Após quase um ano desempregado, João finalmente consegue um trabalho fixo. "Obrigado, Senhor, obrigado", diz erguendo as mãos. Volta para casa animado, ansioso para contar a novidade à mulher. Está radiante de alegria. Agora poderá recuperar a dignidade, andar de cabeça erguida. Começa a fazer planos de sair da casa da sogra e alugar um casinha, um barraco que seja. O dinheiro vem em boa hora, pois a renda da casa se limita à parca aposentadoria da sogra, às diárias da mulher e aos bicos esporádicos de João. Mal dá para pagar as contas e sustentar os dois filhos do casal.
"A Filirmina e a mãe dela podem reclamar o quanto quiser, mas o primeiro salário eu vou dar todo à Igreja, ou não me chamo João das Dores Cordeiro", diz febril, sem se importar com os olhares das pessoas na parada de ônibus. De repente se dá conta de que o pastor pode não permitir que ele assuma o trabalho. "É um emprego como outro qualquer, o que pode haver de errado? O pastor vai entender, com as graças de Deus. Vou poder pagar os dízimos atrasados, ajudar a Igreja. Ele vai aceitar..."
Chega em Santa Maria depois de penar quase uma hora no ônibus velho e lotado. "Quem sabe se juntando um dinheirinho não dê até pra comprar um carro usado. Não custa sonhar."
- Consegui, consegui um emprego - grita à porta de casa.
- Graças a Deus! Graças ao bom Deus! - diz Filirmina, correndo para abraçá-lo.
- Até que enfim - deixa escapar a sogra.
- Mamãe!! Por favor...
- Deixa, Filirmina, agora ela não vai poder mais me jogar na cara que eu não trabalho, que eu sou um Zé Ninguém. Agora eu sou um TRA-BA-LHA-DOR!
- Parabéns, querido. Eu tinha certeza que você ia conseguir. Vou acender uma vela agora mesmo pra Nossa Senhora...
- Não precisa! Você sabe muito bem que nós da Universal não acreditamos em imagens. Isso é coisa do demo, Filirmina!
- Mas eu fiz promessa...
- Não admito que você faça promessa pra mim. Eu já disse mil vezes!
- Não vamos brigar agora. Vem, vamos jantar.
- É emprego ou é só mais um desses bicos? - pergunta Dona Conceição.
- É um emprego, ora, um emprego, como outro qualquer. Vocês não me dão sossego nesta casa. Perdi até a fome. Vou pro quarto rezar, quero paz, PAZ!
- Eu, hein. Precisava falar assim? - diz Dona Conceição.
- Ele está cansado, mãe, só isso - responde Filirmina - Vou preparar uma roupa pra ele. No primeiro dia de trabalho o meu João não pode aparecer mal vestido.
- Como é que pode! Falar assim com uma senhora da minha idade... Se o meu marido ainda fosse vivo ele ia ver só uma coisa. Ah, ia! - reclama Dona Conceição, enquanto assiste à novela.
João não dormiu aquela noite. Estava ansioso demais, não conseguia deixar de pensar no novo trabalho. Não é o que se pode chamar de um emprego ideal para um evangélico. Se ele falasse no jantar sobre o serviço com certeza a sogra iria debochar. E o pastor? Acharia um absurdo, uma blasfêmia? "Não, tenho certeza que ele entenderá". João das Dores estava disposto a agarrar com unhas e dentes a oportunidade. "Vai dar tudo certo, com as bênçãos de Deus!"
- João, deixa eu te apresentar ao pessoal da banda. Este é o Caveira, nosso batera. Aquele ali é o Rato, guitarra e o Fumaça, contrabaixo. Pessoal, este aqui é o João, o nosso novo roadie.
- Rôdi? Eu pensei que eu ia ajudar a carregar as coisas...
- É isso mesmo que você vai fazer, cara. Não tem embaço. Agora vamos ao batismo...
- Batismo??
- É, vamos te batizar com outro nome. É um ritual pra entrar na banda. O meu nome é Rodrigo, mas a galera só me conhece como Sombra.
- Não sei, eu gosto do meu nome e eu não vou nem tocar...
- Tôco, taí, esse vai ser teu nome. Caveira, traz a cachaça. Um brinde ao Tôco!
- Mas eu não bebo mais...
- É só um copo, cara.
- Vamos lá, pela banda.
- Tá bom, só um gole...
- Isso, Tôco. Bem-vindo ao Coisa Ruim!
- Pastor, eu preciso contar uma coisa muito importante. Eu consegui um emprego...
- Meus parabéns, meu filho. É a fé, a fé que remove montanhas, João. A fé da nossa igreja, a FÉ! E que emprego é esse?
- É sobre isso que eu vim falar com o senhor. Eu vou trabalhar como ajudante ... em uma banda ... de rock.
- De rock? Mas o rock é coisa do demo, meu filho. A música da danação, do rebolado, dos fornicadores, da perdição!
- Mas foi o único emprego que eu consegui depois de tanto tempo desempregado. Preciso sustentar minha família e pagar os dízimos atrasados. E eu já decidi, pastor. Darei o meu primeiro salário todo à Igreja
- Compreendo. Um homem tem que cumprir suas obrigações. Pois então siga em frente, aceite o serviço, mas não se contamine. Afaste-se do pecado, mantenha a fé e traga essas almas perdidas para a Igreja. Deus escreve certo por linhas tortas. Esta é a sua missão, meu filho. Salve essas almas do fogo do inferno.
- Obrigado, muito obrigado, pastor. Eu vou trazê-los à nossa Igreja. Eles são bons garotos, só precisam ouvir a palavra do Senhor.
- Isso, isso. E qual é o nome desse grupo de endemoninhados?
- Coisa Ruim.
- Coisa Ruim!!!- benzeu-se - Vade retro, que horror. Que Deus o proteja nesse vale das sombras, meu filho.
- Amém.
- Agora vá, e não se esqueça de agradecer a Deus hoje no culto e honrar seu compromisso com a Igreja.
- Sim, senhor. Muito obrigado, pastor!
- Cadê o Sombra? Já estão chamando a gente no palco - pergunta Rato.
- O cara sumiu!! - responde Fumaça
- Deve tá de porre, pra variar. Vamos ter que cancelar o show - diz Caveira.
João percebe a chance de cumprir a promessa com o pastor. Há quase seis meses na banda, sente-se angustiado, traindo a sua fé inabalável ao lado de metaleiros que cantam músicas "diabolicas". Agora tem a chance de levar a palavra de Deus àqueles jovens "perdidos".
- Eu vou substituir o Sombra - grita João das Dores.
A decisão de João causa espanto, mas depois de algumas discussões, a banda resolve arriscar. João garante que sabe todas as letras.
- Nem o Sombra sabe as letras, Tôco. É só cantar arranhando a garganta...assim, isso mesmo. Com o capuz preto ninguém vai perceber. Vamos lá, galera. Coisa Ruim vai detonar geral!! - grita Rato.
O ginásio escuro está lotado. Gritaria por todos os lados, velas pretas no palco, calor insuportável. João entra com o coração disparado. Segura o microfone e quase deixa cair entre os dedos gelados. Não há como voltar atrás. Retira a Bíblia do bolso e começa a pregação.
- Eu vim aqui... vim trazer uma mensagem para vocês... é a palavra da Bíblia, irmãos. Ela pode mudar a vida de vocês, acreditem... por favor...
Vaias ressoam por todos os lados, latas são arremessadas sobre o palco. João fica atônito, ainda tenta continuar, mas é retirado pelos músicos da banda.
- Um pastor dentro no Coisa Ruim! Era o que faltava... Pega tua Bíblia e te manda, cara - grita Rato.
João não tem coragem de abrir a porta de casa. As contas, a última prestação da geladeira, o choro do bebê, as reclamações da sogra, a decepção da mulher, os dízimos atrasados... Dá meia volta e sai a esmo pela cidade.
- O que eu fiz de errado? O quê? - pergunta a si mesmo, sentado à mesa do boteco, enquanto tudo gira ao redor.
Ricardo Borges
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