do ramo. O segundo era filosófico e simbólico demais, fazendo analogias entre todos os símbolos encontrados no caminho e mais alguns. O terceiro, embora fosse o mais místico e esotérico de todos, confesso que era um desabafo por não estar conseguindo por no papel aquilo que realmente queria, desejava e sentia.

Eis que então, numa noite, da mesma forma que durante o caminho, os sentimentos foram emergindo e aflorando, sem máscaras, impossíveis de serem controlados ou abafados. Já conhecia este fenômeno, já havia passado por isto antes. Era a magia do caminho real. Era o entusiasmo de pensar e sentir o todo contido no mais profundo do meu ser. Era o êxtase de, somente em pensar no caminho, magicamente me transportar para lá e sentir, novamente, as mesmas sensações.

Não é preciso que se acredite em tudo que se ouve sobre o Caminho, porque sabe-se que o homem, desde sempre, deseja saltar a fronteira que separa a realidade desnuda, que são os feitos históricos e fatos, das invenções, lendas e mistificações. A verdade é que quase sempre tem-se conseguido ultrapassar esse pretensos limites, e isto é excelente e bonito. Tão lindo vale a pena ver por si mesmo.

Pensava na ansiedade e dúvida, cruel, que antecedeu os meses antes de partir. Lembrava que sofria achando que não tinha me preparado adequadamente, não tinha condições físicas de conseguir caminhar tanto nem de chegar. Nunca gostei muito de andar e tudo isso me parecia uma grande loucura.

Por que não tirava férias “normais” como todo mundo? Cheguei a pensar em desistir várias e inúmeras vezes. Mas... algo me atraia, alguma força me impulsionava, algo me chamava, uma energia estranha e desconhecida bloqueava a razão, algo intuía para que eu fosse. E tudo conspirou para isso. Toda a sincronicidade necessária ocorreu, independente dos meus pensamentos, mas em conjunção com meus desejos.

As situações, “coincidências” e fatos que ocorreram ocupariam horas, e pareceriam fantasiosos. Mas ocorreram, e não tenho como negar. E assim, no dia 22 de Maio de 1997, parti de Roncesvalles em direção a Compostela, mais de 800 Km a frente.





Tiago Maior, filho do Trovão



Será somente este personagem bíblico, capaz de motivar, oito séculos depois de sua morte, o início de peregrinações, levando até pontos tão distantes do ocidente europeu, a milhares de pessoas em um fluxo contínuo que dura mais de mil anos ? Ou teria o caminho outro significado, e as pessoas, outras motivações ?

Se chamava Jacobo e também Tiago, e foi ele mesmo um caminhante incansável, um santo mendigo disseminador da doutrina de Cristo por terras desconhecidas e pouco hospitaleiras. Tiago Maior era filho de Zebedeo e Maria Salomé. Nasceu na Palestina, próximo ao lago Genesaret, onde seu pai era pescador. Elegido um dos doze, foi juntamente com seu irmão João e Simão Pedro, um dos discípulos preferidos de Jesus, segundo nos contam os Evangelhos. Era chamado também Boanerges , que quer dizer filho do trovão, talvez por seu caráter veemente e impulsivo e seu gênio vivo, por vezes violento.

Conta a tradição que, morto o mestre, Pedro sugeriu a Tiago pregar o Evangelho por terras hispânicas. Este cumpriu o encargo e correu incansável a Península Ibérica, fazendo chegar a todos os cantos a Boa Nova, conseguindo um elevado número de seguidores. Chegou até a Galícia, com sua umidade e neblina, e até o Finis Terrae romano. Na Galícia, residiu por longo tempo, só saindo quando lhe apareceu a Virgem num Pilar de luz, mandando que regressasse a Jerusalém. Tiago iniciou novamente sua caminhada juntamente com alguns discípulos e em Zaragoza a Virgem lhe apareceu novamente sobre uma pequena coluna de pedra luminosa, solicitando que funda-se ali uma capela, para depois continuar sua viagem.





Conta o “Códex Calixtino”:



Não eram bons tempos para os cristãos em Jerusalém. No ano 42 Tiago foi então preso e decapitado por ordem de Herodes Agripa, e seu corpo foi jogado fora da cidade para ser devorado por aves e cães. Seus discípulos dos quais 7 eram galegos, recolheram seu corpo a noite e embarcaram de Jafa num bote sem velas e timão. Um anjo apareceu e dirigiu a embarcação pelo Mediterrâneo e Atlântico até Iria Flavia . Seu corpo foi então depositado numa pedra que se fundiu como cera tomando a forma de um sarcófago.





Buscando um lugar para enterrar o apóstolo



Os discípulos empreenderam uma marcha pela Galícia confiando encontrar uma comunidade cristã e receber algum sinal que indica-se onde enterrar o apóstolo. Foram parar nas terras de uma rica senhora chamada Lupa onde pediram permissão para enterrar o corpo num templo pagão que havia em seus campos. Mas a rainha Lupa, como era conhecida, buscou iludir e atrapalhar os discípulos, até que terminou por converter-se. Os restos dos apóstolos foram então enterrados nas terras de Lupa, onde construiu-se um simples capela.

Da mesma forma que com os antigos discípulos, para nós as primeiras lições vieram logo no primeiro dia, e não pararam mais. A cada dia um novo aprendizado.

Muitos anos se passaram, com várias perseguições aos cristãos, invasões de vários povos na Península Ibérica, de tal forma que o culto ao apóstolo e mesmo o local de seu sepulcro foram esquecidos e perdido.





O descobrimento na Idade Média



Chegamos ao ano de 813, em plena Idade Média, próximos ao rio Sar, na comarca de Amahía, onde começam a circular curiosos rumores. Muitos havia contemplado estranhas luzes a noite, que pareciam acompanhadas por sons ou cantos, sobre um bosque vizinho. Eram como estrelas que voavam e abaixavam do alto, e entre elas uma que se destacava por seu tamanho e brilho maior, que parecia lançar uma luz sobre um lugar preciso. Próximo vivia Pelayo, um sábio eremita que muitas vezes rezava missas e realizava rituais na paróquia de San Fiz, que ouviu os rumores e resolveu comprova-los por si mesmo. Associou o fenômeno a já quase esquecida lenda do sepultamento de um apóstolo na região e comunicou ao bispo Teodomiro de Iria Flavia. Em conjunto, limparam o bosque e encontraram as ruínas do antigo sepultamento.

O acontecimento foi comunicado ao rei Alfonso II o Casto, que muito impressionado com a notícia, realizou a primeira peregrinação até os restos de Santiago, onde ordenou que construíssem uma igreja para alojar os devotos que já começavam a surgir de todas as partes, atraídos pelo descobrimento.

Rapidamente, começou a estender-se a notícia, e a vinda de pessoas até o local do descobrimento era cada dia maior. Ao redor da igreja se construiram conventos, pousadas, lojas, hospitais e mansões. Pouco a pouco se foi levantando uma cidade. Nasceu assim Compostela, quem muitos dizem significar “campo de estrelas”, ou provém do latim compositum tellus, que significa espaço construído.

Compostela está ligada à estrela pelo próprio nome, seja ela a estrela do compostam , ou como pensam os alquimistas, a do compost: estrela que se forma na superfície do crisol na altura de uma das primeiras operações da Grande Obra. Existiria uma quarta etimologia possível, mais secreta e mais tradicional, que teria a sua origem na palavra compos, a qual, em certas formações, poderia significar «mestre», o Mestre da Estrela. Além disto, tradicionalmente, o caminho para Compostela é a Via Láctea , o nome desse rasto aparente de estrelas que atravessa o nosso céu até à constelação do Cão Maior .

No fim do século IX se derrubou a igreja primitiva para se construir uma basílica maior, pois Santiago de Compostela se tornou, depois da Cidade Eterna , o lugar mais renomado da Europa medieval. Também adquiriu fama de guardar ricos tesouros, que atraíram normandos, árabes e sucessivas invasões e guerras, que arrasaram e saquearam a cidade. O líder muçulmano Almanzor tomou a cidade em 997, arrasando a basílica, e como troféu, mandou transportar as portas da basílica e os sinos até Córdoba, nos ombros de cristãos, com os quais construiu uma mesquita. Dois séculos depois, tropas templárias trouxeram os sinos de volta a Compostela, desta vez nos ombros de maometanos.





Um centro universal de Peregrinação



O espírito de Compostela se mostrava indestrutível, e como a fênix, renasceu de suas próprias cinzas com a ajuda de vários reis e das ordens militares da época.

A cidade foi amuralhada e fortificada. Para lá convergiam todos os caminhos, se mesclavam todas as línguas e se reuniam todas as artes e conhecimentos.

O Códice Calixtino reconhece a lenda que atribui a Carlo Magno a libertação do Caminho, no século VIII, após um sonho sobre um caminho que cruzava a Europa e era iluminado pela Via Láctea. Seu poderoso exército atravessou as terras da França, escalou os Pirineus, conquistou Pamplona e foi limpando o caminho dos infiéis. Chegando em Santiago doou muitas riquezas a igreja e converteu a cidade em corte carolingia. Regressou a França e decidiu fazer nova varredura no caminho, quando aconteceu a desastrosa batalha de Roncesvalles, que propiciou o nascimento da mais antiga e bela epopéia francesa: a Canção de Roldán, herói-cavaleiro morto nesta ocasião.

Os caminhos da época eram muito ruins, e quando havia um pequena trilha, eram cheios de perigos, aos quais estavam expostos os peregrinos. Estes sempre buscavam lugares pouco transitados para evitar encontros com árabes ou salteadores. Aqueles que decidiam realizar a peregrinação a faziam por motivos muito fortes. Foram eles que assinalaram com seus passos as primeiras rotas que, pouco a pouco, foram se consolidando sobre a terra a via que Carlo Magno havia contemplado em seu palácio de Aquisgrán, iluminada pelas estrelas.





Caminhos de Compostela



A medida que se iam firmando as vias utilizadas pelos peregrinos, as pessoas começaram a diferencia-las claramente das demais trilhas e estradas. Aqueles eram caminhos sagrados e conduziam a lugares determinados, passando por centros de grande energia e poder.

Esta sensação perdura até hoje.

Tudo que tinha, possuía, desejava e realmente precisava, estava em minha mochila ou em meu corpo. Aprendi a grandeza das coisas pequenas. O caminho me mostrava o sentido de uma vida simples e humilde.

No século XI os reis de Navarra, Castilla e Léon decidiram melhorar as rotas timidamente traçadas e assegurar, na medida do possível, a sorte dos peregrinos. Mandaram construir albergues, hospitais, e concederam privilégios aos monges de Cluny , que se tornaram os maiores impulsores do Caminho. Com a laboriosa dedicação destes monges, surgiram pousadas e nasceram vilas e aldeias e iam definindo o que hoje conhecemos do Caminho de Santiago de Compostela.

Também foram fundamentais o apoio de ordens como a Ordem dos Cavaleiros de Santiago , fundada no século XII para a proteção dos peregrinos, de provável origem e coordenação templária.

Eram quatro as principais rotas tradicionais que se dirigiam desde a França por terras hispânicas. Tomaram seus nomes dos lugares mais importantes por onde cruzavam. A rota de Arlés, que atravessava os Pirineus por Somport; a via de Le Puy; a rota Vézelay , a via de Tours, a mais ocidental de todas. Esta última passava por Poitiers e Burdeos, chegava a Ostabat, onde se juntava com as duas anteriores antes de penetrar na Espanha por Roncesvalles e unir-se depois com a primeira em Puente la Reina. Estes todos eram chamados Caminho Francês, e havia ainda outras rotas, como o caminho da Plata, uma antiga rota romana de prata; o caminho francês do norte, considerado a mais primitiva das rotas compostelanas, por não estar sob o domínio árabe; os caminhos da Catalunha e Aragón, que iniciava no porto de Barcelona e passava por Jaca; e vários outros caminhos pelo mar.

Estes itinerários eram como artérias principais de uma gigantesca rede de trilhas e caminhos que se estendiam até os mais remotos confins da Europa. Da mesma forma que se diz da Cidade Eterna, todos os caminhos levavam a Compostela.

As longas jornadas sob o sol escaldante da Navarra me ensinaram sobre o Fogo. O vento forte e assustador dos dias de tempestade e a brisa suave e rejuvenecedora me ensinaram sobre o Ar. As incontáveis pedras do caminho, as várias quedas pelo cansaço e o barro interminável me ensinaram os segredos da Terra. E os dias debaixo de chuva da Galícia e as estratégicas fontes refrescantes me ensinaram sobre a Água.





Em marcha até Santiago de Compostela



Com os primeiros ventos da primavera os peregrinos se agrupavam nas cidades mais importantes ou nos santuários próximos a seu lugar de residência para despedir-se de seus familiares e amigos, benzer seu bordón e seu morral , encomendar-se a Deus e partir. Agrupavam-se por nacionalidade, até a distante Compostela, com a intenção de estar de volta em setembro.

Em cada lugar haviam seus próprios costumes. Em París, os que iriam a cavalo se reuniam na rua de Saint-Jacques e solicitavam que seus cavalos fossem benzidos e marcados com a chave da capela de San Martín. Esta marca despertava o respeito por onde passavam.

Quando começava sua marcha, o peregrino passava a formar parte de um mundo diferente, de uma sociedade distinta de sua comunidade familiar, alterando o limitado território de suas relações normais por um espaço amplo que se abria frente seus olhos.

Devia adquirir conhecimentos novos pois passava a ter outras necessidades. Se exporia a perigos e situações desconhecidas. Se dava conta de que podia muito pouco sem a ajuda de outros, e isso o tornava social, global. Passaria fome, sede e cansaço. Transmutava localismos e costumes limitados, renunciando personalismos egoístas, ajustando sua atitude ao interesse comunitário.

Observar os campos de trigo e cevada, do alto de um monte, movendo-se pelo vento, como um mar ou como um bailado, nos ensinam o princípio da vibração. Nada está parado, tudo se move e vibra. Existe uma sinfonia harmônica entre nós e os campos de trigo.





Todo o tipo de Peregrinos



Franceses, italianos, flamencos, ingleses, alemães, eslavos, gregos, hungaros, portugueses, espanhóis e outros, passavam a ser somente: Peregrinos. E isto agora passava a ser o seu verdadeiro, autêntico e único sinal de identificação.

Reis e vassalos, sábios e ignorantes, santos e pecadores, ricos e mendigos, iniciados e profanos haviam de compartilhar, por força da circunstância, problemas comuns. Isto obriga a estabelecer entre eles um tipo de relação que raramente se encontra. Todos os peregrinos são irmãos.

Compostela se tonou, como Roma e Jerusalém, farol de referência para milhões de pessoas, que ao longo do caminho, mudavam suas estruturas sociais e culturais, para sempre.

Pessoas motivadas pela fé, penitência, misticismo, curiosidade, espiritualidade, ladrões, artistas, aventureiros, médicos, letrados e gente de todo tipo conviviam nos hospitais e albergues. Falavam de suas experiências e conhecimentos, compartilhando-as com prostitutas e desertores. Juntos ouviam cantos de terras distantes e entoavam seus próprios.

Tratavam com estudiosos, iluminados e mendigos, e confiavam suas dores a curandeiros e magos dos mais estranhos lugares.

Os dias eram quentes e as noites frias. Tudo é duplo. O peregrino caminha e cansa, e para e descansa. Tudo tem seu oposto. Haviam homens e mulheres pelo caminho. Tudo tem pólos opostos. A fadiga e o extremo cansaço eliminam as máscaras do peregrino, que fica sem defesas. Ele sente ódio e amor, e demonstra ambos, raiva e ternura. Os extremos se tocam. Nos sentimos forte e fracos, grandes e pequenos. O caminho nos ensina o princípio da Polaridade.

Os caminhos são algo vivo, mudam com o tempo, mas detêm para sempre estas experiências. Parecem participar de nossos sofrimentos e alegrias, compartilhando conosco sua brisa e seus aromas.

O Caminho de Santiago, repleto de sentimentos de homens justos e criminosos, nobres e plebeus, contribuindo de maneira essencial ao maior milagre realizado pelo Filho do Trovão: o íntimo contato e posterior consciência dessa atitude social e mística que hoje chamamos Iniciação.





Perigos e enganos ao longo do Caminho



Havia de tudo e qualquer coisa era possível nas rotas que levavam a Compostela. O médico inglês Boorde afirmava que preferia realizar 5 peregrinações a Roma que uma a Santiago. Aymeri Picaud falava dos infames barqueiros que atravessavam pessoas, cargas e animais entre as margens de vários rios ao longo do caminho. Eram capazes de fazer viram as barcas repletas de peregrinos para depois roubar os cadáveres. Haviam enganadores de todos os tipos e calibres. Falsos confessos com penitências impossíveis, prostitutas e ciganas, comerciantes e taberneiros inescrupulosos, cambistas com pesos e medidas adulterados, além dos ladrões e assaltantes de toda espécie.

Mas haviam também muitas pessoas hospitaleiras e amigáveis com os peregrinos, que muitas vezes consagravam sua vida da servir quem caminhava em peregrinação. Como existe até hoje.





Milhares de Peregrinos



Mas se o Caminho era duro, maior era a glória de quem o podia realizar, uma vez que nenhum outro lugar atraiu tamanha quantidade de visitantes. No começo do século XII, um embaixador do emir Alí bem Yúsuf que visitou a Galícia se perguntava “Quem será esse personagem tão ilustre que a multidão que vem e vai de Compostela apenas deixa livre a calçada até o Ocidente”.

Se calcula que chegavam a Santiago entre 250 e 500 mil peregrinos cada ano, somente entre os meses de abril e setembro . Foi preciso organizar sistemas que facilitassem o acesso dos numerosos peregrinos a catedral. A configuração das escadas da basílica foi um desses sistemas. As multidões eram tais que começou-se a utilizar um enorme incensário para amenizar os odores. O famoso botafumeiro , de uso tão antigo quanto a própria basílica , tem 1,5 m de altura pesa cinquenta kilos. Atualmente se utiliza em grandes celebrações e se faz voar, como no passado, de um lado ao outro da cruz latina, suspenso pelo teto por uma roldana manipulada por oito tiraboleiros .

Nos vilarejos, as igrejas e monumentos, revelavam seus segredos de pedra, construídos para duram para sempre. O sincretismo e o ecumenismo se mostra e revela presente por todo o Caminho de Santiago. Por ali passaram e passam, todas as religiões, várias ordens, todos os povos da mãe terra. Suas construções e símbolos são universais.



Por que se Peregrina ?



“O peregrino caminha quanto pode, não quanto quer”, diz a tradição. Reaprende a caminhar, ao longo de sua jornada, pois tem vários dias e quilômetros para treinar. Montanhas e vales, tudo sobe e desce. Ele aprende sobre o ritmo das coisas, sobre seu próprio ritmo. Tudo tem fluxo e refluxo, em seu corpo, na natureza, em sua mente, no caminho, em seu espírito. O próprio Caminho e ao longo dele, se revela o segredo do Ritmo.

Eram muitas e várias as razões que impulsionavam o peregrino a colocar-se em marcha até Compostela, abandonando suas atividades e lares para sofre as situações de uma longa caminhada.

A primeira razão que movia as maioria das pessoas era a própria fé, o desejo de salvação, o arrependimento. No século XII, Guillermo de Aquitania, conde de Poitiers, foi acusado por São Bernardo da favorecer a heresia. Arrependido, Guillermo empreendeu uma penosíssima marcha até chegar, muito doente, à catedral compostelana, para morrer ante o altar-mór, após receber o sacramento da penitência.

Alguns escreviam seus pecados num pergaminho que carregavam junto ao peito ao longo de toda a caminhada. Quando chegavam ante a imagem do apóstolo abriam o pedaço suado de pergaminho e notavam que seus pecados haviam borrado, em sinal deque haviam sido perdoados.

Outros peregrinavam por motivos de doenças e muitos não alcançavam sua meta. Muitos cemitérios se criaram ao longo do caminho, a maioria deles repletos de peregrinos que pereciam em sua jornada ou eram mortos.

Também havia aqueles que realizavam a viagem por conta ou mando de outro que não podia faze-la. Muitas vezes voluntário ou incentivadas por uma boa remuneração. Haviam autênticos peregrinos profissionais! Existe a lenda de um carpinteiro francês que realizou o caminho nessas condições, ida e volta, pelo menos 3 vezes, naquela época. Atualmente, conheci um que estava fazendo pela 7a vez, e pretendia continuar enquanto pudesse.

Existiam outros que peregrinavam para cumprir uma pena imposta por um juiz. Os homicidas, por exemplo, eram obrigados a fazer o caminho acorrentados para agravar sua penitência. A corrente muitas vezes se forjava a partir da arma do crime. Alguns réus eram condenados a peregrinar até que as correntes se partissem pela corrosão e desgaste. O sentido deste tipo de condenação eram também servir de exemplo e muitas vezes livrava o réu da vingança de seus compatriotas, numa época muita dada ao olho-por-olho.

Haviam aqueles que peregrinavam para cumprir uma promessa ou representando uma comunidade ou por decisão de um vilarejo. Em dezembro de 1.456 a cidade de Barcelona enviou dois peregrinos a Compostela para pedir ao apóstolo que intermediasse ante Deus e os livrasse da peste.

Outros se punham a caminho porque deviam dinheiro, e segundo os direitos de um peregrino , conseguiam burlar, mesmo que por algum tempo, seus credores.

Alguns utilizavam a peregrinação como desculpa para chegar a Espanha em segurança.

Muitos haviam que o único desejo era conhecer outros povos e visitar outras terra, e mesmo entrar em contato com os famosos sábios árabes e judeus que se encontravam espalhados ao longo do Caminho.

Entrar em uma ermita ou capela, sozinho, ouvir seu silêncio e observar sua forma é a chave do segreda da correspondência. Sentir-se como a igreja, integrando-se e fazendo parte desse ser, é perceber em suas dimensões e geometria, a representação do próprio ser.

Da criatura e do Criador, como o que está em cima é como o que está embaixo. Como você, a ermita e Deus, são um só corpo, como o que está embaixo é como o que está em cima.





O Peregrino, atormentado e sagrado



No princípio o peregrino utilizava as mesmas roupas que habitualmente usava em seu país de origem, mas ao longo do tempo, acabou adotando alguns costumes mais práticos para caminhar. Estas roupas de caminhada se converteram em uma espécie de uniforme que o diferenciava. Existe um antigo poema que mais ou menos começa assim:

Quien quiera ser peregrino,

Peregrino de Santiago,

Necesita los zapatos

Bellos de los peregrinos

Que Santiago tenía

Cuando a Galicia iba .

Em estrofes posteriores, fala-se dos sapatos arredondados, das calças curtas, das polainas reforçadas, da camisa, do chapéu de feltro com abas largas, da capa de couro para resguardar-se do frio e da chuva, etc. Isto demonstra que havia um modo de se vestir específico do peregrino, como hoje os trekers e montanhistas. Após uma época, por exemplo, se proibiram os hábitos como vestimenta de peregrinação, pois muitos se utilizavam deles para mendigar. Era comum também o morral de pele, se possível de carneiro, onde o peregrino carregava tudo que possuía.

As dores dos pés, dos joelhos, do corpo todo, o cansaço, chega a níveis do insuportável. Então, subitamente, uma brisa, o som de um pássaro, ou algo que a inteligência não alcança entender, ocorre. E tudo cessa. Isto ocorre 1 dia, 2, 5, 10, 20 e 30 vezes. E se descobre que tudo é mente, que o universo de dor ou alegria e prazer é mental. E compreender a natureza mental do universo é se colocar no caminho do domínio, no caminho das estrelas.

E, é claro, o todo peregrino tinha seu Bordón, esse largo cajado, a terceira perna do caminhante e defesa inestimável contra lobos e cães. Na cintura ou do bastão, pendia uma cabaça, antecessora do cantil, onde transportava uma pequena quantidade de água ou vinho. Alguns levavam também seu instrumento musical, com o qual interpretavam música para animar canções e noites frias.

Ma calabasse, ma compagne;

Mon bourdon, mom compagnon.

La taberne m’y gouverne,

L’hôpital c’est ma maison .

Através de meu cajado, ou bordón, como chamam, percebi que é impossível atravessarmos algumas situações totalmente sozinhos. Sempre precisamos de uma apoio, um suporte. Nem que para isso, precisemos que um bastão nos revele onde está o verdadeiro poder. Um bastão de poder, para o poder de cada um de nós.

Numerosos hospitais e albergues ladeavam todo o caminho. Sua existência deve-se ao esforço e donativo de algumas ordens e pessoas. Neles se recolhiam os peregrinos gratuitamente, mesmo sem problemas de saúde, por um período de no máximo 3 dias. A cidade de Burgos chegou a ter cerca de 30 hospitais, um com mais de 2.000 camas.

Eram sempre alojamentos simples, sem muito conformo e comodidades, sempre carecendo de recursos, pois os peregrinos também não tinham como contribuir, pois eram mais dados as tavernas, como diz a canção.

A cama de um albergue depois de um dia de jornada, e a visão de um vilarejo, descortinado após o topo de uma subida, me mostraram que buscamos segurança e descanso, ao final de uma longa caminhada. Merecemos e precisamos de segurança e descanso, pois o verdadeiro peregrino, místico ou mago, é aquele que cuida de seu templo.





A Vieira e a Compostelana



Após chegarem a Compostela, o peregrinos passavam alguns dias em Santiago e depois de recuperar suas forças, empreendiam a última metade da jornada de volta.

Era costume prender em sua roupa ou no chapéu uma concha de vieira e alguns botões de osso, símbolos da visita a Santiago de Compostela. Os primeiros peregrinos recolhiam estas conchas das praias de Padrón ou Finisterre, mas logo passaram a ser vendidas nas praças de Santiago.

Esta tradição, segundo o Liber Sancti Iacobi, diz que “assim como os que retornam de Jerusalém trazem a palma, os que voltam de Santiago trazem a vieira”.

Os peregrinos também compravam figurinhas de latão, estanho, prato ou ouro, segundo suas possibilidades, que eram negociadas ao redor de toda a basílica.

Todos estes símbolos, juntamente com a chamada Compostelana, que é uma espécie de certificado que as autoridades eclesiásticas entregam (até hoje) a quem haja peregrinado até Santiago de Compostela.

Estas lembranças eram conservadas com esmero pelos peregrinos, por considera-las sagradas, além de serem uma demonstração tangível do cumprimento da peregrinação.





Outros Tempos



A chegada do Renascimento com sua radical renovação cultural, a reforma protestante, as muitas guerras européias a partir do século XV e as restritivas leis de muitos monarcas espanhóis, temerosos por estrangeiros em suas terras, marcaram um grande declínio nas peregrinações compostelanas nos últimos séculos.

Na última década, assistimos uma estranha revitalização do antigo e místico caminho de Santiago, hoje declarado Itinerário Cultural Europeu.

Os atuais viajantes do caminho de Compostela são pessoas movidas pela fé, curiosidade, interesse cultural e histórico, apelo turístico, ou simples espírito desportivo. É claro que atualmente é muito mais fácil e menos perigoso realiza-lo, mas nem por isso, menos enriquecedor.

Esta aventura de mais de mil anos continua inquietante, mística e iniciática.

Tão pouco é menor a emoção de chegar ao Monte do Gozo, uma pequena colina a uns 5 Km de Santiago, de onde se avista as torres da catedral pela primeira vez, da mesma forma que viam os peregrinos medievais, com os primeiros raios de sol banhando Compostela.

O sabor de uma sopa comunitária de alho e um copo de vinho, numa noite fria, me ensinaram que o sabor da vida tem gosto de solidariedade.

Caminhando por suas ruas estreitas e sinuosas ainda é possível ouvir os gritos de alegria e cantos: Ultreya! E sus eia! Deus aïa nos!

Mas um dos maiores ensinamentos está sobre o Caminho ou diretamente nele. São as pessoas. Ao longo do caminho se encontra vários outros peregrinos. Tem-se contato com pessoas de todo o tipo, em todas as cidades e vilas por onde se passa. Velhos e crianças. São nas pessoas que encontramos a chave final do Caminho de Compostela. É no contato e relacionamento com nossos irmãos que melhor aprendemos que toda causa tem um efeito. Pois é de nossa atitude que depende a atitude de nossos semelhantes.

É em sociedade que melhor percebemos que todo efeito tem sua causa. É entre irmãos que aprendemos que tudo acontece de acordo com a Lei.

Foram estes vários amigos que encontramos e juntos comemoramos a chegada em Santiago de Compostela, 38 dias após nossa partida. Dante dizia que “não se entende por peregrino senão aquele que vai até a casa de Santiago ou volta dela”. Discordo um pouco. E posso garantir que uma coisa é Santiago, e a outra é o Caminho de Compostela. Hoje entendo de outra forma o que Ludwig Schmugge se referia dizendo que “para o homem medieval a palavra Peregrinação era quase sinônimo de vida”. Para muitos, Compostela, não é um fim, senão um grande novo começo, uma alquimia interior. Nós mesmos só demos o caminho como finalizado nos rochedos de Finisterre, em frente ao Oceano Atlântico.

A fé que tem animado os peregrinos ao longo da história e que tem sabido unir em uma aspiração comum, acima de diferenças e interesses nacionais, nos inspire hoje também a percorrer estes caminhos para construir uma sociedade fundamentada na tolerância, no respeito aos demais e a natureza, na liberdade, na solidaderieda e principalmente no Amor.

Mas um dos maiores privilégios que tive, foi aprender que tudo tem o seu princípio masculino e feminino. Fiz o estranho e antigo caminho de Santiago de Compostela ao lado de várias mulheres maravilhosas. Com elas e através delas, percebi que o gênero está em tudo e se manifesta em todos os planos. A união da razão e da intuição, gerando a emoção, numa trindade sagrada e mística. Percebemos juntos que todas as coisas contêm os Elementos masculinos e femininos. Compreendemos juntos a grandeza do universo e vivenciamos a consagração da amizade e do amor. Caminhamos por vias lunares e solares juntos. Vivemos e compartilhamos o sagrado.

E é, esta magnifica iniciação, este entusiasmo, esta onda de energia, que queremos compartilhar com vocês.



(Angel Draven)

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