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Contos-->O Paletó Azeviche -- 27/06/2002 - 17:04 (f. mendes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
—Olha o Homem do Saco! —grita uma gorda da janela para as crianças na rua.
Onde?!
—Juliana se você não vier comer, mando o homem te levar.
Onde?!
—Ele vem vindo! —a criançada grita alvoroçada.
Onde?!
Sempre que saio na rua as crianças me rodeiam, outras tem medo de mim e correm, outras riem, me confundem com o palhaço do circo que nunca foram, gordo de braços e pernas finas e barba desgrenhada. Crianças estúpidas. Rindo do quê? Moram em favelas e tem a barriga cheia de vermes.
Cheguei em casa e ela estava toda destruída, geladeira no chão e marca de quadro na parede. Fiquei com raiva e bati na Vilma, minha mulher.
—Quem destruiu a casa?
—Você.— respondeu Vilma, sóbria, eu não gostava muito de bater nela, porque ela gostava.
—Eu?! Só porque bebo você acha que sou bobo?
—De quem é esse paletó? — Vilma mexendo nos embrulhos que eu trazia da feira.
—Ganhei de um doutor.
—Se você estiver saindo com aquela vaca do Clube novamente eu te mato, ta ouvindo? Esses seus chiliques não chegam nem perto do que sou capaz!
Os gritos de Vilma acordaram o guri, começou a chorar, tinha apenas um ano, especialista em cair de cabeça, só chorava e cagava, comia também, para cagar depois é claro.
Vesti o paletó e deixei Vilma praguejando. Tinha ganhado o paletó de um cliente. O doutor parou em frente a minha barraca, insisti para que experimentasse a jaca, vi logo que nunca tinha visto ou saboreado, olhava para fruta como se aquilo fosse um ET, insisti mais um pouco e o doutor se lambuzou todo, implorei para que me deixasse limpa-lo e ele com dó ou raiva me deu o paletó.
Eu andava agora pelas ruas da favela.
—Olha o prefeito! — grita uma velha louca da janela.
Onde?! Continuo andando. As crianças não mais correm atrás de mim. Me olham com respeito. As pessoas dos botecos. Os olheiros do tráfico começam a se movimentar.
Uma gorda louca saiu de um barraco e me puxou pelo braço:
—Me ajude pelo amor de Deus! — tentei me desvencilhar, mas quando vi já estava dentro do barraco frente um senhor com uma faca na mão.
—Ele quer matar o irmão. Diga pra ele não fazer isso! —gritava a gorda no meu ouvido. O homem me encarava empunhando uma faca velha enferrujada, tremia como que possuído, o homem. O outro devia estar trancado no banheiro. Olhei para a porta, calculei, se eu saísse correndo certamente ele me apunhalava pelas costas antes mesmo de chegar à rua. Pensei em dizer alguma coisa.
—Diga pra ele não fazer isso. Diga pra ele que matar é pecado mortal. —disse a gorda agarrada no meu braço, ela fedia, cheirava a sexo. Provavelmente o marido chegou do trabalho e pegou a mulher trepando com o irmão.
—Diga seu pastor! —insistia a gorda. Eu ia dizer a ela que eu não era pastor porra nenhuma e que o marido dela não devia matar apenas o irmão mas ela também. Quando o homem após olhar pro meu paletó, jogou a faca no chão e ajoelhou-se diante dos meus pés.
—Me perdoe, Senhor! Perdoe-me! Vou me converter! Sou um pecador!
Estavam todos no chão dizendo Aleluia, aproveitei para fugir. Sai correndo meio trôpego pela rua esburacada de terra e esbarrei num camburão da policia. Na verdade havia vários. Uma tropa de policiais. O que estava acontecendo?!
—Ei, olha pra onde anda, sujeito!
—Desculpe.
—Ei, espera ai.
—Eu ?!
—Fica paradinho ai —ordenou o policial, ele não usava uniforme, devia ser importante, um dos chefões, levantei as mãos, não sei por que fiz isso, ele nem tinha mandado, mas foi instintivo.
—Abaixa as mãos, homem. — o policial estranhamente me abraçou, olhou pro meu paletó, deu uns tapinhas nas minhas costas — Velho Ferrera, eu nem acredito! — ainda abraçados ele me levou até um boteco ali do lado, cercado de policiais.
—Ainda bebe cerveja?
Fiz sim com a cabeça.
—Filhas das putas! Traficantes filhas das putas! Eles matam policial agora. Não tem mais medo. Filhas das putas. — o homem do bar trouxe uma garrafa, ele encheu dois copos. Eu ia dizer pro policial que eu não conhecia nenhum Ferrera, mas o policial estava tão irado que achei melhor ficar calado. —Agora é assim, eles descem do morro jogam bomba nas nossas delegacias. E quando agente vêm aqui pra pega-los eles se escondem como freirinhas. Filhas das putas. No seu tempo é que era bom. Policial era respeitado. Todo mundo tinha medo. Hoje eles estão cagando e andando. E ai? O que você esta fazendo por essas bandas? Imagino, não é nada fácil. Ganhamos uma merda de salário. Fico imaginando você que é aposentado. Grande Ferrera...—fez uma cara de que queria me fazer uma confissão —Eu também costumo freqüentar estas bandas, mas não pra correr atrás de traficante, se é que você me entende. Só vim hoje com a cavalaria porque o governador esta pegando no meu pé, sabe como é? O que me interessa aqui mesmo é uma mulata espetacular que estou comendo, ela é porta bandeira, samba que é uma beleza, subo aqui todo dia pra comer essa mulata e ninguém nunca me vê. — ele soltou uma gargalhada feia, depois me encarou —Eu vou contar pra você como faço isso, vou contar só porque você é o Ferrerinha, e porque, você sabe, sem querer ofender, você é velho e não vai querer se meter a besta com a minha mulata — ele soltou outra gargalhada, desta vez também ri.
A cavalaria foi embora, como disse o policial, e depois de tomar a cerveja, continuei a descer o morro, eu devia voltar pra casa, mas eu sentia muito mais vontade de continuar, de estar dentro daquele paletó cor de azeviche, eu pensava tudo isso, o gosto da cerveja ainda na boca, das boas, quando um pivete encostou um cano nas minhas costas.
—Ai, vovô. Vamos dar uma voltinha?
Do nada apareceu um carro, o negrinho que devia ter uns treze anos, me empurrou para dentro do carro com a força de um pugilista. Botaram um saco preto fedorento na minha cabeça, e depois de alguns minutos o carro parou, devíamos estar dentro da favela ainda. Descemos do carro. Ainda com o saco na cabeça, me dirigiam por dentro da casa, o que eu supunha ser uma casa, portas e escadas. Me amarraram numa cadeira e tiraram o saco da minha cabeça. E o que vi não tinha como descrever, o brilho, o contraste de luzes e imagens paradisíacas, a mais bela vista do Rio de Janeiro. Eu estava na sacada de um daqueles barracos de dois ou três andares, lá no pico do morro, eu estava ansioso do que iria acontecer e ao mesmo tempo anestesiado diante de tão bela visão.
— Agente já estava esperando por você. —eles falavam pelas minhas costas, não sabia quantos eram. — Agente aqui não acredita em profecia, só em Deus, a gente já esperava por você. Cedo ou tarde você ia aparecer assim todo de preto. Outros como você já apareceram em outros lugares e a gente sabia que um dia você ia aparecer por aqui. Ta tudo escrito na Bíblia. Agente já estava preparado. Jesus foi levado ao deserto para ser testado pelo diabo. O diabo o levou à Cidade Santa, colocou ele sobre o ponto mais alto do templo e disse, se és filho de Deus, atira-te abaixo, porque está escrito, aos seus anjos ordenará a teu respeito que te guardem e eles te sustentaram nas tuas mãos. Respondeu-lhe Jesus, também está escrito, não tentarás o Senhor, teu Deus. Levou-o ainda o diabo a um monte muito mais alto, mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a glória deles e lhe disse, tudo isto te darei se, prostrado, me adorares. Então, Jesus lhe ordenou, retira-te, Satanás, porque está escrito, ao Senhor, teu Deus, adorarás, e só a ele darás culto. Com isto, o deixou o diabo, e eis que vieram anjos e o serviram. Em todas as favelas que você apareceu, neguinho nem quis saber, meteram chumbo em você, nem quiseram saber a mensagem que você trazia. Chegam e matam mesmo, meu irmão. Dizem que se não for assim a favela inteira cai em desgraça. Mas a favela aqui é minha, por isso decidi arriscar. Como eu disse agente aqui só acredita em Deus. Queremos ouvir a sua mensagem. —empurraram a cadeira um pouco mais para frente da sacada, não tinha parapeito, agora a minha visão, um monte de barracos debaixo dos meus pés, não era nem um pouco maravilhosa. — Agente não é supersticioso, ta ligado?, mas também não é burro. Agente só não vai dar um fim em você, vovô, se a sua mensagem for o do messias.
—Espera ai! Não precisa empurrar a cadeira. Eu to cagando pra profecia de vocês, Jesus e o caralho. Ta todo mundo doido? O que esta acontecendo? Um maluco quase me meteu uma faca nas costas porque o irmão estava trepando com a mulher dele. Um policial de merda, mau hálito desgraçado, me confundiu com um tal de Ferrerinha. Agora vocês. Puta que pariu!
—Derruba o Vovô.
—Espera ai! Caralho! O policial ta comendo a mulher de vocês!
—O que foi que você disse, vovô?! — Um deles me puxou para dentro com violência, agora eu podia ver todos eles, eram cinco, um bando de molecada.
—O policial me disse que ta comendo uma mulata daqui da favela, disse que sobe todos os dias.
—Ele está mentindo, Landureza.
Eu já tinha ouvido falar do Landureza, o dono do morro, mas eu o imaginava mais forte, mais preto, ele não era da favela.
—Agente viu você de trela com aquele tira. Eu sou o olheiro dessa porra há anos e nunca vi aquele policial passeado por aqui. Ta na cara que ele esta mentindo, Landureza. Quer salvar o próprio coro. Deixa eu matar esse puto! Cumprir logo com essa profecia. Deixa eu matar esse puto!
—Cala a boca, porra! Deixa o velho falar. — o Landureza deu um esporro no pivete, que era o mais ansioso. — Fala ai, velho.
—O policial me contou como faz pra subir aqui sem ser visto. O tira deve estar muito fissurado na mulata porta bandeira. Ele disse que tem uma caverna nesse morro. Eu não entendo muito de caverna, mas ele disse que a caverna começa no inicio do morro, lá pras bandas daquela praia deserta e termina aqui em cima, atrás da casa da moça. Ele disse que nem a policia conhece esse esconderijo e nem vocês traficantes. Disse que só contou pra mim, porque eu era o Ferrera.
—E quem é você, Ferrera?
—Eu não sou o Ferrera, porra nenhuma. O policial achou que eu fosse tira.
—Vamos agora pegar esse puto.
—Mas Landureza....
Landureza pegou o pivete pelo pescoço:
—Nenhum policial safado sobe aqui e trepa com a minha nega, ta ouvindo?
—E o vovô? —disse o pivete, olhando pra mim, amarrado como um peru de véspera.
Landureza tirou uma pequena faca da bainha que trazia sob o paletó e aproximou-se de mim. O rosto inescrutável e duro, com uma palidez de boneco:
—Que terno é esse?
—É Italiano.
—Foi o que eu pensei.
Ele sorriu. Sorri de volta.


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