REOLHAR
Charles Odevan Xavier
“(...)e voejaremos para o infinito, como os pássaros, as borboletas, os fios de aranhas, os perfumes e todas as coisas aladas”.
Charles Baudelaire
De manhã, acordo tarde. Esparramando a genitália sobre a mesa, uma faca serve-me de caneta. Sobre a genitália escrevo mensagens macabras, numa escrita cuneiforme para a posteridade dos arqueólogos. A mesa é um altar de estranho ritual onde me porei como sacrifício oferecido a Deus.
De manhã, quando espremido pela rotina, vejo pequenos seres, converso-os, distraem-me. Os fiéis de meu culto secreto esperam, disfarçados no miolo do pão, no copo de leite, na xícara de café, no pote de manteiga, por decisões que terei sobre suas vidas.
Escuto um sermão condenatório do apito da leiteira fervente. O biscoito cream-cracker ri dos meus cabelos assanhados, das bolsas sob meus olhos (que denunciam meu envelhecimento), das remelas da minha cara inchada de sono. Decido tomar banho.
No banheiro, os azulejos mudam de cor, formato e desenhos numa velocidade televisiva. O sabonete brincalhão escapa das minhas mãos, desliza pelo meu corpo, soltando gargalhadas. A água desce sólida, pastosa como grude de goma, cola de isopor, sei lá. O shampoo tem um gosto doce, sem soda cáustica, abacate ou maçã. A toalha enrola-se opressiva no meu corpo, como uma cobra.
Volto para a mesa da cozinha. O rádio me incomoda barulhento, mesmo desligado. Pequenos batalhões de formigas carregam o açucareiro, ou seria o açucareiro que as cavalga? Não tenho certeza. O adoçante bate palmas pela ausência do concorrente. O pão se corta e abre-se. Duas fatias de queijo e de presunto voam da geladeira para dentro dele.
O uniforme da empresa vem do quarto e pergunta se não estou atrasado para o trabalho. Digo que é Domingo. Ele volta obediente para o guarda-roupa.
Lancho. Arrumo-me com biquíni, bermuda, sandália, camiseta e vou para a praia mais próxima, no planeta Vênus, desfrutar das chuvas de ácido sulfúrico.
|