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Contos-->Capitulo I -- 02/01/2000 - 09:55 (Umberto Prado Bello) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Este é o capitulo I do meu livro, breve os outros.


Vê-se que o trem está atrasado em meia hora. Há tempos não se via uma demora desta. Ninguém menos afoito espera. A ultima vez foi a trinta anos, muito longe na memória, mas que numa hora como essa vem a calhar. Um carro foi parar bem no meio da ferrovia, sobre os trilhos, por pouco não acontece a desgraça, e não haveria trem nem gente, nem ninguém para contar o fato. Mas foi a muito tempo e as cabeças mais novas estão frescas o bastante para se lembrar, e as mais velhas, já aqui algumas nem vivem mais. Esse é o fato; o trem está atrasado em meia hora e já começa a gente a se preocupar. Alguns nem debandaram, aguardam fincados no chão o soar do apito. Outros sentam e contam histórias, comem vento, assobiam musica e ao longe vão os meninos correndo e empinando pipa. Ali defronte o velho descansa escorado numa viga. Vigia o tempo e se sente vigiado. Com sofreguidão sente a aragem seca, o tempo seco, o dia seco e com o canto da boca cospe para umidificar tudo aquilo. Mas o cuspe se perde antes de tocar o chão; a inutilidade da vida contra a braveza da morte. Com certeza o velho não pensou isso e se pensou o fez a muito tempo.
Há aqueles que vão contando as horas e essas são intermináveis, uma seguindo as outras num precipício sem. Olhar e olhar o relógio tantas vezes dá a sensação de que os ponteiros não se moveram, e se moveram, foi um passo a frente e dois para trás. De longe a lagoa parece muito mais bela. Logo virá a lua para clareá-la. A lagoa com sua águas imóveis nem sentem que o atraso do trem é a agonia de quem espera. Com certeza aquela mulher deixou os filhos em casa, as panelas no fogo e veio receber não sei lá o que. Talvez seja o marido, ou alguma mensagem distante, uma carta que seja. Talvez venha só por vir, só por gostar do barulho do trem, de vê-lo soltar fumaça e chegar apitando. Sabe-se lá o que, mais veio. Aquele baleiro vende suas balas e nem se preocupa com o atraso, acha-o melhor, vende mais e se há crianças melhor ainda.
Por detrás do monte chegou a anunciação. Nuvens pretas, encardidas e pesadas. Começou logo com uns pingos ali, outros acolá, mas a essa gente não engana. Sabem que logo depois virá o temporal, que nuvens que vem dos montes só podem trazer a desgraça. Nuvens carregadas, cheiro de barro. Vem o vento bravo, o trem não chega. Dana-se a correr alguns a procura de abrigo. O trem não chega pensa o velho, pensa a mulher, pensam todos. E de novo um novo vento bravo vem sacudir as telhas, arriba as saias menos atentas, carrega lá uns doces e balas mal seguros sobre o tabuleiro. Carrega a paz de esperar um trem que teima em não chegar. Aos poucos as nuvens vem comendo lugar. A lagoa já não é mais tão calma. O vento agita e faz mover a água contra a areia que já não luta mais e se deixa engolir. O cheiro pesado de barro se vai e fica apenas um cheiro que é de nada. De água misturada com ar e terra e violência. O cheiro carregado da natureza movendo-se contra a própria natureza.
Logo depois da terceira curva o trem apitou e apitou de novo. Uma nu-vem de cabecinhas se movimentou contra chuva e todas ao mesmo tempo olharam para a solidão parada da curva que não se via. Alguns sorrisos apare-ceram. Poucos e acabrunhados sorrisos. Sorrisos molhados, amarelos, resseca-dos e de todos os tipos. Vinha distante o café com pão bolacha não. Calmo e lento como se dispusesse da eternidade. Vinha vencendo a chuva, ou a chuva é que era vencida por ele, que se movia sem ser dar conta do adversário.
O velho acendeu um cigarro. Tragou a fumaça com paciência e resi-gnação. O trem apitava, dava para ver a fumaça quase fraca, dispersa às vezes por rajadas de ventos. Um outro começou a tocar o acordeão. Notas frias que iam impelidas pelo vento dar boas-vindas àquele que bem conhecia esse acordeão e o seu tocador. Agora a mulher se arruma, passa batom nos lábios e ajeita os cabelos. Enrubesce as faces para que o outro não saiba que ela esteve aflita com a separação e que empalideceu de saudade. Pobres dessas mulheres, que choram por seus homens nas estações quando os trens os levam, e que vêm ficar a sorrir quando estes retornam. Nunca se sabe o que levam no recôndito da alma, o que as faz chorar e sorrir.
Finalmente a chuva resolveu recuar, deixando apenas uns poucos pin-gos ralos de recordação. As crianças, que nem um pouco se cansaram de Ter esperado, puderam brincar livremente. Logo o barro ficou cheio de pegadas e não demorou muito para que as mães mais afoitas terminassem com a brinca-deira, a custo de safanões, beliscões e puxões de orelhas as crianças tiveram que resignar-se com a falta de brandura e foram elas esperar afoitas a intermi-nável viagem do trem. Pobre e triste fim para elas que não careciam ser tão rudemente incorporadas às ações dos mais adultos. Melhor era deixá-las livres para poderem ser crianças enquanto podiam.
Alguém logo viu a aproximação do trem. Logo o Adamastor, que en-xerga tão mal, foi o privilegiado e viu a máquina rodear a última curva e num último suspiro, que bem podia ser o último fôlego retirado do fundo das entranhas, ou do fundo das caldeiras, melhor dizendo, veio serpenteando como uma grande cobra de ferro, soltando fumaça pela boca. Há muito havia anoite-cido. O grande breu da estação foi vencido pelas fracas lâmpadas que tenta-vam iluminar em vão o conjunto tomado pela escuridão. O velhinho desdenta-do sorria como quem carrega na boca todos os preciosos dentes. O que espera e o que lhe afligi. Assim que viu o trem sua imagem se transformou, reviveu por uns segundos a força da adolescência e pôs-se a caminhar furtivamente entre as pessoas, carregando em si o segredo de sua espera. Quem pode esperar um dia sem se afligir espera uma semana, um mês um ano, mas nada dói mais do que esperar meia hora por um trem que não chega, mesmo saben-do que chegará. E quando ele para e ouve-se o tssssiiii que é o ultimo fôlego e o ultimo aviso, sabe-se que nessa hora dói mais o coração e impacienta-se muito mais a cabeça. Que as pessoas que vão descendo lentamente também esperam, mas umas quanto as outras não sabem o que passa. O primeiro que aponta o nariz na porta enxerga extasiado uma turba que não o espera, conso-la-se e sai retraído entre a multidão. Descem outros e mais outros, e quase que infinitamente vão descendo gentes de todos os tipos. Aquele velhinho agora abraça uma menina mais nova, talvez sua filha, talvez uma coisa qualquer sua, não se sabe. Beija-a, abraça-a e saem da estação contando fatos, relembrando histórias e nem se lembram da demora do trem, da aflição da espera, porque tudo foi em vão e tudo agora cabe num único sorriso, num único beijo, nada mais vale as recordações que guardavam na cabeça. Não servem para mais nada, tudo agora é uma só realidade. A mulher abraça seu marido, beija-o com uma força descomunal e se perdem num abraço que antes provocaria a morte, mas que agora abranda a solidão.
Quantos presentes saem do interior desse trem. Milhares e diversos, de todos os tipos e de toda a cor. E vão saindo com a velocidade que não é mesma com que entraram. As crianças esperam impacientes a sua vez e rodeiam as malas, as coisas, os presentes e vão sentindo que é em vão se afligirem tanto que a vida de aguardar, e sabem que só abrirão os pacotes em casa, depois de ouvirem histórias que em nada as agrada. Aos poucos a estação vai se esvaziando. Daqui a pouco não ouviremos mais nem grito, nem um suspiro, nem um nada. Estará vazia e silenciosa a estação. É o ultimo trem do ano.
A cabeleireira Mabel olhou com atenção todas as coisas que a rodeava e não pode reconhecer nenhuma delas. Estava tudo tão modificado e ao mesmo tempo tão igual, que por uns instantes pensou ter chegado na cidade errada. Soprava um vento frio e chovia serenamente. Pousou os olhos sobre uma placa de publicidade, sobre os banco da estação, sobre a noite para e sobre as luzes fugidias das casas ao longe. Enfim reconheceu, era o mesmo lugar de sempre, alguns anos foram suficientes para disfarçá-lo, mas não foram suficientes para transformá-lo. Bem vinda a vida, pensou consigo mesma. Pegou a bagagem que lhe pertencia e a arrastou até o ponto de ônibus, onde tomaria uma condução. Olhava com atenção as novidades. A cidade havia crescido. Havia casa em quase todos os cantos, luzeszinhas dispersas como vaga-lumes na escuridão. Antes, ali, havia uma padaria, agora há uma casa de prazeres. Mais a frente nem mesmo havia ruas, agora as há em intensi-dade, que chegam a dar a impressão de que são mais que os próprios homens. A hora certa chega o ônibus, mas não é este, antes era, agora, como a cidade cresceu, está linha passa em outro bairro, é necessário ter que esperar mais um pouco. Passam carros, ciclistas e transeuntes apresados. Construíram um calçadão defronte ao mar. Aos poucos as luzes dos postes foram revelando a beleza do mar, se bem que hoje as águas estão mais revoltas. A lagoa continua escura. A lagoa, lembrou-se. Deixou um pouco o ponto de ônibus e foi sentir o cheiro fresco da água. Garoava, Mabel não se importava, queria tocar a água com a mão mas estava muito escuro, era muito longe. Logo o ônibus buzinou e saiu feliz, um pouco saudosista, carregando uma recordação não muito distante.
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