Ler é enxergar com o espírito realidades vividas em diferentes experiências concretas de lutas, conquistas, derrotas. É perceber as vontades por detrás dessas ações que foram se transformando em vozes que cantam, risos inebriantes, lágrimas consternadoras.
O mundo do texto é uma espécie de reprodução desse movimento da sociedade construída ao longo dos tempos. Esse mundo textualizado é uma espécie de representação daquilo que foi a vida ativa dos homens na sociedade, agora configurada em linguagem escrita, sob códigos instituídos dentro do mesmo movimento que faz a vida ser ação.
O texto é um fenômeno social igual a todas as demais realizações humanas. E, por isso mesmo, sua efetivação depende de uma diversidade de contribuições que passam pela formação acadêmica do autor, pelo campo cultural que o envolve, sem contar com todo o procedimento técnico de um processo de produção gráfica: edição, revisão, impressão.
É nesse sentido que se pode afirmar que um texto não pertence à esfera exclusiva de uma subjetividade autônoma do autor, tanto que, na leitura de um texto o que se busca não é o autor, mas aquilo que se falou: o mundo revelado em acontecimentos e significados. Por isso mesmo, o texto se sustenta não mais no autor, mas no seu valor de verdade, na sua pretensão de atingir a realidade. Esse mundo textualizado é agora visto por uma outra experiência, a do leitor, outra subjetividade que inclui na leitura outras questões não pensadas pelo autor. É em razão disso que os textos publicados saem do domínio particular, ganham autonomia e se tornam patrimônio público, podendo ser denegados, citados, repetidos, erigidos como modelo.
O que sobressai desse procedimento de construção de um mundo textualizado é a existência de uma linguagem original em forma de sistemas de regras e sinais orientadores das ações, marcos dos enlaçamentos das vontades e dos reconhecimentos dos pares, onde cada gesto tem seu significado e é compreendido pelo outro. Esse dado preexistente da linguagem, contudo, somente ganha funcionalidade com o discurso, essa expressão comunicativa que acrescenta a essa linguagem seu caráter de evento. No discurso, a linguagem se efetua como evento e significação, ganhando, portando, temporalidade e possibilitando a projeção de um mundo.
Na lembrança de que a palavra oral facilmente se esvaece, o arranjo que se encontrou para se resolver essa dificuldade foi a escrita. Com esse recurso do registro escrito, o discurso foi colocado ao abrigo da destruição, funcionando como memória de um tempo anterior, possibilitando ampliar o alcance de sua comunicação por muito mais tempo. O texto, desse modo, é a efetuação do discurso e sua proteção, mas, em face de sua dimensão codificada, ele se coloca ao leitor como fenômeno a ser compreendido e, à semelhança da linguagem, é, também, pura significação. O livro, assim, é a significação de um tempo posto à interpretação do leitor e, como tal, código a ser decifrado. Em síntese, textualizar é codificar a realidade - a vida ativa dos homens - e ler é decodificar a narrativa a partir das novas experiências vividas pelo leitor.
É dessa base de discussão que o texto de história surge como uma narrativa comprometida com os diversos documentos que se formaram no decurso das atividades sociais dos homens de todos os tempos. Esses documentos que vêm de um tempo anterior, codificados pelos interesses daquele tempo, escondem mais do que revelam as intrigas sociais de então, mas são portas de entradas ao passado, sem o que o historiador nada poderia fazer. A função do historiador é essa mesma, a de decodificar o documento, compreender o que ele representa como significação para a sociedade que o instituiu. Com essa importância, o documento transforma-se em patrimônio e deve ser protegido de destruição. Interpretar esses documentos é produzir uma narrativa de um tempo anterior ao nosso, permitindo a tomada de decisões para se impedir que o mundo fique à deriva, ao sabor do acaso, pois há uma experiência anterior desvelada que pode sustentar as novas ações.
O conhecer histórico, nesse caso, deve ser uma compreensão de aspectos particulares da totalidade, naquilo que facilite o historiador a dar conta de seu interesse, que é saber como os homens, em culturas diferentes e com outros meios, lutaram por seus valores de liberdade, direito, justiça. Nessa perspectiva, o historiador, na afirmação de Baccega (1995), “[...] buscando compreender o passado como construtor de nosso presente, o qual já traz em si o futuro, avalia, interpreta como ocorreram as transformações do homem no seu relacionamento com o mundo no processo de construção das sociedades”. Esse esforço do historiador, de avaliar e interpretar o passado, não seria nada sem o socorro que nos presta Duby (2004), ao nos comprometer com a seguinte lembrança: “Para que escrever a história, se não for para ajudar os contemporâneos a ter confiança em seu futuro e a abordar com mais recursos às dificuldades que eles encontram cotidianamente?”.
É esse historiador que compreende e interpreta o passado, que nos faz entender essa relação de passado e presente, mantida através de troca de experiências. Nessa condição, o historiador assume o papel importante de ser o “arauto”, o mensageiro desse diálogo entre os homens passados, cuja presença torna-se viva, e os homens presentes que passam a dispor de uma referência para empreender sua busca de sobrevivência em sua finitude, ou, como expressou Benjamim (1992): “Os vivos se vêem no meio-dia da história. Eles se sentem obrigados a oferecer um banquete ao passado. O historiador é o arauto que convida os mortos para a mesa”.
Cabe acentuar que aqueles homens passados já não estão lá naquele tempo realizando as atividades de manutenção da vida. O que sabemos deles, em grande parte, sabemos por que os historiadores realizaram a compreensão daquele tempo através da interpretação dos vestígios deixados. Esses sinais da presença de homens realizando a vida no passado estão presentes naqueles bens úteis, que permitiram fluir a existência social do grupo, tais como a casa, a roupa, os instrumentos de trabalho, a escrita, etc. O que nós sabemos do passado, nesse caso, ou nos vêm através da transmissão oral, das manifestações tradicionais dos grupos, ou é aquilo que está dito pelo historiador, numa narrativa que reproduz muito de sua subjetividade, de seu modo de enxergar, a partir do que ele, o historiador, é enquanto cultura de seu tempo. Ainda que fundamentada em vestígios, em documentos produzidos no calor do viver social, a história que conhecemos é uma construção mental do historiador, por ser uma interpretação, por ser um texto, como conceitua Jameson (1992): “A história, a não ser sob forma textual, nos é inacessível”.
O discurso do historiador é então o símbolo de um tempo, representação ou substituição possível de um dado movimento da sociedade. É esse discurso que nos vai dizer o que foi a experiência social num dado momento, repassando-nos, como referência, os indicativos que emolduram nossa forma de ser hoje, nossa forma de sentir, nossa forma de reagir, nosso jeito de gostar, de amar, tornando-nos conhecidos: somos brasileiros, baianos, grapiúnas. Esse exercício da história, da elaboração do discurso que nos faz conhecer um dado passado, torna-se útil na medida em que, na busca da compreensão de homens passados, revela fundamentos básicos de sua existência, apresenta jeitos diversos de sobrevivência, confere ao presente o dever de realizar-se, fazendo-se plataforma de um futuro. A história é, nesse caso, uma atividade de conhecimento. Essa atividade de conhecimento está disponível nas publicações espalhadas nas bibliotecas.
O historiador, por força disso, é um construtor da realidade, do vivido concreto da sociedade, do tempo que transcorreu. Ele realiza essa façanha ao organizar a forma de entender os acontecimentos que foram elaborados no exercício cotidiano do viver dos sujeitos. É ele, o historiador, quem atribui relevância aos temas, efetua a escolha dos documentos e os interpreta. É ele que revela, por força de sua interpretação, o que nós fomos enquanto ser social, enquanto parte daquela totalidade que, a um só tempo, numa reciprocidade, é formada pelos sujeitos e influi na sua formação, tornando-nos sujeito ativo e passivo da história, corpo inseparável dessa mesma totalidade, que mereceu de Karel Kosik (1995) a seguinte reflexão: “[...] a totalidade do mundo compreende ao mesmo tempo, como momento da própria totalidade, também o modo pelo qual a realidade se abre ao homem e o modo pelo qual o homem descobre essa totalidade”.
Referência Bibliográfica
ALMEIDA, Lúcia Frabrini de. Tempo e Otredad nos Ensaios de Octávio Paz. São Paulo: ANNABLUME Editora, 1997.
BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e Discurso – História e Literatura. São Paulo: Editora Ática, 1995.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história e Cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.
CHARTIER, Roger. Cultura Escrita, Literatura e História. Porto Alegre: ARTMED Editora, 2001.
DUBY, Georges (Org.). Ano 1000, Ano 2000: na pista de nossos medos. São Paulo: UNESP, 2004.
GINZBURG, Carlo. Olhos de Madeira –Nove Reflexões sobre a Distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
JAMESON, Fredric. O Inconsciente Político – A narrativa como ato socialmente simbólico. São Paulo: Editora Ática, 1992.
KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
LEAL, Ivanhoé Albuquerque. História e Ação na Teoria da Narratividade de Paulo Ricoeur. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa – Tomo I – II - III. Campinas – SP: Papirus, 1997.