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Contos-->Nascente -- 02/07/2002 - 21:51 (Idalécio Jeferson Sousa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Nascente

Noite clara. Os olhos se perdem na imensidão piscante do céu. As estrelas despencam – de sono, fadiga, cansaço, o calor abala todos em épocas assim. Mas a noite até dar certo alívio, possibilita um descontrair suave dos músculos. O dia é desafiante. O cheiro quente da caatinga invade as narinas com grãos de poeira; o mandacaru resiste numa tentativa heróica contra as investidas heródicas do sol; os poucos viventes praguejam, mas logo beijam o terço de Nossa Senhora com uma devoção que estremece até os cépticos... é o sol, é o calor, é o homem, é o couro, é o grito da poeira, é o redemoinho, é o sertão a medir forças com a vida. Uma mão na testa e um suspiro:
- Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!
No terreiro o bacurau voa de um lado a outro entre insetos apavorados; um vapor sobe da terra a espetar os corpos. Na casa o barro da parede fossa os talos de coco numa provocação perigosa. As palhas do teto refrescam um pouco os corpos em brasa e expressam medo da lamparina com suas chamas pontudas.
Do quarto vêem gemidos ... Maria Diolina sabe bem as dores do parto. Em todos aqueles anos de casamento elas eram anuais. Eram sempre as mesmas dores. Um soluço molhado, um gemido expandido e a esperança brotando no suor da boca agradecida a “Padim Cirço”. A sina estava sendo cumprida.
Antônio Anselmo esfrega a palha de milho para o próximo cigarro. As mãos tremem e nos calos trazem uma tristeza irritante. Os olhos em brasas ensaiam um salto da face. Deus o deu ao mundo, assim como todas as suas tristezas. A vida aprendera a insultá-lo dia após dia, com verbos, gestos e pele seca - talvez fossem apenas provocações a serem remediadas com a devoção. Mas as causas de tamanha tristeza pareciam irracionais, embora o sertão tentasse ensiná-las a ferro e brasa. Era preciso compreender aquele nascer e morrer angustiante do homem entre um gole de poeira e suspiros suados.
Os gemidos do quarto aumentam. Já não trazem mais a intensidade da calma. Antônio acende outro cigarro. No canto da casa o cachorro tubarão coloca a cabeça entre as patas e imagina o dono. Velho amigo é o tubarão, as veredas o conhecem bem – um grito, um pega, e mais um preá na boca ou nos dias de sorte um tatu acuado. Nunca temeu os espinhos nem rejeitou os ossos da caça. Não tinha raça mas trazia nos olhos a certeza de uma companhia confiável. Acompanhava a família a anos. Ajudara a criar os meninos e manter vivos os adultos. Proteção certa no terreiro de casa.
O silêncio da sala é amedrontador. Os pensamentos são ouvidos em segredo e o único som a romper o ambiente é o chorar do estômago – o inverno foi ruim e o feijão minguou no pé, a cabra velha do leite morreu e o resto do dinheiro da frente de trabalho do governo ficou na quitanda do seu Chico. Comida agora não é mais diária. Vez ou outra Diolina ferve um chá de casca de laranja que vai com o acompanhamento da farinha de mandioca quase mofa; os mais novos, por desconhecerem o cardápio litorâneo, até gostam da mistura e não se importam em complementá-la com a água fria do pote.
Os gemidos por instantes param. Os meninos, sentados no canto da sala, se entreolhas com gestos interrogativos. O abrir da cortina chama a atenção de todos - é o sinal da vinda ao mundo de João do Carmo.
João poderia jurar que tentou chorar forte, talvez para anunciar a sua chegada ou disfarça o medo do novo. O ventre da mãe o protegera por sete meses e acolhera os seus sonhos. Agora eis que o mundo está em sua vista ... Tenta gritar e os sons que emiti são abafados, subnutridos como tudo em sua volta o era; pai subnutrido, mãe subnutrida, irmãos subnutridos, terra dita fraca, vegetação submissa aos caprichos da seca e apenas o sol formoso no centro daquela miséria, bem nutrido a despejar seus raios pontudos desafiando a teimosia daquela gente. Nem mesmo o sol entende como ainda não conseguiu expulsar dali aquele povo que segue resistindo muitas vezes mais que o mandacaru. E agora a chegada de mais um. O povo é mesmo teimoso e na fé se mantêm firmes. Aquele sofrimento e o cuidado em não profanar comprovam que a fé em Deus é para o povo dali inabalável. As romarias em tempos difíceis, a procura por conforto nas capelas de santos e nos templos de messias os qualificam como verdadeiros amantes de um Deus, que se não os ama os ensina a resistência diante da vida.
Passados os gemidos, Diolinda pega o filho e o analisa no colo. Observa seus traços. O corpo é pequeno, os olhos trazem o aspecto “pidão”, na circunferência da cabeça a denúncia da origem. O ventre causa um desconforto estético ao contrastar com as pernas miúdas e finas. Diolina expressar sentimentos molhados com lagrimas e soluços baixinhos. Não as lágrimas do povo do Sul, os beijos novelísticos, o enrolar e colocar em berço pintado como fazem essas mães coradas; o seu amor é certo, mas diferente. Ela observa e sabe o que ver. Lembra de sua devoção aos santos, a quem entregar o menino.
Antônio estar agora a seu lado e contempla a obra. A lágrima contida denuncia o espírito e logo vem a mente a missão daqueles homem – fazer cada vez mais filhos. Felícia trás o pano e enrola o nascido - mais um irmão para olhar - a mãe o coloca ao seu lado na cama. Já é madrugada e a lamparina se encarregará de velar a criatura agora.


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