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Contos-->O encontro -- 10/06/2002 - 15:20 (charles odevan xavier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O ENCONTRO
Charles Odevan Xavier

No final da palestra do Ciclo de Debates sobre a violência contra a mulher, Fábio se dirigiu a Luís, o palestrante da manhã.
- Bom dia, Dr. Luís Carvalho.
- Bom dia, jovem. Em que posso ajudá-lo?
- Meu nome é Fábio Henrique. Eu sou estudante de Psicologia da Universidade Federal. Estamos fazendo um trabalho na área de Psicologia Forense e gostaria de colher um depoimento seu nessa área.
- Pois não, filho. Mas agora?
A maneira como o velho advogado pronunciou “filho”, produziu uma automática empatia em Fábio.
- Não, Dr. Luís. Apenas queria marcar uma data na sua agenda para colher o seu depoimento. O senhor deve ser um homem ocupado – Fábio mostrou um pequeno gravador.
Luís muito solícito e tocado pelo tom respeitoso e formal do “Dr. Luís”, respondeu:
- Pois por mim, você pode fazer isso ainda hoje. Não poupo esforços para ajudar um acadêmico. Você vai fazer o que agora?
Fábio, surpreso com a simpatia e disponibilidade de Luís, até titubeou.
- Eu, bem...Eu iria para casa almoçar e estudar.
- Pois vamos almoçar. O seu trabalho é uma monografia?
- Não, Dr. Luís. É um trabalho simples, inclusive de equipe.
Luís foi conduzindo Fábio para seu carro.
- Eu fiquei responsável por colher uma parte dos depoimentos. No meu caso com alguns profissionais da área criminal. E os outros divididos entre os depoimentos de criminosos, familiares e vítimas.
Já entrando no carro, Luís perguntou sorridente pela seriedade e o compromisso da equipe na divisão de tarefas.
- Dr. Luís, não é sempre um céu, mas, até certo ponto, nossa equipe é integrada, coesa. Não tenho do que reclamar.
Durante o trajeto, Luís quis saber mais detalhes sobre trabalho, o cotidiano da Faculdade de Psicologia, comentou sobre seus tempos de estudante. No restaurante, Fábio colheu o depoimento seguindo um questionário prévio. Conversaram bastante sobre as alegrias e tristezas da vida acadêmica. Foi realmente um almoço muito agradável, com aquela saudável troca de informações e experiências entre um jovem e um cinqüentão.
No final, por exigência de Luís, trocaram telefones e endereços. Luís demonstrou muito interesse em ver o trabalho concluído e pediu para que o avisasse quando estivesse pronto. E ainda pediu textos atualizados sobre psicologia forense, alegando que sempre era bom se reciclar com as informações novas vindas do mundo acadêmico.
. . .
Depois de quinze dias, Fábio ligou para Luís a noite, conforme o combinado.
Luís atendeu e ficou surpreso pela rapidez da conclusão do trabalho.
- Sim, Dr. Luís. Só faltava o seu depoimento.
- Pois, venha. Traga-o e traga também aqueles textos da área que lhe pedi.
Fábio questionou sobre a inconveniência do horário, de estar perturbando o seu descanso e o da família. Mas Luís tranqüilizou-o, dizendo não haver nenhum empecilho, que não ia fazer nada de importante e que morava sozinho, pois era desquitado. Convencido de que não ia incomodar, Fábio anotou as coordenadas e se dirigiu ao apartamento.
Chegando na residência, Fábio foi recebido com muita cordialidade por Luís, expressa num caloroso e forte aperto de mão, seguido de um sorriso. Luís, ao contrário do último encontro, estava vestido de maneira descontraída com bermuda e camiseta; exibindo um corpo quase atlético, pernas grossas, , uma cobertura de pelos pretos e brancos pelo corpo e aquela barriguinha que tanto atraía Fábio.
Luís perguntou se ele queria beber alguma coisa. Fábio pediu água e ficou admirando a beleza do apartamento, enquanto Luís pegava água na cozinha. A arquitetura funcional, a distribuição harmônica dos móveis produzindo uma agradável sensação de amplitude espacial, a decoração minimalista de quadros e vasos espalhados em pontos estratégicos; compunham um painel que revelava o bom gosto do proprietário. A estante repleta de CDs e um possante e moderno aparelho de som, tocando uma música suave, num volume mediano, refletiam também um bom gosto musical.
Luís trouxe a água de Fábio. Foram para mesa da sala de jantar. Fábio mostrou o trabalho, os textos. Conversaram animadamente sobre isso durante uma hora e meia. Quando o assunto se esgotou, Luís prometeu ler o trabalho com muita atenção.
Fábio comentou a beleza arquitetônica da residência. Luís pediu desculpas, levantou-se para mostrar as dependências.
Fábio impressionou-se pela quantidade de livros na estante do escritório, notando a presença não só de livros técnicos de Direito, mas livros de Literatura, Economia e Filosofia. Percebeu até um Machado de Assis entre eles, mas não houve tempo suficiente para checar todos.
Foram para sala. Um pouco hesitante, Fábio pediu para olhar a coleção de CDs. Luís disse que ficasse à vontade, mas achava que ele não teria como conferir todos.
Fábio encontrou algumas coisas óbvias para a idade do delegado: muita música romântica, trilha sonora de filmes das décadas de 40, 50 e 60, Frank Sinatra, Bossa Nova, Jovem Guarda, Maria Bethânia, Chico Buarque, mas até coisas mais recentes da MPB como Luís Melodia, Angela Rorô, Adriana Calcanhoto, Zizi Possi, Cássia Eller, Zélia Duncam...
Quando Fábio pegou no Cd da Cássia Eller, Luís comentou:
- Eu acho a voz dessa moça privilegiada.
Aquela opinião causou uma sensação agradável em Fábio, desfazendo alguns preconceitos, pois era meio difícil imaginar um delegado de polícia gostando de uma cantora irreverente e andrógina como Cássia Eller.
Por sua vez, Luís ficou espantado em ver um rapaz, jovem como Fábio, conhecer Bossa Nova, Billy Holliday, Dick Farney, Jovem Guarda, Música erudita.
- Gosto, Dr. Luís. São muito melódicos, bons de ouvir. Mas o senhor parece que não gosta muito de Rock?
- Eu tenho algumas coisas do Elvis Presley, Beatles porque eles foram muito regravados pela Jovem Guarda. Mas eu não gosto muito de música barulhenta, o rock pesado. Tenho um filho casado, que tinha até um banda de rock quando era adolescente. A mãe dele ficava doida com o barulho, porque eles chegaram a ensaiar aqui. Eu achava engraçado, eles tocavam um tal de Punk – um vocal berrado que não dava para entender as letras. Ele e os amigos andavam de calças rasgadas e cabelos espetados. Tinham uns papos estranhos, me divertia ouvindo eles conversarem sempre com um tom de revolta. Mas acabou, como toda fase de adolescente. Ele se voltou para o vestibular, tentou Economia, casou e hoje tá perto de se formar.
- Mas tire o “doutor”, o “senhor”. Me chame de você, de Luís, assim você me envelhece menos.
Fábio pôs o dedo na parte dos Beatles. Luís perguntou se ele queria algum emprestado. Fábio confirmou, um pouco receoso. Luís pediu alguma coisa diferente que Fábio tivesse para emprestar.
- Bem, Luís. Eu notei alguns CDs da Maria Bethânia. Eu gosto muito do irmão: o Caetano Veloso e dos tropicalistas.
- Eu também gosto, um amigo meu levou aquele disco que ele gravou só de boleros. É o único disco que eu tenho dele, conheço pouco realmente.
- Eu tenho muita coisa do tropicalismo: o Disco manifesto, Gil, Tom Zé, Gal Costa, Jorge Bem...
- ‘Tropicalismo’ foi aquela fase do pessoal cabeludo, de roupas coloridas, os hyppies, né?
- É. Foi a versão brasileira do Movimento Hyppie, da Contracultura.
- Eu lembro vagamente. Eles foram da minha época, mas eu nunca entendi muito. Você pode explicar um pouco sobre eles?
- Posso tentar. Foi um movimento a nível internacional de revisão de costumes, por isso o nome ‘Contracultura’. De liberação comportamental e sexual. Envolvimento com religiões orientais, meditação, Yoga. Comida natural, macrobiótica. Desvínculo familiar, viajar muito: o drop-out, o largar-se. Viver em comunidades alternativas.
- Mas tinha drogas, também?
- Tinha, não vou negar. Alguns teóricos desse movimento acreditavam que algumas substancias químicas expandiam a consciência. Daí o uso deliberado de maconha, mescalina, LSD...
A conversa estava boa, mas Fábio olhou preocupado para o relógio. Luís, como que adivinhando a preocupação de Fábio, disse-lhe que o deixaria em casa. Fábio se afobou um pouco, achando seu um incômodo. Luís tranqüilizou mais uma vez. Apontou para um Cd raro dos Beatles, oferecendo-o como empréstimo. Fábio tentou recusar receoso, mas acabou aceitando. Prometeu devolvê-lo o mais depressa possível.
Fábio pegou o Cd, ainda hesitante. Prometeu escolher um Cd bem representativo dos tropicalistas e desceu com Luís para garagem. Luís muito prestativo levou Fábio para casa. Fábio ficou pensando, durante o trajeto, na extrema disponibilidade, hospitalidade e gentileza de Luís.
. . .

Fábio ligou para Luís a noite. Identificou-se. Luís atendeu com simpatia. Fábio disse que estava interessado em devolver o Cd dos Beatles, pois o tinha ouvido durante o final de semana.
Luís ficou surpreso e um pouco decepcionado com a velocidade da apreciação do rapaz. Fábio explicou que ele podia estar precisando do Cd. Luís convenceu-o de que não e perguntou se já podia escutar os CDs diferentes que pediu.
Fábio perguntou se ele estava ocupado naquele momento. Luís respondeu que não, que podia vir e trouxesse o Cd tropicalista.
. . .
A campanhia tocou. Luís atendeu com seu aperto de mão quente e caloroso. Perguntou por novidades e pelo Cd que pediu.
Fábio mostrou o Cd Panis et Circensis ou Tropicália (o disco manifesto do movimento tropicalista). Foram para o sofá da sala de estar. Luís aproveitou para colocar o Cd no aparelho. Fábio contou que adorou o Cd ao vivo dos Beatles. Informou que sua equipe tirou média 9 com o trabalho de psicologia forense, do qual Luís participou com um depoimento.
Luís comentou que a notícia era muito boa e que ele devia estar satisfeito com o resultado. Fábio negou estar tão satisfeito assim, porque faltando apenas dois anos para se formar, ainda estava em dúvida entre se especializar em Psicologia Comunitária ou em Psicologia Clínica. Alegando os motivos que o faziam vacilar entre o retorno pessoal apesar da falta de grana de uma, e da profissionalização mercenária de outra.
Luís pareceu entender o dilema de Fábio.
-Você está dividido entre a vocação e a necessidade.
-É exatamente isso, Luís. Eu não sou filho de papai rico para viver de idealismo. Eu tenho de escolher um ramo da psicologia que me sustente. Além disso, eu penso na carreira acadêmica, um mestrado. Esse impasse tem causado uma boa dose de intranqüilidade. E eu não tenho capital para montar um consultório sozinho, caso escolha o ramo clínico.
Luís, dentro de sua maturidade e acostumado com a ansiedade típica dos jovens, aconselhou:
- Fábio não fique sofrendo por antecipação. Ainda faltam dois anos. Então com o tempo, com o fluir dos acontecimentos, você descobrirá naturalmente o que preenche melhor suas expectativas. Você é muito jovem, ainda tem um futuro promissor pela frente.
Luís sondou-o a respeito da Psicologia de Empresas. Fábio disse ter estagiado na área, mas alegou não ter gostado, porque percebeu que os Psicólogos de Recursos Humanos foram criados, tal qual as assistentes sociais, para mascarar os conflitos de classe. E que não se sentiria bem, trabalhando numa empresa sem poder despertar o senso crítico de seus funcionários.
Luís sorriu dizendo:
- Um marxista.
O Cd do Manifesto tropicalista chegou ao fim. E recebeu comentários elogiosos de Luís, que notou a criatividade da mescla entre o melódico e o experimental, dissonante.
Fábio perguntou se Luís tocava algum instrumento, pois demonstrava entender, muito, de música.
- Toco violão clássico e popular. Também arranho um pouco de piano e violino. Depois de estabilizado profissionalmente, fiz o curso de música até a metade. Mas tive de abandonar por causa da delegacia.
Luís levou Fábio até o escritório, onde tinha um violão guardado numa caixa. Luís dedilhou alguma coisa parecida com Villa Lobos. Enquanto isso, Fábio admirava os livros na estante, percebendo o gosto do delegado pelos clássicos: Machado de Assis, José de Alencar, Cervantes, Dante... e a literatura policial: Poe, Agatha Cristhie, Doyle, Dashiel Hammet.
- Você gostou dos livros?
- Sim. Têm muitos clássicos. Eu gosto muito, mas aprecio a Literatura Marginal também.
Luís parou de tocar por causa do termo marginal.
- Marginal? Como assim?
Fábio ficou um pouco constrangido em dar detalhes sobre esse tipo de Literatura com um homem da lei. Mas tratou de explicar, assim mesmo, o “porquê” da estranha designação. Marginal devido aos temas tabus tratados pelos autores: incesto, sadomasoquismo, drogas pesadas, adultério, crimes escabrosos e patológicos, prostituição feminina e masculina, pedofilia, homossexualismo, entre outros. E citou os autores que seguiam esse ramo literário: Henry Miller, Bukowsky, Corso, Kerouac, John Fante, Burroughs, Jean Genet, Gore Vidal, Rimbaud, Baudelaire, Plínio Marcos, Nelson Rodrigues, Rubem Fonseca.
- Eu nunca prestei atenção nestes nomes, mas eu não entendo o motivo de serem rotulados de marginais, porque eu vi incesto em Shakespeare e adultério em Machado de Assis, os quais eu conhecia como escritores clássicos, são marginais também?
Fábio ficou impressionado com o rumo inusitado que a conversa tomou, de repente estava discutindo teoria literária com um homem da polícia e não pôde evitar um sorriso misto de admiração, surpresa e timidez.
O delegado perguntou, intrigado, pelo motivo do sorriso.
Fábio disse que não imaginava que ele gostasse tanto assim de Literatura.
Luís retribuiu o sorriso, dizendo que sempre gostou de ler apesar da origem camponesa.
Fábio falou que se já era difícil rotular e classificar as coisas em Humanidades, imagine, então, no campo da Literatura, um objeto fluido por excelência. Uma tarefa quase impossível, devido ao excesso de subjetividade. E que sempre discutia com os colegas de Letras essas designações pós-modernas: literatura marginal, de colhões, gay, escrita feminina, entre outros termos vagos.
- Você é um menino muito culto, Fábio.
Fábio sorriu mais uma vez envergonhado.
- Você tem um belo sorriso, Luís complementou.
Luís ficou encarando Fábio com um olhar sedutor. Fábio suou frio, porque percebeu uma certa insinuação. Como podia estar se confundindo, permaneceu calado, não gostava de se confiar em códigos não-verbais. E além disso, não tirava da cabeça que se tratava de um homem da polícia, sabia de casos terríveis de amigos envolvidos com policiais.
Luís parece que percebeu o constrangimento e a afobação de Fábio e quase lendo os pensamentos disse:
- Fábio fique à vontade. Eu sou amigo, confie em mim.
O tom confortante da voz seguido de um gesto de carinho (Luís estendeu a mão e apertou a mão do rapaz calorosamente) fizeram Fábio relaxar um pouco.
- Sua mão está gelada, Fábio.
Fábio retribuiu apertando e, num gesto ousado, entrelaçou os seus dedos com os dedos da mão de Luís, que cedeu facilmente. Agora era tudo ou nada: levava um soco ou um beijo, pensou.
Luís suspendeu com firmeza a pequena e delicada mão de Fábio e deu um beijo nela. Fábio retribui com o mesmo gesto. Sentiu o perfume delicioso que exalava da mão grossa e peluda do advogado.
Levantaram, olharam-se de frente com ternura, e Luís, num impulso repentino, deu um abraço forte e quente em Fábio, o qual se abandonou em seus braços, desejando que aquele momento não acabasse.








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