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Contos-->Lembrança -- 02/07/2002 - 21:50 (Idalécio Jeferson Sousa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Lembrança


Antônio está de pé no meio do terreiro. Olha em volta e observa aquela poeira, uma tia jobina corre. Um redemoinho dança com gravetos e ciscos. Os raios de sol atravessam a pele trazendo consigo uma secura na garganta. As árvores simulando a morte. Viver ali também é uma simulação de morte para o homem; a simulação é uma defesa inconsciente contra os rigores da seca e para não cair em angustias suicidas. Antônio sabia bem aquelas manhas, nas suas tristezas era resistente a dor e já não sentia as facas no corpo. Aprendera a resistência com o decorrer dos anos. Os mesmos anos que o havia deixado mais calado a cada dia, calado as vezes até em pensamentos. Continha as emoções e trazia os desejos emantados em certezas divinas.
Conhecia bem aquela lida diária . Conhecia todas as veredas, os caminhos, os seus pés estavam presos aquela terra. Acordava todos dias bem cedo.
- Passa o café menina!
Com um gole de café na garganta lembrava da fazenda porção de Pedras, era vaqueiro lá. Todos os dias pegava o velho gibão de couro, colocava no lombo, na cabeça o chapéu suado, um trago de pinga, o guarda peito, uma faca peixeira na cintura e partia para o campo. Era um bom vaqueiro – jovem mas bom. Não temia a unha-de-gato; pisava nos espinho; o cavalo bravo era amansado na ponta da espora – corpo colado ao azulão, cabeça baixa, mão a frente do corpo, um grito, olhos fixos à frente - dispara. Se sentia nos versos de um cantador.
Não tinha rês que não pegasse. Já passara dias atrás de gado mantido apenas a suspiros e pedaços de rapadura. Um gole de água para inchar a farinha no estômago, uma reza para agradar o santo e olhos a diante. A mata respeita cabra-macho.
Um passar apressado de mão na cabeça, um gole de café ...
Aquela lembrança diária trazia sentimentos que preferiria evitar. Fora um tempo bom aquele na fazenda: não faltava o leite dos meninos, a cachaça no sábado, a chita da Diolina, a bicicleta era nova e tinha até umas duas vaquinhas. Agora os dias se passavam numa sucessão de misérias, uma quentura a lhe esfriar as esperanças.
A saída da fazenda fora causa de um desentendimento com o Coronel Fernando ( coronel Fernando, sim, o título talvez estivesse em desuso em outras terras, mas era melhor mantê-lo ), que acusara Antônio de roubo de gado, embora as línguas mais prolixas comentem que foram os galanteios do coronel para a Diolina. Antônio jamais confirmaria algo assim, sem antes confirmar que matou o cabra (" mulher de home não se mexe, moço"). O certo é que ele saiu da fazenda e com as poucas economias que tinha se instalou no mesmo povoado. “Cabra macho não abandona a terra”. Comprou uma casa já velha - o que se aproveitaria mesmo era o terreno – não muito distante da roça que arrendara. Compra umas sementes, pega o filho mais velho, planta uma braça e sonha com a colheita. Colheu apenas sonhos.
- Inverno maldito ...
As economias e os poucos bens que possuía logo se foram e não ficou mais nem o da chita.
Suspiros.
Antônio passa a mão na testa escorrendo o suor, tira do bolso o fumo e prepara um cigarro. Pensa no filho recém nascido e se questiona :
- O que será do menino, meu deus? - a esperança de que será diferente se faz presente em seus olhos menos sorumbáticos.
A vida de seus filhos lhe vem a cabeça; o nascimento de João lhe trás esperança, mas não consegue evitar o medo da sucessão ingrata do sertão - pai pobre, filho miserável. Muito pouco se pode fazer para se evitar essa sucessão, a terra é firme em suas leis e eram assim vistos os seus caprichos : leis irrevogáveis. para Antônio essas leis pareciam punições por ter nascido gente. Não conheceu ninguém que tenha escapado àquela sina; sempre que nasce um pobre nasce um destino sofrido.
Houve uma época em que a promessa do Sul se fazia presente a todos; eram muitos os relatos de gente que ia para São Paulo e Rio de Janeiro e se acertavam na vida . Mas eram apenas relatos, que Antônio não se esforçava para acreditar, pois também ouvira casos de emigrantes que viviam numa seca úmida, uma seca diferente da sua, mas com dor no estômago - era o contraste entre a casas de alvenaria e com jardins dos bem nutridos sulistas e os barracos de papelão dos emigrantes. Uma mudança de terra, mas uma continuação na sina. Do Norte também vinham promessas que a notícia do trabalho sem ganho se encarregou de tirar-lhe da cabeça a esperança de partida.
- Não! É melhor morrer na terra da gente, moço!
Deus. Deus para Antônio sempre fora intocável. Ele cresceu com reza e novena, romaria a Canindé, a Juazeiro e não admitia dúvidas quanto a soberania divina. Mas a sua situação atual, com todos aqueles calos na mão e um cansaço nas pernas, já não era tão firme a sua fé e começava a si perder em dúvidas.
- Deus?!
Olha a vida e analisa o Deus que lhe fora apresentado desde de criança e vinham os questionamentos. Ele não conseguia compreender um Deus daquele diante de tanto sofrimento. Por quê ? Muitos eram os porquês : a roça do coronel sempre nasce, os jardins da sede da fazenda estão sempre bonitos, os filhos do patrão eram rosados. E os seus também não eram gente? Seus questionamentos poderiam ser ingênuos, mas suas dúvidas eram fortes.
- Deve ser culpa de São Pedro. É de São Pedro. Deus mandou que ele enviasse chuva, mas São Pedro é santo vaidoso e desviou a chuva para o litoral e para o sul. É lá que tem as festas, as modas, os carro bonito, as casas grande. Esse Pêdo gosta é de farra, de banquete, de música. Aqui a gente não tem isso e quem tem já recebe as graças do Pêdo. Deve ser mêmo esse Pêdo. – coça a cabeça, um aperreio; no céu um balé macabro de urubus - Ou será esses urubus malditos? É isso mermo senhor, são os urubus que voam lá perto de Deus pedindo que não venha chuva, esse vôo redondo deles deve ser dança pra chamar seca e os bichos aqui em baixo morrer tudo. Êta bicho desgraçado esse urubu! - Acende o cigarro e se benze num pedido de perdão a seu Deus.
Um tristeza tenta se esconde entre os cílios úmidos. Antônio mudaria o mundo, se pudesse. Os ricos seriam destituídos de sua riqueza e os pobres de sua miséria - não seria justo tirar desse homem o direito de pensar, mesmo as inconcordâncias. Uns sentiriam vontade de dizer que não há deus e que suas medidas não seriam antídotos pro mal. Mas não diriam ao olhar suas mágoas. Antônio sabia que não mudaria o mundo, talvez quisesse apenas livra-se dele.
- E se o mundo não existe?
O mundo sim talvez não exista e os delírios são obras da mente fraca de substâncias. Essa impressão de mundo, e era assim que era sentido o mundo em Antônio, uma impressão. Se ele não tivesse sentidos o mundo não existiria e seu tormento seria dado ao nada e o corpo ao deliciante mundo da insensação.
Há sempre uma resistência em levar a diante algo que fosse contra o seu Deus. Mas apesar dos receios já é certo que não é mais o mesmo. Entra em casa, pega a enxada velha e sai atrás de serviço. Vai passar o dia todo na rua e não encontrará nada.
- Eta vida!
Chega em casa, abre a cortina do quarto e olha o seu filho dormindo como quem estivesse a fazer um pedido a Deus; fecha e sai para o terreiro - vai contar o cair tonto das estrelas.


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