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Artigos-->O TRIO FANTASMA - 2a Parte / O MEDO -- 18/08/2008 - 19:25 (A.Lucas) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
ATENÇÃO: Este trabalho está sendo apresentado em cinco partes, para conveniência dos leitores. Sugiro que esta ordem seja respeitada para melhor compreensão.



Parece-me óbvio que o instinto que deve prevalecer sobre todos os demais é o de sobrevivência: qualquer ser vivo deverá lutar pela própria existência, sob pena de se extinguir a própria espécie. Também considero óbvio que o medo é o que faz esse instinto funcionar. O medo de cair de um galho alto, o medo de se ferir numa pedra pontiaguda, o medo de ser vítima de alguma fera... todos são medos compreensíveis num ambiente selvagem e todos cumprem bastante bem o seu papel de garantir a sobrevivência em tal ambiente, mas o que podemos dizer sobre esses mesmos medos no mundo atual? É claro que não estou dizendo que as pessoas andam por aí tendo medo dessas coisas dentro de suas casas, mas até que ponto esses medos se transformaram em algo útil no nosso dia a dia? O medo de cair nos faz ter cuidado ao subir numa escada para pegar uma pesada mala no alto do armário, o medo do ferimento nos faz ter atenção ao lidar com facas e tesouras, o medo das feras nos faz ter cuidado com o cachorro quando entramos na casa de algum amigo, mas também nos faz ter medo de... baratas (?...!)

Quantos medos, reconhecidamente irracionais, temos? Medo de barata e de lagartixa, medo de dormir com a janela aberta no 10o andar, medo de parecer gordo demais ou magro demais, medo que o time perca o jogo... Aqui a coisa começa a se complicar! Alguns medos não podem ser classificados como tão cotidianamente práticos e tolos, mas, não são completamente irracionais. Penso que essa classe de medos é a pior. São medos que sempre podemos justificar mas que facilmente deturpam fatos da nossa vida: medo de perder o emprego, medo de andar sozinho na rua à noite, medo de viajar de avião, medo de perder uma pessoa amada...

É claro que devemos nos comportar de forma a manter nosso emprego, é claro que não vamos abusar da sorte (ainda mais hoje em dia) andando em certos lugares, é claro que acidentes com aviões são quase sempre dignos de primeira página de jornal e que nossos entes queridos um dia se vão, mas, como lidamos com isso? Uma coisa é cumprirmos as regras sobre o que se espera de um bom profissional, outra coisa bem diferente é usarmos meios que, se não ilegais, são ao menos imorais (todos conhecemos um bajulador de plantão). É bem diferente o medo de andar num bairro sabidamente violento, à noite, do medo de dar um belo passeio noturno num hotel fazenda. Não é nem um pouco lógico o efeito paralisante sentido por algumas pessoas diante de uma ordem do chefe para executar alguma tarefa em uma cidade distante o suficiente para que tenham que ir de avião. Esses medos são conhecidos, já assistimos uma dezena de vezes reportagens, filmes, programas de entrevistas ou humorísticos falando sobre eles, seja de forma séria e profissional, seja em forma de piadas.



Na semana em que escrevo este texto foram publicadas duas reportagens no jornal O Globo que me chamaram a atenção. A primeira, sobre o lançamento de um livro intitulado “Decolando para a felicidade” (Editora Rocco), escrito por Ruy Marra, piloto e instrutor de asa-delta e parapente, com vasta experiência em vôos duplos. No livro, o autor relata um fato interessante: segundo ele, muitos dos passageiros de primeira viagem hesitam, ainda na rampa, e apenas 20% deles cumprem a instrução de não bloquear a decolagem. Em contrapartida, ainda segundo aquele autor, o medo só subsiste até o momento em que a asa deixa o chão, seguindo-se quase que imediatamente uma sensação de liberdade. Mesmo sem ter participado deste tipo de vôo é fácil imaginar esta seqüência de sensações, em muito semelhante à que é descrita em outros casos (alguns exemplificados aqui) de medo superado. Apenas como referência, vale citar que Ruy Marra pediu a 2.000 dos seus clientes que respondessem a um questionário sobre seus medos e concluiu que 80% deles apresentavam algum tipo de bloqueio. Destes, 60% disseram se sentir intimidados na infância quando um dos pais chegava em casa e 20% haviam sofrido algum tipo de violência em casa no passado. Curiosamente, apenas 20% dos entrevistados haviam sido criados em famílias que negociavam responsabilidades sem agressões – o mesmo número que não tem problemas na saída da rampa (não sei se esses 20% compõe exatamente o mesmo grupo de pessoas, mas desconfio que a grande maioria sim). Na pesquisa, usando as suas observações, os medos foram classificados pelo instrutor de vôo em três categorias: o medo por modelagem, que é a repetição de um comportamento aprendido, geralmente com os pais; o medo por trauma, devido à memorização de algum episódio marcante; e o medo causado por problemas domésticos, de intimidação ou violência.

Nesta mesma reportagem, além dos números e do assunto em si, outro fato que me chamou bastante a atenção foi o relato de uma cliente de Ruy, vítima de uma doença grave alguns anos atrás. Ela enfrentou a resistência do marido, fez o vôo duplo em busca da coragem necessária para fazer a cirurgia e hoje, curada, eventualmente “procura voar para sentir-se fortalecida”.

Os medos de voar e de baratas podem, creio eu, ser vistos como copiados (na reportagem são classificados como “por modelagem”) mas ficam algumas dúvidas: A primeira pessoa a temer uma barata copiou de quem? Por que, apesar da irracionalidade, estes medos são tão facilmente aprendidos e tão dificilmente esquecidos? Por que eles são tão paralisantes?...



Uma segunda reportagem que me chamou a atenção, na mesma semana que a anterior, foi sobre um menino que, ao ser atacado por um cachorro, revidou, mordendo o cachorro. O menino perdeu um dos dentes (sem trocadilhos: um dos caninos) mas se livrou, não sem algumas lesões, do ataque do pitbull e foi destaque da mídia naquele dia. Um ato de coragem ou de medo útil?



Na minha vida profissional já tive também uma experiência sobre como o medo pode fazer coisas que a coragem não consegue. Uma das minhas tarefas, na época, era executada no alto de torres de radiotransmissão de algumas dezenas de metros de altura. Numa dessas “escaladas” me fiz acompanhar de um novato e, acabado o serviço, ambos sentados à beira da exígua plataforma que existe no alto da torre, ele, ao olhar para baixo e ver a longa escada serpenteando em direção a um invisível chão (pela névoa presente) agarrou-se à plataforma e se recusou a descer, pedindo que um helicóptero fosse resgatá-lo (juro que é verdade!). Ao perceber que nenhum diálogo o demoveria da tentativa de conseguir tão inusitada carona, resolvi inverter a situação e comecei a descer sozinho. Essas torres dispõem, a intervalos regulares, de pequenas plataformas ao lado da escada, que permitem paradas para descanso durante a subida, de tal modo que, para quem olha de cima, cada plataforma oculta a visão da outra abaixo dela. Assim, desci o suficiente para me esconder na segunda plataforma e, como eu esperava, em poucos minutos o novato começou a gritar por mim que, calmamente, fumava (certo, certo, é um mau hábito...) e aguardava o resultado. Alguns minutos mais e o tom trêmulo da voz começou a refletir medo, em substituição à raiva original. Mais alguns minutos, quando considerei que o tremor da voz refletia um medo grande o suficiente, tornei a subir ao topo da torre, encontrando o novato apavorado, firmemente preso pelo cinturão de segurança e pelas próprias mãos ao guarda-corpo da torre, e propus o alívio para o seu medo: descer pelos seus próprios meios. Calmamente fui dando as instruções: confira o cinturão e os engates, apóie o pé aqui, segure-se, o outro pé ali etc...



Lembro-me também de um fato que espelha bem como conviver com o medo por memorização (ou trauma). Numa prova de automobilismo um piloto, ao fazer uma ultrapassagem num ponto próximo à linha de chegada, tocou com a roda dianteira esquerda de seu carro a roda traseira direita do carro do adversário à sua frente. O carro simplesmente “decolou” e a ultrapassagem foi feita com o carro voando de cabeça para baixo a quase dois metros do chão, o que impediu até que o tempo exato da volta fosse cronometrado pelos sensores eletrônicos (que ficam sob a pista). Pois bem: assim que o carro terminou de se despedaçar e as equipes de socorro já se encaminhavam para o local, o piloto conseguiu sair do carro, correu a pé para os boxes, pegou o carro reserva e terminou a corrida (infelizmente não me lembro da classificação). Mais tarde o piloto disse em uma entrevista à televisão que, se não tivesse feito isso, corria o risco de nunca mais conseguir competir. É um belo exemplo de como se livrar dos medos “memorizados”.



Considero que todos os casos acima evidenciam o que o medo pode fazer de útil por nós, desde que saibamos conviver com ele. Outros medos, igualmente pouco ou nada ligados ao puro instinto de sobrevivência, tremendamente mais sutis e inconscientes, nos fazem ter atitudes que muitas vezes reprovamos (não só nos outros, mas em nós mesmos). Atribuímos tais atitudes a características nossas, a imperfeições pessoais, a defeitos de caráter, e sofremos com isso sem, no entanto, nos darmos conta da verdadeira raiz do problema.

Um dos bons exemplos que conheço para o medo nocivo me veio de um casal conhecido. Tive a chance de assistir de perto o quanto não só o “paciente” do medo mas também as pessoas ao seu redor podem ser levadas ao sofrimento pelo descontrole e desconhecimento do “trio”. Ao se casarem, ainda jovens, ambos já tinham suas vidas profissionais razoavelmente encaminhadas. Depois de quase vinte anos de casamento, filhos na adolescência, ele (que vou chamar apenas de H) ficou desempregado e a busca por novo emprego levou pouco mais de três anos, terminando num novo emprego cujo status profissional e salário eram bem inferiores aos do emprego anterior. Ela, ao contrário, sempre havia progredido na carreira e se encontrava ainda no primeiro emprego da vida, numa situação hierárquica e salarial bastante respeitáveis. Devido a uma série de desgastes mais ou menos comuns hoje em dia a relação entre ambos (que já não estava lá essas coisas antes do desemprego) só fez piorar, o que ele, eventualmente, desabafava comigo e com alguns amigos mais próximos. O sofrimento já estava, por parte de ambos, sendo sufocado por doses cada vez maiores de bebida quando, numa dessas conversas, um dos presentes soltou a bomba: “Pôxa, se o seu casamento está tão ruim por que vocês insistem em mantê-lo?”. A resposta foi um longo silêncio, no qual pude perceber, no olhar dirigido por H a cada um dos presentes, a ansiedade por qualquer tipo de ajuda. Como eu já havia experimentado comigo e com alguns outros amigos próximos a teoria do trio fantasma, percebi, naquele silencioso pedido de ajuda, um medo enorme e resolvi tentar: “De que você tem medo? Ou será que seu orgulho e sua preguiça estão impedindo você de tomar uma atitude?”. Não houve resposta na hora, o que me desanimou um pouco com o uso do “trio” mas, na semana seguinte, mais ou menos o mesmo grupo de amigos reunido, H chegou um pouco além da hora costumeira, sóbrio, e na primeira oportunidade que teve para falar deu a resposta que me mostrou a grande eficiência dessa que considero a ferramenta mais útil que eu poderia inventar, apesar de ser Engenheiro Eletricista com longa vivência na área acadêmica de Informática. Segundo H, as duas perguntas feitas na semana anterior não saíram de sua mente naquele intervalo e, a cada momento e a cada atitude, ele buscava perceber onde o medo, o orgulho e a preguiça se encaixavam. “O orgulho e a preguiça”, disse ele, “em pouco ou nada contribuem para tudo o que venho sofrendo e fazendo sofrer, mas sim o medo. Medo de levar minha vida profissional para um buraco sem volta. Dependo financeiramente de minha mulher mas sei que, caso apareça uma oportunidade de um emprego melhor, eu e nossos filhos podemos contar apenas com o salário dela enquanto arrisco uma nova mudança.” É claro que as frases exatas e a inicial do nome do meu amigo estão alteradas, tanto pelo respeito ao anonimato dos envolvidos quanto pela imperfeição da minha memória, mas a essência dos fatos está preservada. Além disso, o leitor atento e com alguma sensibilidade já percebeu que a frase do meu amigo trazia nas entrelinhas uma mensagem diferente daquela que as palavras expressavam. A preguiça e o orgulho estavam, sim, presentes na sua atitude. Ele mesmo, felizmente, acabou encontrando as pistas disso nas semanas que se seguiram.

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