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Artigos-->Não é fácil viver no bojo de um monumento estruturalista -- 04/12/2001 - 16:30 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Fim de ano, campus quase vazio. Ei-lo que repousa em paz, agora, o monumento estruturalista. Azaraquara. Ei-los que só ouvem passar o vento, agora, os corredores, os porões da ditadura.

Ei-los, enquanto não chegam as águas de dezembro e janeiro, as inundações, os carpetes inutilizados, as medidas inócuas dos engenheiros da reitoria, as explicações implausíveis dos senhores irresponsáveis, a voracidade dos ácaros (depois de um congresso, 27 horas de palestras, mesas-redondas e eventos culturais diversos, precisei de internação por insuficiência respiratória).



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Poesia: respiração difícil à margem de um rio. (Thomas Bernhard)



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Eis-nos agora silenciosos e inúteis, sem o enfeiamento da paisagem que soem causar os seres humanos. Sobretudo os em fase de crescimento. Sobretudo os submetidos aos mais cruéis procedimentos de infantilização e asnificação irreversível.



O mundo celebra o nada, o não-ser, a coisa nenhuma. Vazios. Não há verde, não há pastagem, gramado, não planta decorativa que mitigue a prepotência de tantos desmandos, de tanto cimento acumulado.



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"A consciência narrativa haverá de ocupar o lugar injustamente ocupado pela assim chamada consciência histórica." (Peter Bichsel)



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E, em meio ao cinza, ei-los que se sobressaem, garbosos, modernos, corretos, prestativos, retóricos, os cinco latões para a implantação do sistema da coleta seletiva do lixo. Berram o azul, o amarelo, o vermelho, o marrom e o verde.



As bordas sustentam (ou ostentam) uma faixa preta brilhosa. Nas bordas, é nelas que se apoia o verdadeiro receptáculo, o saco plástico que haverá de carregar, juntamente com o propriamente lixo, com os dejetos materiais, o pântano retórico de salivações diversas, as ilusões acadêmicas desfeitas, as frases mal-costuradas do dia-a-dia, os versos fanados, as tiradas de efeito duvidoso, os boletins, os relatórios, os pareceres, os pareceres sobre pareceres, as atas, as notas de rodapé, a didascália, os anúncios que entopem os escaninhos, os maus pensamentos reprimidos, os bons pensamentos que um dia ainda entupirão o inferno, os bate-bocas recheados de anglicismos, as pequenas malvadezas, as lexias, os sememas, os semantemas, os anátemas, as polêmicas, as apoplexias, os engajamentos, os arroubos literários, as emoções acadêmicas (sim, as há!), os esporos de antraz contidos em envelopes misteriosos não abertos, os best-sellers, os opúsculos sem futuro, as obras-primas ainda não reconhecidas, as últimas palavras, inscrições lapidares diversas, excusas, pedidos de afastamento, faltas abonadas, requerimentos e requisições de incerto rumo, cédulas de eleições mais ou menos democráticas, rascunhos de tese, originais desprezados, bilhetes trocados ao longo de intermináveis reuniões, inconfidências, xingamentos, joguinhos de forca, charadas, cartões de natal e de aniversário, um não acabar mais de coisas inúteis abarrotariam o latão dos dejetos poéticos, se as pessoas tivessem mesmo um mínimo de noção do que significa este saudável novo hábito da coleta seletiva de lixo e, sua conseqüência, a reciclagem.



E eu caminho derrotado e lúcido por entre a gritante e colorida novidade dos latões perfilados no pátio, a emoldurar um dos nossos tantos abismos.



Neste deserto de cimento, o monumento estruturalista de onde falo e escrevo, encravado em meio a plantações de cana e de laranja da Califórnia brasileira, mentes generosas de arquitetos projetaram uma profusão de abismos. O bojo de um monumento é sempre inóspito, tendo algo de cova, de sarcófago, de pirâmide egípcia, de comemorações cívicas, de masmorra e claustro, bafios os mais degenerados, soberbas concentrações de indiferença e tédio, amazônica dispersão de energias produtivas.



Não, não é fácil viver a não-simultaneidade. Alguns palmos abaixo e são os porões da ditadura. Onde mais terão permanecido tão eficazes, e por tanto tempo, os mecanismos repressivos daquele período negro. Onde mais terá permancido tão viva a lembrança dos infaustos, dos desaparecimentos, das inglórias, dos abortos, dos assassinatos, dos estupros, da conspurcação de tudo o que seja humano. Onde mais?



Ali, alguns palmos abaixo, os porões da ditadura. Não, não é fácil habitar um monumento estruturalista. Nâo é fácil prever que medidas tão atrativas, modernas e corretas possam produzir efeitos numa paisagem assim devastada por desmandos, erros de engenharia, mentiras deslavadas, pegadinhas de mau-gosto, maledicências, sussurros, uivos.



Um dia, uma docente foi encontrada no alto da caixa d água, fato que lhe valeu alguns meses adicionais de trégua, para que tentasse se refazer de suas inúmeras outras quedas e saltos mortais.



Não, não é facil sobreviver no bojo de um monumento estruturalista. Os porões da ditadura carcomem as esperanças de gerações de estudantes. O corredor das artes "uilcon pereira", em minúsculas, como ele sempre quis e praticou, continua a afrontar a sanha da limpeza que acomete nove entre dez funcionários que nada têm a ver com o peixe. E se um diretor, no mês de agosto, já começa a planejar o Primeiro de Maio do ano seguinte, o que fazer? O que fazer se a aluna te pede para organizar um evento que vai ter lugar, se tiver, no segundo semestre do próximo ano? O que fazer se em outubro já somos obrigados a saber exatamente para quem vamos dar aulas a partir do mês de março que virá. O que fazer se ninguém mais tem o mínimo interesse em assumir a direção desse monumento. E eis-me de novo a contemplar, a não tirar mais os olhos desse colorido intenso que ameaça tomar conta de tudo quanto foi cimento. Ah! os latões para coleta seletiva de lixo! Ah! reciclagem! Por que berram tão alto as cores do que é moderno, e útil, e correto? Ai, quando as figuras de retórica se materializam dessa forma!



E eu que desci até o pátio só para assuntar, tomar um café na cantina ora abandonada, um papinho com a moça simpática do balcão, o olhar passeando por lousas repletas de anúncios vencidos: festas de república, minicursos, anúncios de prestação de serviço intelectual, digitação de teses, aulas de inglês, espanhol, bijuterias, doces caseiros, editais de teses, garranchos de toda ordem, espetáculos grandiosos e showzinhos furrecas, tudo isso junto vai formar o cenário das minhas reflexões peripatéticas durante os longos meses do recesso.



E eu que desci até o pátio para conferir se ainda haveria vida, qualquer que fosse, em algum desvão insuspeitado deste monumento.



E eu, que outra coisa não queria se não jogar fora um pouco de conversa fiada.



Não, não é fácil habitar o interior de um monumento estruturalista.



O prédio da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, em Araraquara, foi convenientemente instalado fora do perímetro urbano, em época negra, quando o mundo parecia estar farto das agitações estudantis e da fermentação de idéias libertárias. Convenientemente também, construiu-se um monumento. Até há bem pouco tempo, ninguém poderia plantar nele um pé de urtiga que fosse, para não interferir no projeto arquitetônico. Foi preciso que uma sucessão vertiginosa de obras de duvidosa engenharia se impusesse sobre os anos de intenso zelo, foi preciso que uma agência bancária se instalasse no espaço originalmente pensado para a convivência dos estudantes, foi preciso que que tantas outras invencionices comerciais se expusessem aos nossos olhos cansados, para que o referido projeto fosse definitivamente lançado às favas. Agora é o vale-tudo, o salve-se-quem-uder, a agonia lenta da universidade pública materializando-se em anúncios de cursinhos de idiomas à guisa de apoio cultural para lixeiras e bancos de cimento, as festas estudantis transformadas em eventos empresariais de alta envergadura, os anfiteatros a abrigar palestras de auto-ajuda gratuitas para um seleto grupo de funcionários. Ao lado, num imenso terreno que separa o campus da Rodovia Washington Luis, uma área cinco vezes superior à do campus, será instalada a Universidade de Araraquara, florescente instituição privada de ensino universitário.



Ainda teremos este a mais nesse período de quatro ou cinco anos de agonia que o ministro prescreve, o espetáculo do crescimento do ensino pago.



Convenientemente ainda, esse monumento nunca previu com decisão a presença viva de seres humanos. Todos os corredores e escadas terminam num abismo. Nenhuma das salas de aula ou de professores oferece privacidade. Vocação inegável para mausoléu, as últimas gestões não fizeram por menos. Há, no prosseguimento do corredor das artes "uilcon pereira", uma espécie de cemitério com placas diversas em homenagem a esses palestrantes ilustres, os profissionais das aulas magnas e inaugurais, ministros, deputados, toda a corja dos representantes do povo.



Viver no bojo de um monumento não é fácil. Sobrevivemos cada vez mais duramente. 56% do corpo docente vive uma situação trabalhista bastante questionável e peculiar. Depois de um calote indescritível, com a mudança de regime de trabalho, sobramos, os ainda não-concursados, ao sabor de algum destino ainda desconhecido. Para não dizer que somos tratados como somos tratados pelos nossos pares. A fala do presidente nos últimos dias, sobre o tipo de pessoa que acaba virando professor, essa maldadezinha típica dos corredores universitários, é apenas o momento da perda definitiva de qualquer pudor oficial em relação a tudo o que nos impinge.



Paciente terminal, a universidade agora expõe todas as suas mazelas, toda a sua incompetência de décadas, toda a sua arrogância e prepotência, mordendo a própria língua, envenenando-se a si própria, enquanto professores continuam a fazer de contas que ministram e os alunos a fazer de contas que assistem aulas. A nossa produtividade - nunca foi tão vistosa e tão bem avaliada, exultam os Cândidos de plantão - continua a ser medida por dá cá aquela palha. Não há semana em que não tenhamos pela frente algum formulário a preencher, sempre com seu tom sacana e suas propostas indecorosas. Dá-lhe produção, publicações, feitos inenarráveis, a fieira dos orientandos, os mestrados e os doutorados cometidos, a maçaroca.



Se fosse para valer, o latão destinado ao papelório (lilás seria uma cor adequada) viveria abarrotado, com o risco de se derramar por todos os entornos, invadir todos os escaninhos, até transformar o mundo em algo próximo da ficção científica de um Cortázar ou de um Loyola Brandão. O horror! O horror!



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"Labaredas devoram as paredes da casa

Sem meias-palavras, o poeta

pisa o assoalho em brasa." (zé pedro antunes)



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