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Contos-->Na próxima parada -- 10/06/2002 - 15:28 (charles odevan xavier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
NA PRÓXIMA PARADA
Charles Odevan Xavier

Muitas vezes tive que me sujeitar a pegar um ou outro coletivo lotado. O que mais me irrita no ônibus lotado é o fato de você não poder se acomodar direito, tendo que pisar ou ser pisado pelos ocupantes. Não há como ser educado, cortês, dentro desses veículos.
Estou num ônibus nesse exato momento, procure imaginar. Noto que ele está semi-vago - Que bom!, pensei eu, antes de perceber ao meu lado, precisamente do lado direito, a existência de uma mulher com uma criança recém-nascida em seus braços. Nisso, me irritei.
A criança era da cor de papelão, olhos castanhos arregalados, cabelos encaracolados ( os poucos existentes). Ela devia ser magérrima, pois estava no colo de uma infeliz, claramente pobre, vestida com molambos fedorentos.
Apesar disso, a criança não parava de observar o meu rosto e de abrir sua horrenda boca num sorriso estúpido para mim ( como se tivesse motivo para rir!). Uma incrível e estranha vontade de retribuir o olhar me inundou a mente marteladoramente. Acabo fazendo. Tanto que sua mãe, vó ou tia, não consegue se conter e pergunta: - O senhor mora por aqui? Aquela pergunta me ofendeu profundamente: como uma desconhecida e pobre tem o atrevimento de violar o meu direito de ir e vir? Tratei de responder num tom glacial:- Não, minha senhora. Ela, parecendo insistir: - Você é casado? Quase perdi o fôlego com a insolência do “você”, como se tivesse já conquistado algum tipo de intimidade. Procurei responder num tom mais seco que antes, com intento de encerrar “aquilo” que poderia ser um monótono e improdutivo diálogo:- Não, minha senhora. A estúpida não entendeu a intenção e continuou a fazer suas perguntas bobas e eu a respondê-las sempre com a mesma frase: - Não, minha senhora. Dando sempre ênfase aos “não”. Depois de um certo período ( quando se esgota qualquer possibilidade de se fazer perguntas tolas, como é de costume do homem do povo) ela encerrou seu diálogo ( se é que houve diálogo em algum momento, pois a mulher falava pelos cotovelos).
Aliviado, voltei a olhar a mísera quantidade de carne viva em seu colo, rindo provocante para mim. Fiquei nervoso e minhas mãos começaram a tremer. A velha estúpida percebeu e aproveitou para soltar mais uma de suas perguntas cretinas: - O senhor está sentindo alguma coisa?, num tom de voz tão fingidamente piedoso que tive de controlar um impulso repentino de vômito, mordendo a língua. Respondi a mesma frase intransigente de antes. Satisfeita em sua curiosidade superficial e ociosa, calou-se e voltou a conversar com sua filha, neta ou sobrinha, mesmo sabendo que daquela criatura não obteria nenhuma resposta.
Procurei distrair-me olhando os carros importados que passavam velozes, contrastando com a vagareza intolerável daquele ônibus velho e fedorento. Mas de vez em quando flagrava-me olhando aquela inútil criaturinha ao meu lado, que não parava de sorrir idiota. Olhava o relógio, mexia nos bolsos, lia o conteúdo de alguma placa comercial, tudo o que pudesse desviar minha atenção daquela menina. Por que fitava o rosto daquela criança, o que tinha ali além de infância?
Coloquei a cabeça na janela pra respirar um ar menos “contaminado” de suor, cigarro , pobreza e para tentar aliviar meus ouvidos daquela música que o motorista selecionara no rádio( num volume tão alto que mal dava para saber o que o cantor estava dizendo).
A cada parada do coletivo, o veículo se entupia de mais e mais pessoas assalariadas ( pessoas? ) e em cada parada minha pressão sangüínea aumentava, ameaçando explodir as veias. Pessoas entrando, a cabeça girando vertiginosamente numa avalanche de ruídos e imagens confusas. Todas essas sensações desagradáveis deviam estar se desenhando no meu rosto, pois a velha percebeu, arregalando os olhos sobre mim de maneira brusca e desconfiada. Excelente! Com certeza, ela iria se retirar dali procurando um lugar mais seguro. Não faltariam distintos cidadãos que cedessem seus lugares para uma velha, ainda mais com uma criança nos braços. Mas nada. A sujeita nem sequer se mexeu na cadeira. E a menina rindo, ainda por cima. Não suportando mais a tortura psicológica daquelas duas, fiz uma pergunta evidenciadora de minhas intenções: - O que as duas criaturas ao meu lado desejam de mim? Chamando atenção não só da velha mas dos passageiros em pé, acordando-os do marasmo de suas vidas medíocres. Devo ter falado alto, acho.
Não responderam verbalmente à minha provocação, permaneceram indiferentes. O cinismo me descontrolou completamente. Abri a capanga, tirei minha beretta de estimação. Mirei-a no rosto da pequena infeliz. A velha, assustada, tentou sair. Atirei. A cabecinha espocou-se sangrenta num grito. Tudo foi muito rápido depois daí. Os populares se voltaram contra mim ( lógico: afinal, quem é que parecia ser o agressor ali?). Desarmaram-me na base de pontapés e socos. Pisaram-me no estômago, fazendo evacuar nas calças. Vomitei com o odor daqueles homens sujos me rasgando as vestes.
No dia seguinte, parei numa banca de revistas e reconheci meu corpo na manchete do jornal: “MONSTRO MATA CRIANÇA NUM ÔNIBUS E É LINCHADO PELA MASSA ENFURECIDA”.








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