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Contos-->O BÊBADO E O CEMITÉRIO -- 14/06/2002 - 08:08 (Vânia Ramos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


O BÊBADO E O CEMITÉRIO


O dia mal amanhecera, mostrando um pequeno clarão por entre as gretas do telhado e a vizinhança já começava a sentir os incômodos que provocavam as atividades de João do Peixe. Com grande gritaria acorda os dois filhos mais velhos para ajudá-lo com as tarefas de escolher os peixes no ponto de entrega da velha estação. De lá, seguiria rua abaixo, rua acima, a gritar para a freguesia:

- Ói o peixe! Aproveite que hoje tá fresquinho.

- Vai querer hoje comadre? Só precisa pagar no final do mês.

Antes de começar sua caminhada, selecionava a mercadoria de melhor qualidade para o seu negócio e despachava os filhos de volta para casa com uma bolsa cheia de peixes miúdos que iriam servir de alimento para a família e, com os quais, dona Amélia fazia sempre um alguidar de moqueca bem temperada, aproveitando o caldo para preparar um incomparável pirão. Na hora do almoço, todos sentavam em círculo no chão da sala e era então servido o famoso pirão de peixe das terças-feiras em um recipiente semelhante a uma bacia, onde mãe e filhos dividiam espaço para saborear o apetitoso prato. Aquela rotina semanal deixava impressionadas algumas pessoas da redondeza, especialmente Zequinha, um garoto de maiores posses que tinha amizade com os filhos de João do Peixe e que, admirado com aquele quadro indescritível, rondava a casa dos amigos sempre na faixa do meio-dia, com esperança de ser convidado para fazer parte daquela reunião e provar da refeição que era ingerida com tanto gosto.

O sol já começava a declinar e nada de João do Peixe retornar de sua caminhada. Tinha freguesia certa: dona Tonha, dona Teca, Almerinda, seu Zé do Bar e tantas outras, o que não justificava a sua demora, mesmo porque, a cidade era bem pequena. Puxando uma prosa em cada ponto ia passando o tempo sem se dar conta. Em seu Zé do Bar, geralmente sua última parada, proseava, tomava uns goles, vendia o peixe fiado e fiado deixava sempre a sua conta. Não tinha pressa, não usava relógio; na sua simplicidade sentia-se realizado só em cumprir sua tarefa: cesto vazio, alguns trocados no bolso e a sensação do dever cumprido.

Às quatro horas da tarde, estômago vazio, idéias embaralhadas pela aguardente o faziam ver figuras indecifráveis a dançar em frente aos seus olhos embaçados. Depressões, frustrações, saudade, se misturavam e o empurravam para as lamentações e o pranto. João do Peixe, trôpego, segue para a Rua de Cima, em direção à Matriz, a apenas duas quadras do bar; de repente, sente imensa necessidade de rezar por seus pais. A subida exige extremo esforço, mas com sacrifício atinge a calçada da igreja e nela se esbarra, vai ao chão; não conseguindo se reerguer, balbucia algumas palavras sem nexo e cai num sono profundo. Alguns transeuntes o observam à distância e comentam entre si:

- Lá está de novo o seu João do Peixe, coitado, não seria bom avisar à família?

- Não, eles já estão acostumados, toda terça-feira é dia do peixe e do porre!

Um vira-lata aparece, se aproxima; examina-o do pé à cabeça, fareja a sua boca, o hálito estragado pela cachaça e, em respeito ao ser humano o deixa repousar em paz.

Passaram-se 40 minutos, dona Mercedes abre as portas da Matriz para cuidar dos preparativos para a missa das seis. Espana bancos, dá polimento nos cálices, nas imagens; organiza o altar e, em seguida, se dirige à calçada e passa a varrer as folhas secas e outros lixos levados pelo vento ou mesmo pelo povo. Com cuidado vai limpando ao redor de João do Peixe e por um instante voa nos pensamentos “ o que leva um ser humano à autodestruição, a cometer atos que o expõem ao ridículo?” Realmente, a posição em que se encontrava João do Peixe naquele momento era digna de pena: sua figura franzina, mal vestida, descabelada, exalando um odor desagradável – misto de almíscar de marisco com cheiro de aguardente – lembrava um indigente a quem a sorte há muito tinha esquecido. Perdida nas suas divagações, dona Mercedes tropeça no cesto ao lado do debilitado ébrio, perdendo totalmente o equilíbrio e caindo sobre aquele corpo inerte, fazendo-o despertar de um torpor de quase duas horas. Acreditando estar diante da própria mãe, João do Peixe a envolve ansioso:

- Ô mãe, você demorou muito... Por que me abandonou?

Assustada, dona Mercedes consegue se soltar daquele abraço indesejável e embaraçoso e foge em busca de ajuda. João do Peixe delira, tenta se erguer, segura-se numa das colunas da igreja e grita desesperado:

- Eu quero minha mãe!...

Sentindo-se novamente desamparado foi sacudido por uma crise de choro incontrolável que chamou a atenção de alguns moradores da proximidade. Na tentativa de conduzi-lo de volta à realidade, uns lhe balançavam fortemente, outros lhe banhavam a cabeça com água fria. Em meio ao tumulto, Padre Emídio, sabedor do ocorrido, se aproxima e fala paternalmente:

- Meu filho, sua mãe já não faz parte deste mundo. Entre, vamos rezar por ela.

De início, nada lhe convencia daquela perda irreparável, só após muita argumentação, já dando alguns sinais de lucidez, João do Peixe se levanta ainda cambaleante e anuncia que irá ao cemitério fazer uma visita à sua mãe.

- É seu Padre, minha mãe morreu... e meu pai também, só de desgosto.

Já era noite fechada quando passou novamente em frente ao bar de seu Zé, onde seu Osmundo, um simpático senhor aposentado que preenchia o tempo divertindo os conterrâneos com mirabolantes estórias sobre a sua juventude, tragava seu tradicional cachimbo e provava alguns goles da pura aguardente.

- João do Peixe, aonde vai a estas horas?

Ao que o outro respondeu, demonstrando certo desequilíbrio físico e mental:

- Tô indo no cemitério rezar pra minha mãe!


O percurso até o cemitério causava medo: completamente fora do perímetro urbano, com árvores seculares às margens formando estranhas sombras na passagem. A lua, que estava na fase crescente, amenizava um pouco aquela visão pavorosa. João do Peixe, ainda embebido nas suas idéias confusas, andando o mais rápido que podia misturava reza e lamentação. O cemitério estava quase em trevas e, para completar, não tinha levado velas. Em suave escuridão percorria mausoléus e outras sepulturas, apalpando aqui e ali em busca da última morada da família. Indeciso, resolveu adotar qualquer uma e começou a sua oração truncada em voz alta. No intervalo entre orações e queixas, já mais sóbrio, começa a se dar conta do ato impensado.

Em certo momento as nuvens vão se fechando, encobrindo totalmente os vestígios da lua; a folhagem se agita num barulho indecifrável, ameaçando chuva. João do Peixe, um tanto apreensivo, olha em todas as direções e, tendo a impressão de que ouvira vozes indaga:

- Tem alguém aí?

E uma voz horripilante soou bem clara naquele lugar sinistro:

- Silêncio... OS MORTOS QUEREM PAZ!...

João do Peixe sentiu faltar-lhe as pernas e, na agonia para fugir, se metia cada vez mais por entre as covas mal formadas. Batia-lhe o desespero, se esbarrava, caía e seguia aos tropeços. Levou alguns minutos que pareciam a própria eternidade até encontrar a saída daquele labirinto macabro, permanecendo nos seus ouvidos um eco ensurdecedor: OS MORTOS QUEREM PAZ!... Livre do ambiente que representava o seu cárcere, mas ainda se sentindo objeto de perseguição, partiu em disparada pelas ruas, aos berros:

- Eu vi um fantasma... Eu vi um fantasma!...

Numa cidade pacata, sem nenhum registro de cenas de assombração, adultos e crianças se aglomeravam nas calçadas diante daquela gritaria. Todos queriam detalhes do acontecimento e, entre distraídos e embasbacados com a história, nem perceberam a ausência de seu Osmundo, que surgiu em seguida, sorrateiramente, vindo da direção do cemitério.

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