Silvia gostava de roer a borda de livros. Não de qualquer livro, claro, e nem qualquer borda. Tinha que ser, pelo menos, daqueles livros que imitam couro, vermelhos, se possível, e nunca pretos (não era racismo: Silvia achava que aquele plástico preto parecia um monte de formiga picada depois que ela arrancava pequenos pedaços com os dentes, e ela tinha nojo de formiga). Ela também não gostava de livro grande, tipo Moby Dick ou Decamerão, porque não dava a empunhadura correta. A não ser que fosse em dois volumes, como acontece com a maioria das edições de Vinhas da Ira ou Crime e Castigo. As folhas também não podiam ser muito velhas, amareladas, porque ela espirrava. Por isso seus livros eram muito bem cuidados – com exceção da capa, claro.
Um dia, Silvia conheceu Romeu, que trabalhava como encadernador na rua Aurora. Estavam num sebo, na seção de literatura estrangeira.
- Você viu algum do Hemingway? Ele perguntou.
- Tem Adeus às Armas ali. Você gosta dele?
- Gosto. E você?
- Já devorei todos.
Apaixonaram-se. Mais ainda depois que ela descobriu no que ele trabalhava. Ele, quando viu o estado dos livros dela na prateleira, propôs, na hora, trocar a capa de todos. Não entendia como as capas ficavam daquele jeito – nem ela contou, com medo de perder ser grande amor. A grande surpresa foi quando ela viu que ele usava material importado, muito mais gostoso que qualquer coisa que ela já havia provado. A paixão tomou um ritmo alucinante: ela comprava dúzias de livros em sebos, ele encadernava todos com prazer. E ela consumia quase um livro por dia. A maior parte enquanto via novelas, mas também levava obras para o trabalho. Ao sair escondida para o banheiro, carregava seu Admirável Mundo Novo para dar uma bicada. Antes de dormir, beliscava os García Marquez que ele encapou com azul anil.
Em um certo Natal, num ápice de loucura por amor, Romeu deu a Silvia a coleção completa de Machado de Assis.
- Para você experimentar a literatura brasileira também, que tem muita coisa boa.
Ela adorou. Passava as noites degustando seus novos livros de capa dura verde musgo com cheiro artificial de couro. Achou Machado uma delícia, suave, mas ao mesmo tempo denso. Não sobrou um.
Romeu, entretanto, um dia surpreendeu-a no quartinho da biblioteca mascando um Kafka.
- Que que é isso, Silvia? Tá comendo os livros?
- Não é o que você está pensando!
Não adiantou. Romeu ficou muito magoado, ainda mais depois de ver todas as suas encadernações em pedaços. “Uma arte, Silvia, era uma arte!”, dizia cabisbaixo enquanto ela tentava impedir que ele saísse pela porta. Mas saiu. Nunca mais voltou.
Silvia, com o choque do amor perdido, parou de comer capas de livros. Mas não melhorou nada: agora, para distrair, ficava horas pendurada no telefone.