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Contos-->O evangélico hardcore -- 01/07/2002 - 21:46 (Ricardo Borges) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Após quase um ano desempregado, João finalmente consegue um trabalho fixo. "Obrigado, Senhor, obrigado", diz erguendo as mãos. Volta para casa animado, ansioso para contar a novidade à mulher. Está radiante de alegria. Agora poderá recuperar a dignidade, andar de cabeça erguida. Começa a fazer planos de sair da casa da sogra e alugar um casinha, um barraco que seja. O dinheiro vem em boa hora, pois a renda da casa se limita à parca aposentadoria da sogra, às diárias da mulher e aos bicos esporádicos de João. Mal dá para pagar as contas e sustentar os dois filhos do casal.
"A Filirmina e a mãe dela podem reclamar o quanto quiser, mas o primeiro salário eu vou dar todo à Igreja, ou não me chamo João das Dores Cordeiro", diz febril, sem se importar com os olhares das pessoas na parada de ônibus. De repente se dá conta de que o pastor pode não permitir que ele assuma o trabalho. "É um emprego como outro qualquer, o que pode haver de errado? O pastor vai entender, com as graças de Deus. Vou poder pagar os dízimos atrasados, ajudar a Igreja. Ele vai aceitar..."
Chega em Santa Maria depois de penar quase uma hora no ônibus velho e lotado. "Quem sabe se juntando um dinheirinho não dê até pra comprar um carro usado. Não custa sonhar."
- Consegui, consegui um emprego - grita à porta de casa.
- Graças a Deus! Graças ao bom Deus! - diz Filirmina, correndo para abraçá-lo.
- Até que enfim - deixa escapar a sogra.
- Mamãe!! Por favor...
- Deixa, Filirmina, agora ela não vai poder mais me jogar na cara que eu não trabalho, que eu sou um Zé Ninguém. Agora eu sou um TRA-BA-LHA-DOR!
- Parabéns, querido. Eu tinha certeza que você ia conseguir. Vou acender uma vela agora mesmo pra Nossa Senhora...
- Não precisa! Você sabe muito bem que nós da Universal não acreditamos em imagens. Isso é coisa do demo, Filirmina!
- Mas eu fiz promessa...
- Não admito que você faça promessa pra mim. Eu já disse mil vezes!
- Não vamos brigar agora. Vem, vamos jantar.
- É emprego ou é só mais um desses bicos? - pergunta Dona Conceição.
- É um emprego, ora, um emprego, como outro qualquer. Vocês não me dão sossego nesta casa. Perdi até a fome. Vou pro quarto rezar, quero paz, PAZ!
- Eu, hein. Precisava falar assim? - diz Dona Conceição.
- Ele está cansado, mãe, só isso - responde Filirmina - Vou preparar uma roupa pra ele. No primeiro dia de trabalho o meu João não pode aparecer mal vestido.
- Como é que pode! Falar assim com uma senhora da minha idade... Se o meu marido ainda fosse vivo ele ia ver só uma coisa. Ah, ia! - reclama Dona Conceição, enquanto assiste à novela.


João não dormiu aquela noite. Estava ansioso demais, não conseguia deixar de pensar no novo trabalho. Não é o que se pode chamar de um emprego ideal para um evangélico. Se ele falasse no jantar sobre o serviço com certeza a sogra iria debochar. E o pastor? Acharia um absurdo, uma blasfêmia? "Não, tenho certeza que ele entenderá". João das Dores estava disposto a agarrar com unhas e dentes a oportunidade. "Vai dar tudo certo, com as bênçãos de Deus!"


- João, deixa eu te apresentar ao pessoal da banda. Este é o Caveira, nosso batera. Aquele ali é o Rato, guitarra e o Fumaça, contrabaixo. Pessoal, este aqui é o João, o nosso novo roadie.
- Rôdi? Eu pensei que eu ia ajudar a carregar as coisas...
- É isso mesmo que você vai fazer, cara. Não tem embaço. Agora vamos ao batismo...
- Batismo??
- É, vamos te batizar com outro nome. É um ritual pra entrar na banda. O meu nome é Rodrigo, mas a galera só me conhece como Sombra.
- Não sei, eu gosto do meu nome e eu não vou nem tocar...
- Tôco, taí, esse vai ser teu nome. Caveira, traz a cachaça. Um brinde ao Tôco!
- Mas eu não bebo mais...
- É só um copo, cara.
- Vamos lá, pela banda.
- Tá bom, só um gole...
- Isso, Tôco. Bem-vindo ao Coisa Ruim!


- Pastor, eu preciso contar uma coisa muito importante. Eu consegui um emprego...
- Meus parabéns, meu filho. É a fé, a fé que remove montanhas, João. A fé da nossa igreja, a FÉ! E que emprego é esse?
- É sobre isso que eu vim falar com o senhor. Eu vou trabalhar como ajudante ... em uma banda ... de rock.
- De rock? Mas o rock é coisa do demo, meu filho. A música da danação, do rebolado, dos fornicadores, da perdição!
- Mas foi o único emprego que eu consegui depois de tanto tempo desempregado. Preciso sustentar minha família e pagar os dízimos atrasados. E eu já decidi, pastor. Darei o meu primeiro salário todo à Igreja
- Compreendo. Um homem tem que cumprir suas obrigações. Pois então siga em frente, aceite o serviço, mas não se contamine. Afaste-se do pecado, mantenha a fé e traga essas almas perdidas para a Igreja. Deus escreve certo por linhas tortas. Esta é a sua missão, meu filho. Salve essas almas do fogo do inferno.
- Obrigado, muito obrigado, pastor. Eu vou trazê-los à nossa Igreja. Eles são bons garotos, só precisam ouvir a palavra do Senhor.
- Isso, isso. E qual é o nome desse grupo de endemoninhados?
- Coisa Ruim.
- Coisa Ruim!!!- benzeu-se - Vade retro, que horror. Que Deus o proteja nesse vale das sombras, meu filho.
- Amém.
- Agora vá, e não se esqueça de agradecer a Deus hoje no culto e honrar seu compromisso com a Igreja.
- Sim, senhor. Muito obrigado, pastor!


- Cadê o Sombra? Já estão chamando a gente no palco - pergunta Rato.
- O cara sumiu!! - responde Fumaça
- Deve tá de porre, pra variar. Vamos ter que cancelar o show - diz Caveira.
João percebe a chance de cumprir a promessa com o pastor. Há quase seis meses na banda, sente-se angustiado, traindo a sua fé inabalável ao lado de metaleiros que cantam músicas "diabolicas". Agora tem a chance de levar a palavra de Deus àqueles jovens "perdidos".
- Eu vou substituir o Sombra - grita João das Dores.
A decisão de João causa espanto, mas depois de algumas discussões, a banda resolve arriscar. João garante que sabe todas as letras.
- Nem o Sombra sabe as letras, Tôco. É só cantar arranhando a garganta...assim, isso mesmo. Com o capuz preto ninguém vai perceber. Vamos lá, galera. Coisa Ruim vai detonar geral!! - grita Rato.
O ginásio escuro está lotado. Gritaria por todos os lados, velas pretas no palco, calor insuportável. João entra com o coração disparado. Segura o microfone e quase deixa cair entre os dedos gelados. Não há como voltar atrás. Retira a Bíblia do bolso e começa a pregação.
- Eu vim aqui... vim trazer uma mensagem para vocês... é a palavra da Bíblia, irmãos. Ela pode mudar a vida de vocês, acreditem... por favor...
Vaias ressoam por todos os lados, latas são arremessadas sobre o palco. João fica atônito, ainda tenta continuar, mas é retirado pelos músicos da banda.
- Um pastor dentro no Coisa Ruim! Era o que faltava... Pega tua Bíblia e te manda, cara - grita Rato.


João não tem coragem de abrir a porta de casa. As contas, a última prestação da geladeira, o choro do bebê, as reclamações da sogra, a decepção da mulher, os dízimos atrasados... Dá meia volta e sai a esmo pela cidade.
- O que eu fiz de errado? O quê? - pergunta a si mesmo, sentado à mesa do boteco, enquanto tudo gira ao redor.

Ricardo Borges
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