Usina de Letras
Usina de Letras
155 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62215 )

Cartas ( 21334)

Contos (13261)

Cordel (10450)

Cronicas (22535)

Discursos (3238)

Ensaios - (10357)

Erótico (13569)

Frases (50610)

Humor (20029)

Infantil (5429)

Infanto Juvenil (4764)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140799)

Redação (3303)

Roteiro de Filme ou Novela (1063)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6187)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->Os amores de Miró -- 01/07/2002 - 12:35 (Darques Lunelli) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Os amores de Miró


Aceita tudo o que te acontece: o belo e o terrível.
É só andar. Nenhum sentimento é estranho demais.
RAINER MARIA RILKE

As luzes refletiam-se sempre nos seus olhos no exato momento em que o carro curvava-se para a esquerda, depois podia adivinhar seus passos lentos e majestosos na direção da casa, o salto ágil que daria para pular três degraus de uma só vez, para então parar no alto da escada e esperar que eu chegasse até bem perto dele. Enrolava-se nas minhas pernas e miava um miado bem baixinho, pra não acordar as mulheres da casa que estavam dormindo há muito tempo, ou talvez por acreditar nessa camaradagem masculina, talvez pouco provável entre nós dadas as diferenças todas, mas tenho certeza de que nenhum de nós jamais se preocupou com diferenças, porque soubemos desde o primeiro momento em que nos vimos que seriam as afinidades que nos manteriam unidos, a despeito das armadilhas que a vida engendra, ou até mesmo a despeito da impossibilidade inarredável de uma comunicação clara entre nós: era sempre preciso olharmo-nos nos olhos para confirmar um gesto ou um sentimento. Pena que ele jamais aprendeu a assobiar, porque eu sei exatamente que música ensinaria. Agora, quem assobia sou eu.
Quando o carro parou, senti no meu peito um medo estranho, mas fui caminhando devagar na direção da escada, olhando para os lados, mas vi somente Paloma, vinda da casa ao lado, certamente esperando por ele, querendo saber o motivo daquele desaparecimento tão inexplicável e inoportuno. Ela miou, mas eu não entendi o sentido daquilo, e abri a porta.
Seu corpo estava estirado ao lado do sofá, as patas afastadas como se estivesse espreguiçando-se, mas via no seu rosto um ricto de dor que jamais vira em ninguém. Sem pensar, apanhei seu corpo febril e parti coriscante na direção do carro, e somente dei por mim quando corria na direção do pronto socorro. Ver aquelas luzes brilhantes piscando me deram um certo alento, mas algo dentro de mim vibrava, e numa das vezes em que olhei para ele tenho certeza de ter visto um adeus naquele olhar.
Não esperei nem os resultados dos exames, nem o diagnóstico. Deixei o telefone para um contato rápido, e retornei para casa. Não dormi um segundo naquela noite. A primeira luz da manhã me surpreendeu na cozinha com uma xícara na mão. Estava sem cigarros. Onde você vai a essa hora da manhã, Nica disse, mas eu acho que não respondi. Devo ter feito algum gesto, talvez nem isso, antes de abrir a porta. Quando cheguei me disseram que correra tudo bem, podia voltar para o trabalho, para casa, para onde quisesse, ele precisava descansar.
O olhar de Paloma e o tom da sua miada não me saíam da cabeça, mas tinha um dia ocupado pela frente, notícias vindas de longe me avisavam de visitas e tantas outras coisas me ocupavam a mente que não vi as horas passando até a metade da tarde.
Ele vai ficar bom? – ela perguntou. Não sei, não sei.
Fui ao quarto de Bruna, beijei-a. Maitê estava acordada, mas não perguntou nada. Tentei dormir, acho que dormi, algumas visões me tomaram a certa altura e não poderiam ser reais, tudo pingava como nos quadros de Salvador ou pareciam esmaecidos, como rostos que somem com os anos e acabam tornando-se apenas a impressão de uma existência em nossas vidas. Mas havia esperança.
Paloma estava ao lado do carro quando saí pela manhã. Enrolou-se nas minhas pernas como ele fazia, e nesse contato senti seu ventre endurecido forçar a carne da minha perna como nunca antes. Abaixei-me para apalpá-la e tive certeza: havia esperança.
Quando o telefone tocou na metade da manhã, eu não precisaria ter atendido, porque sabia o que a médica diria: Sinto muito, senhor. Fizemos o melhor que pudemos, mas infelizmente ele não resistiu. Se pudermos ajudá-lo de alguma maneira, senhor... – mas eu não ouvia mais.
Pensava nas noites de quarta-feira, nos sábados em que nos embolávamos no sofá para assistir aos jogos; pensava no ritual diário de cobrir o carro; pensava no patê que nem abrira e estava na geladeira e lá ficaria até sabe-se quando... Pensava em Paloma e nos amores de Miró, nas crias órfãs que encheriam minhas noites com seus gritinhos de fome e saudade, de uma saudade que eu conheceria muito bem, e se fosse honesto comigo mesmo, em nome de tantas coisas que aprendi com ele, deveria juntar-me a todos eles num uníssono miado feito de saudade e ausência.

De Darques Lunelli para Marco Cena (Just see the bright side of life...)
28 de Junho de 2001, Porto Alegre.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui