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Contos-->A felicidade das pedras -- 01/07/2002 - 12:33 (Darques Lunelli) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A felicidade das pedras


Tudo é matéria neste mundo, e morrer significa apenas retornar aos elementos. O ser é a pedra. A singular volúpia da qual nos fala Epicuro reside sobretudo na ausência de sofrimento; é a felicidade das pedras.
ALBERT CAMUS

Nada se parece mais com um passo que sobe do que um passo que desce.
SAMUEL BECKETT

Cloto

Homem algum, antes dele, havia perguntado Queres dançar? pra que eu pudesse, como pude, dizer Não e ver que se voltava para a pista onde se formavam outros pares naquela noite de outubro, tão quente e estranha, começada muito longe dali, naquela praça escura e sombria onde me escondi de outro homem, tão diferente deste que me convidou pra dançar, igual, noutras coisas, a tantas outras noites nesta cidade que me engolia. Sua camisa era nova, vermelha, Ogum, pensei, soldado da vida e sem muito ponderar, levantei num arranco, projetando sobre ele este meu corpo. Ao aproximar meu rosto, senti o cheiro do seu corpo, olhei de alto a baixo, tentando reter na memória a imagem daquele homem dançando de costas pra mim. Quero, eu disse, mudei de idéia, quero dançar. Ele me olhou sorrindo, tinha os olhos fechados quando sorria, nisso reparei quando senti suas mãos enlaçando minha cintura, me conduzindo pra pista. Queres beber? ele perguntou. Não, não quero. Ele bebia muito, mas quem sem importa? Em que pensas? Nada, eu disse. Moras onde? Perto daqui. Ah, fez ele, e emendou Queres sair daqui? tecendo, desta forma, um fio entre nós.


Láquesis

Se era tarde ou muito cedo, isso só se soube noutro dia.
Talvez fosse muito tarde desde o início, mesmo antes de vermos aquela luz varando a noite num lugar improvável pra uma luz daquela magnitude estar.
Estás vendo? Parou o carro, um cachorro farejou nossa presença, rodou à nossa volta, depois voltou pras sombras e eu pensei Estamos com cheiro de noite, por isso não se importa conosco, com o que estamos fazendo aqui.
Estás vendo?
Estava. Uma luz do tamanho de uma bola, na linha do horizonte, imóvel. É uma estrela, eu disse. Mas eu mesmo não acreditava, ou, se acreditava, isso parecia tão absurdo que era melhor dizer como se fosse o contrário, pra parecer mais convincente, porque acreditaríamos pelo viés invertido, como num jogo.
Lugar estranho pra uma estrela, disse ele.
Tendo visto noutras ocasiões coisas tão estranhas, nada disse. Mas lembro que na agonia do gozo, horas mais tarde, fechando os olhos quando ele gritava Agora!, pensei naquela estrela imóvel, e me lembraria, mas disso não sabia naquele instante, somente mais tarde, anos depois, entrando naquele quarto no final do corredor, onde o encontrei num daqueles leitos, me lembraria dela olhando nos olhos dele e encontrando lá, entre outras lembranças nossas, a imagem daquela noite traduzida no brilho improvável da estrela imóvel.
Sempre penso que sonhamos aquilo, dirá (disse) ele, que estávamos bêbados e vimos o que queríamos ver. Bueno, direi (disse), nisso tens razão. Vimos o que queríamos. Então, ele dirá (disse) Tu estás bonito, e eu, apanhando ao lado da cama, sobre a cômoda, um pano já usado, limparei (limpei) o muco do canto da sua boca. Por que fizeste isso conosco, eu direi (disse), mas sem esperar uma resposta, porque saberei (soube) que algumas perguntas não têm resposta, são apenas uns gemidos que a gente transforma em palavras pra ferir o ar, como se fere a superfície de um lago quando uma pedra é atirada. Ele, então, começará (começou) a chorar mansinho, segurando minha mão, e neste instante eu também lembrarei (lembrei) daquela primeira noite em que ouvi seu primeiro Agora! e eu mesmo pensei Sim, agora!, enlaçando aquele momento numa trama tão bem urdida que eu soube que jamais, em qualquer tempo, seria capaz de me livrar, uma teia, se quiseres, uma rede, um emaranhado de nós, sucessão de pedras empilhadas na garganta, testemunhas da impossibilidade de tudo dizer.


Átropos

Onde estavas? disse ele, mas eu sabia que não era o que queria dizer, porque eu não poderia responder. Depois de anos em que não nos vimos, como poderia dizer onde estive, ele sabia. Tirou os sapatos e sentou-se no chão, massageando os dedos lentamente e me olhando com os olhos semicerrados.
Deixa que eu faça isso. Posso?
Seus pés sobre meus joelhos tremem como pombos assustados, agora e noutra noite em que estive aqui, não a primeira, nem esta, a última. Havia um quadro, uma fotografia amarelada, um menino com a perna direita encolhida, o pé direito sobre o esquerdo, descalço. Sou eu, disse ele. O único que não tinha sapatos pra calçar.
Sempre fico nas tuas mãos, ele disse agora, e dirá (disse) depois que eu limpar o muco, dirá (disse) Massageia meus pés, estão frios. Tomarei (tomei) seus pés em minhas mãos e saberei (soube) que está chorando novamente. Não perceberei (não percebi) quando o peso afrouxar. Mais tarde, lembrarei (lembrei) que não quis olhar no seu rosto quando saí, quando desci a escadaria do hospital pensando que nada se parece mais com um passo que sobe do que um passo que desce, que agora, afinal, essa trama estava completa à sua maneira, como um fio cortado encerrando a urdidura dum bordado, como a batida seca da porta que fecharei (fechei) atrás de mim na última noite, como uma última pedra que colocasse sobre tudo.

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