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Artigos-->Por entre as (d)obras (in)finitas de uma literatura circular -- 21/11/2001 - 10:58 (marcus v. f. bastos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Chegou a São Paulo um livro jóia – “Uilcon Pereira: no coração dos boatos”, de Aricy Curvello. O título acaba atrás da orelha, em frase escrita num coração rabiscado, parecido com esses que os namorados costumam talhar nas árvores da adolescência; marca do corpo, portanto: inscrição. É como raspar a unha na casca de uma árvore antiga e ir descobrindo suas camadas ocultas, ler os textos agrupados entre o quadro de Arcimboldo e as fotos de Uilcon Pereira, que embalam o volume com cuidado gráfico e precisão conceitual. Ou: como puxar os fios de um tapete de crochê, investigar o que há nesse livro embalado por duplos de uma mesma imagem - a do Bibliotecário de Babel, que pode ser, simultaneamente, título do quadro de Arcimboldo e explicação relâmpago para a escrita entrecortada de citações e paródias em romances de Uilcon como “Outra Inquisição”, “Nonadas” e “A implosão do confessionário”.



Desde a capa, portanto, percebe-se que Aricy recupera a compreensão da linguagem como “motocontínuo verbal”, presente na obra de Uilcon Pereira. Ver, por exemplo, o trecho que se segue: “... fascina-me este discurso em público, dinâmico, vivo, conturbado, freqüentemente seccionado pelos apartes e palpites anônimos” (“Outra Inquisição”, p. 53). A coletânea de Aricy Curvello explora essa multiplicidade de vozes, ao transformar o volume-homenagem em campo de diálogo, espaço aberto aos diversos estudiosos da obra de Uilcon. Daí a riqueza de sentidos que se abrem na leitura. Já no título, construído a partir de sacada poética exemplar, está interditada a univocidade: com a capa fechada, lê-se “Uilcon Pereira: no coração”, o que remete a um mergulho pessoal do poeta e crítico mineiro na obra do amigo ausente. Nesse caso, a organização do livro se transforma em método de transporte, leva Uilcon do lobo direito do cérebro ao lado esquerdo do peito e vice-versa. Com a capa aberta, o mesmo título é lido como “Uilcon Pereira: no coração dos boatos”, o que remete à trilogia que trouxe a público o texto circular desse crítico e romancista nascido em Tietê (SP), que ora compõe o título da coletânea.



Volume múltiplo também pela diversidade de gêneros que reúne, a obra de Aricy Curvello é montada a partir de cartas, bilhetes, resenhas, artigos e poemas: palpites e apartes de um discurso que escapa à esfera do privado. De um discurso que, quando transborda para o público, aproxima vida e obra, explicitando o jogo de contínuo e descontínuo que as une. Essa sobreposição entre o vivido e o escrito é característica do Uilcon epistolar, que usa em seus livros trechos das cartas trocadas com os amigos - como indica o comentário de Fábio Lucas em “Saudade de Uilcon: Conficções”. Essa proximidade entre o público e o privado também aparece no livro de Aricy Curvello. Ela está além da evidente inclusão de registros mais pessoais entre as resenhas e homenagens incluídas no volume. Ecoa a seqüência dos textos que, agrupados em temas, constroem um roteiro de leitura: do documental ao biográfico; deste ao crítico e de volta ao biográfico, que se torna, nessa segunda aparição, documento de um possível recomeço. A figura circular descrita pode significar, como é próprio das estruturas ternárias, o eterno retorno. O que leva, mais uma vez, a “Outra inquisição”: “e assim vamos. até que a lenda retorne ao ponto de partida, ao pai da criança, à fonte geradora do circuito” (p. 29). Daí, constatação, palpite: em literatura o tempo não tem lá tanta importância, visto que as conversas com o romancista Uilcon Pereira continuam, mesmo que diacrônicas e restritas ao emaranhado de vozes nos romances da trilogia dos boatos ou no dístico “Ruidurbano”.



Não custa lembrar que esse “Uilcon Pereira: no coração dos boatos” traz de volta à cena o trabalho de um mestre relegado `a periferia da literatura brasileira, um entre tantos e que, como José Agrippino de Paula e Valêncio Xavier, merece o dobro dos olhares cada vez mais interessados que têm sido dirigidos à sua obra. Além disso, o livro é uma boa porta de entrada para a obra do Uilcon vampiro de textos que vagou pelas ruas do interior paulista. Ilustrando e indo além das análises presentes em textos já publicados e no inédito O alquimista que sabia Javanês, de Marina Lucy Goldman , o livro de Aricy Curvello abre novos caminhos para o leitor interessado em desvendar os mistérios ocultos entre as linhas dos romances publicados por Uilcon.



Sob pena de desviar desnecessariamente o rumo deste artigo (tirando-lhe o caráter introdutório para aproximá-lo do ensaio curto), é curioso notar como há mais semelhanças entre os autores citados no parágrafo anterior do que faz supor nossa vã lógica literária. Um exemplo é o possível paralelo entre o palimpsesto de textos de Uilcon Pereira e a escrita em palavra e imagem de Valêncio Xavier. As analogias não param na descoberta evidente de que ambos desenvolveram um estilo inconfundível, às margens da literatura institucionalizada - alheios à possibilidade que agora se apresenta de ver seus textos “invadirem” as livrarias do circuito comercial, desafiando o marasmo de prateleiras cheias de lançamentos seguros, de autores medianos. Mais que essa conjuntura circunstancial, o que une os dois autores é a pesquisa da linguagem.



No entanto, a experimentação sintática - marca da maioria das vanguardas do século XX - não é suficiente para explicar essa literatura que, ao mesmo tempo que aprende com as vanguardas, usa de suas lições para criar marcas distintivas. É de Antonio Medina o comentário sobre o estilo pessoal que Uilcon Pereira desenvolve, paradoxalmente, a partir do pluralismo de vozes que perpassa sua escrita: “não sei como ele faria isso sem a vanguarda. Mas só com a vanguarda não faria isso.” Algo semelhante acontece nos livros de Valêncio Xavier. E algo diferente também: a técnica de composição adotada é complementar. Enquanto Uilcon se concentra na intertextualidade, na polifonia, na colagem de elementos que se sobrepõem temporalmente, Valêncio Xavier explora a montagem de recursos gráficos, como em um cinema escrito, em que os espaços e simultaneidades da página impressa ganham nova dimensão.



De qualquer forma, o fragmentário os une. E une os dois ao José Agrippino de Paula descrito por Caetano Veloso como um não-sujeito, que “bóia lúcido e sem afeto num mundo rico de variedade e intensidade mas desprovido de sentido” - mundo próximo ao espaço sem espessura que Foucault encontra em “O Parque”, de Philippe Sollers; e dos vários ataques irracionalistas que marcam a história da literatura, de Blake ao surrealismo. Esse efeito de suspensão da subjetividade implica, lembra Caetano, na realização literária de um “não-herói pós-moderno” que não existia na literatura brasileira antes da publicação de livros como “PanAmérica” (de Agrippino), “Outra Inquisição” (de Uilcon) e “O mez da grippe” (de Valêncio). Vale investigar o surgimento desses narradores/personagens múltiplos que devem tanto ao nouveu roman francês quanto à carnavalização modernista de um “Macunaíma”. Além disso, seria interessante buscar nesses textos, que têm dívidas mais ou menos explícitas com o grand guignol e a pequena literatura, as marcas do irracional.



Antes de voltar ao fluxo inicial do texto, outra constatação que merece ser investigada com mais calma: é a paixão manifesta pela escrita não-linear que aproxima Uilcon Pereira de Valêncio Xavier. Seja pela sucessão textual de diálogos (marcados pelos travessões que cortam o texto sem pontuação de Uilcon), seja pela organização de uma polifonia visível (marcada pelos recortes de jornal e recursos gráficos de Valêncio), essa literatura explora e expande os limites do livro-códice. Nesse sentido, ambos os autores se inserem em tradição que busca, desde o final do século XIX, formas de extrapolar os limites bidimensionais da página impressa. Essa tentativa de explodir a perspectiva clássica da página de livro tem como conseqüência mais evidente as poéticas que exploram a projeção no espaço, em exercício que aproxima o texto da construção arquitetônica - como os já não poucos trabalhos que exploram os usos possíveis da palavra no espaço, seja esse espaço físico (Joan Brossa, Lawrence Weiner, Augusto de Campos, Júlio Plaza) ou virtual (Silvia Laurentiz, Philadelpho Menezes, Wilton Azevedo, Jeffrey Shaw).



É essa paixão, em certo sentido metalingüística - visto que desconstrói a linearidade suposta do objeto livro - , que os leva a romper com os limites do volume encadernado, limites estes que estancam o fluxo ininterrupto da escrita em uma seqüência contínua e finita de páginas. E, se a matriz inegável desses livros que vão além do livro está em Mallarmé (especialmente no “Livre” utópico), a chave de sua interpretação fica explícita na simplicidade da sugestão que Uilcon faz ao próprio Aricy Curvello, em carta/comentário sobre o ensaio “Babel, Bizâncio, Babilônia, Brasil”: “leia [os mini-contos de “Biúte”] como alguém descascando cebola, camada após camada, no rumo do chão, do solo real da trama semiótica”. Ler, portanto, como quem desenrola novelos de linguagem que envolvem enigmas para o leitor afeito à bricolagem literária. Dificuldade aparente, mas necessária. Que antecipa a fruição temperada de uma literatura no limite da sofisticação gastronômica.



Em “Uilcon Pereira: no coração dos boatos”, um pouco desse percurso de investigação — coisa rara em nossa crítica — é feito. Os textos ali reunidos vão se desenovelando, conversam uns com outros, se completam e, principalmente, conversam com a obra de Uilcon. De certa forma, esses textos a continuam, se tomarmos o diálogo (a inquisição, a entrevista, o interrogatório) como signo do estilo uilconiano. É na seqüência de pergunta/resposta que Uilcon encontra a forma ideal de dar voz ao emaranhado de textos cruzados em sua escrita. Em processo semelhante ao da colagem, inaugurada nas artes plásticas por cubistas e dadaístas, o texto de Uilcon Pereira manipula o próprio material que constrói a obra. Na escrita, essa técnica transforma cada citação em espelho recursivo de outros textos - como toda a literatura, seria possível argumentar; mas com uma diferença estratégica: marcando a todo momento o fluxo de intertextualidade que des/constrói as narrativas criadas. É prudente lembrar que a proximidade com a colagem explica mas não esgota a escrita de Uilcon Pereira - que era, aliás, estudioso atento dos usos da palavra em obras de artes plásticas. Há outras tramas, como fica claro no comentário de Eloésio Paulo em “Teatro às Escuras”: “Não seria exatamente novidade um autor publicar, no início dos anos 80, um romance baseado no que Walter Benjamin, filosofando sobre o drama barroco alemão, já chamava em 1928 de ‘construção de ruínas’”. Ou, numa chave de leitura mais contemporânea: re-construção.



Ao reinvidicar esse olhar arqueológico, o livro organizado por Aricy Curvello faz jus à proximidade etimológica entre texto e tecido: se refaz a cada leitura por meio de ressonâncias e ecos. Mas, essa proximidade entre estilo literário e estratégia analítica tem aspectos positivos e negativos. De um lado, o espírito da escrita de Uilcon Pereira é revisitado (nesse caso, aparece mais o Aricy Curvello poeta do que o crítico), seus métodos de construir um livro explorados em um exercício analítico que foge à tradicional compilação monográfica; de outro, a diversidade de contribuições implica em uma diversidade (às vezes irregular) de acentos: quando o livro cresce como homenagem e resgate de memória, ficam em segundo plano a análise e a crítica - e vice-versa.



O livro reúne, de um lado, textos de maior densidade analítica e, de outro, textos mais coloquiais. Os primeiros servem como boa introdução conceitual ao universo ficcional de Uilcon. Dois exemplos são: “Uilcon Pereira queria chegar ao íntimo do tempo”, de Antônio Medina Rodrigues, e o já citado “Babilônia, Bizâncio, Babel e Brasil”, do próprio Aricy Curvello.



Na segunda categoria aparece o já citado texto de Fábio Lucas (“Saudade de Uilcon: Conficções”), exemplo das inúmeras trocas de cartas que animavam a rotina uilconiana. Outro exemplo é “No mesmo e comum chão de giz”, de Marina Goldman, memória profissional-afetiva com fôlego de hai-cai, mostrando o avesso do Uilcon Zen que aparece na contribuição de David Pereira - o filho do romancista, que traz ao público um mini-conto escrito pelo pai (“As formigas e a ciência da escritura”) e resgata em texto metalingüístico o estilo uilconiano (“Àssombradamento”).



Unindo os dois estilos, o título da última contribuição do livro, enviada por Hugo Pontes, faz metalinguagem dupla. Assim como o fecho súbito de “A implosão do confessionário” (“ puxa tiro! Acho que desta vez eu acabo a obra...”), a carta de Pontes é final e reinício. Ela faz alusão ao não final da trilogia dos boatos e sugere um possível reinício do livro de Aricy Curvello, que explicita, assim, a consciência do estar diante de uma obra em constante movimento - e incorpora esse movimento, como estratégia de análise. Mordida do próprio rabo, esse fim que registra o envio de mais correspondência sobre o autor estudado/homenageado na coletânea de Aricy Curvello expõe a provisoriedade das respostas que o volume propõe. Assim, sugere outras inquisições a respeito do homem e do escritor Uilcon Pereira - para retomar a frase que inicia “Uilcon Pereira: no coração dos boatos”.



Pelo descrito fica claro que o livro de Aricy Curvello é resultado de um percurso que se faz com energia crítica e criativa. Além de referência importante (pois reúne, pela primeira vez, biografia, bibliografia e fortuna crítica do autor estudado), o livro é um palimpsesto de olhares, um mergulho coletivo na “prosa/poesia do escritor/filósofo” Uilcon Pereira , como o descreve, com exatidão, Fábio Lucas. Realmente, além de romancista com porte poético evidente, Wilcon (que, no dia a dia universitário, retomava o nome registrado em sua carteira de identidade: Wilcon Joia Pereira), publicou alguns artigos e um livro fundamental sobre as relações entre palavra e imagem nas artes plásticas.



“Escritema e Figuralidade”, como os romances do autor também há muito tempo fora de catálogo, é obra de uma atualidade impressionante, ao examinar exemplos de utilização da escrita em quadros de Picasso, Andy Warhol e Mira Schendel, entre outros. Ao analisar o cruzamento de verbal e visual na pintura, o livro percorre um caminho diferente da abordagem mais comum no Brasil - de Mario Praz aos herdeiros (positivos e negativos) da poesia concreta. Ao propor esse olhar invertido, o teórico Wilcon (com W) descobre um caminho híbrido que destoa do tom predominante na época em que o livro foi escrito - ainda bastante marcada por leituras críticas de extração sociológica. Talvez “Escritema e Figuralidade” esteja, nesse sentido, mais próximo de questões presentes nos trabalhos de Villém Flusser sobre a escrita e na “Gramatologia”, de Derrida. Menos teórico e mais analítico, o livro investiga os retalhos impuros de uma suposta sociedade de imagens que se mostra cada vez mais híbrida. Daí sua importância.



Sinal de que, como a própria organização da coletânea de Aricy Curvello sugere, ainda há muito o que se dizer sobre os trabalhos de Uilcon Pereira. Mistérios que a coletânea coeditada pela AGE e Giordano ajuda a desvendar, apontando caminhos pelos insterstícios de uma obra circular, elíptica, em progresso. Como a vida, aliás, que continua. Ciclo incompleto, espiral imperfeita, termina provisoriamente o apanhado de Aricy Curvello. Talvez o ponto final do livro esteja um pouco antes do fim do volume propriamente dito, no anúncio do nascimento de Guilherme, o neto de Uilcon Pereira. Des/continuidade. Nada mais adequado, em se tratando de trabalho sobre uma escrita que rompe as fronteiras entre vida e obra, entre início e fim, entre texto e comentário...





Marcus Bastos é mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Atualmente é professor do curso de Comunicação Social da Universidade São Marcos
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