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Contos-->Na ilha -- 01/07/2002 - 12:34 (Darques Lunelli) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Na ilha


Tocou-me sua mão, e meu sentido
pode ainda sabe que permitido
fora eu tatear-lhe o vasto peito, ao menos.
EMILY DICKINSON




Primeiro, eu via apenas o mar; depois, um ponto que crescia e tomava conta de tudo. Era então que fechava os olhos e imaginava Burt Lancaster agitando-se no convés. Mas isso não durava mais do que um momento porque eu sabia que não era Burt Lancaster e, caso insistisse, perderia o espetáculo do barco aproximando-se do cais.
Quando a tarde caía, lenta e pegajosa como uma saudade incômoda, eu caminhava pela praia e sentava naquele mesmo lugar, entre as pedras e as dunas, com a vila às minhas costas, e esperava. Não precisava olhar pra linha do horizonte pra saber que ele se aproximava caminhando lentamente e crescia, como o ponto que era o barco, pra tomar contar de tudo. Vestia camisa branca, calça também branca, estava barbeado e trazia um sorriso luminoso sob o bigode bem aparado e calçava umas sandálias rudes que deixavam seus pés mais desprotegidos do que se estivesse calçado.
Sentava-se ao meu lado sem dizer nada e ficava mirando o horizonte com os olhos semi-cerrados. Então, finalmente, deixava escapar um comentário qualquer. Era sempre assim.
Amanhã chove.
Como sabes?
Basta olhar o céu pra saber que amanhã chove.
Mas eu olho o céu e não sei dizer se amanhã chove.
É que não sabes ler os sinais.
Que sinais?
Os sinais.
Mostra um.
Não é assim.
Mostra. Quero ver um sinal de que amanhã chove.
Não é de uma hora pra outra que se aprende. É preciso treinar os sentidos.
Sei.
Não faz assim.
O quê?
Esse sarcasmo.
Ele não tirava os olhos do mar enquanto falava.
Quero estar longe da costa quando começar a chover amanhã.
Vais amanhã?
Vou.
Mesmo com chuva?
Sim.
Mas não é perigoso?
Sempre há perigo, mesmo quando não chove.
Tu és muito estranho.
Por quê?
Não sei nada a teu respeito. Não sei nem onde moras, como é a tua casa.
É uma casa como qualquer outra. Tem cozinha, quarto, banheiro, portas, janelas.
Ele tirou as sandálias e a camisa e esticou-se na areia.
Não tens vontade de saber onde moro?
O que sei basta.
Mas não sabes nada.
Claro que sei.
Então pensei que me seguia, que indagava a meu respeito na vila, que vasculhava meu passado pra ter tanta certeza na voz.
O que sabes?
Sei quando estás bem, quando te magoaram. Hoje teus olhos estão glaucos, sinal de problemas. Se estivessem verdes, estaria tudo bem. O que aconteceu?
Nada.
Se não queres falar...
Eu sentia uma espécie de raiva quando ele fazia isso porque me deixava desarmado.
Como é que fazes isso?
É só te olhar pra saber.
Tentei avançar além do brilho dos seus olhos, mas não consegui. Era fácil demais me perder naquele labirinto e eu não tinha tanta certeza assim de querer descobrir tudo.
Não consigo.
É preciso mais esforço.
Me sentia uma criança quando ele dizia isso, mas sabia que era verdade, então eu guardava as palavras como outras pessoas guardam retratos.
Deitei ao seu lado e fiquei olhando o céu que começava a escurecer. Uma a uma as estrelas apareceram, como pipocas estourando dentro de uma panela de ferro. Quando seus dedos tocaram meu rosto eu fechei os olhos.
Às nossas costas, as primeiras luzes foram acesas. Ele ficou ajoelhado diante de mim, sorrindo, e tirou do pescoço o cordão de prata que usava.
O que é isso?
Um presente.
Mas não posso aceitar.
Então finja que é um empréstimo.
Devolvo quando voltares.
Tá certo.
Olhou outra vez o mar. Pensei ter visto a explosão de algo que iluminava um ponto minúsculo no horizonte e lembrei da chuva.
Mas vai chover.
Eu sei que vai chover.
Não houve tempo pra dizer nada, seus passos eram firmes e longos, a escuridão o engoliu. Apertei o cordão contra o peito, fechei os olhos e soube que agora seria sempre assim: imaginar Burt Lancaster agitando-se no convés, mas isso não duraria mais do que um momento porque eu saberia que não era Burt Lancaster e, caso insistisse, perderia o espetáculo do barco aproximando-se do cais como uma serpente preparando o bote. Levantei, então, e corri como se fugisse, de costas para o mar, para não ver as nuvens que se aproximavam da ilha.

Santa Rosa, outubro de 1995.
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