Usina de Letras
Usina de Letras
153 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62228 )

Cartas ( 21334)

Contos (13263)

Cordel (10450)

Cronicas (22536)

Discursos (3238)

Ensaios - (10365)

Erótico (13569)

Frases (50624)

Humor (20031)

Infantil (5434)

Infanto Juvenil (4767)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140803)

Redação (3305)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6190)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->Estrada -- 02/01/2000 - 19:54 (Ciro Inácio Marcondes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Dia de viagem. Odeio viagem. Odeio fazer mala, separar meia, camisa, cueca, perfume (os poucos que tenho – poucos, poucos... tenho um ou dois. Não sei se posso me aproveitar desse plural pra parecer importante). Odeio pegar bíblia, odeio cobertor, odeio ficar sentado durante muito tempo. Queria ter dinheiro. Queria poder viajar de avião. Mas eu nunca vi avião. Nunca vi avião nem no céu. Às vezes é difícil acreditar que avião existe mesmo. Mas existe. Tenho televisão e avião existe, sim. A televisão não mente muito. Quer dizer, mente. Mente. Todo mundo sabe que mente, mas ao mesmo tempo mostra tudo pra todos: futebol, política, filme, sexo. Avião. Quantas e quantas vezes eu não vi um avião nos céus da tela da televisão da minha casa? Muitas, muitas. Viaje bem, viaje Vasp. Quando saí do Rio não tinha tanto avião no céu. Também... isso já foi faz tempo. Muito tempo. Hoje, é só ônibus. E cueca, e meia, e cobertor. Cobertor.
Dia de viagem. Dia de sair cedo de casa. Dia de beijar a Clara e sair. Há muito, muito mesmo, não fazia viagem. Mas desta vez era mesmo preciso. Recebi uma carta esquisita, do meu pai. Meu pai, este que eu achei que tinha morrido mesmo. Engraçado rever meu pai. Nem sei mesmo o que pensar. Nem sei se tenho dinheiro ou se ele tem ou algo assim. Não. Nem sabia que ele estava vivo. Mais de trinta anos sem falar. Trinta anos sem olhar na cara do velho, que já era velho há trinta anos. Hoje... hoje nem sei. Deve continuar velho, é claro. Mas velho aqui estou eu. Mais velho e cansado que o velho há trinta anos. Mas era ele, sim. Letra grande, enquadradada, forte. Não dá pra confundir. Foi ele mesmo que me ensinou a escrever. Ensinou algumas coisas que eu sei. Outras que eu sabia, mas esqueci. Escrever e ler me lembro. O que será que ele pensa de mim? Será que está muito caduco, já amalucado... ou será um velho lúcido... consciente... difícil dizer. Divagar sobre meu pai é algo que eu não fazia há anos. Muitos, muitos anos. Homem frio. Esquisito. Meu pai tinha uns hábitos realmente esquisitos. Pena que peguei alguns deles. Limpava as unhas com palito de dente. Nunca cortava. Nunca cortava as unhas. Só limpava. Cuspia nas palmas das mãos antes de comer. Hábito nojento. É tudo água, ele dizia. Tudo água. A água do rio é essa mesma que sai da minha boca. Essa mesmo que você bebe do filtro. A mesma que você põe pra fora quando mija. Tudo é água. Tudo é igual. Esse era meu pai.
O bilhete de meu pai era uma coisa engraçada. Papel amassado, sujo. Parecia recolhido da rua. Talvez fosse. Improvável mas não impossível. Clara não acreditou. “Deve ser brincadeira”, disse ela. Brincadeira de um dos filhos, talvez. Cidade maravilhosa, né? Foi lá mesmo que deixei um deles. Um dos meus filhos. Meu pai estaria lá, também. Clara diz que foi ele, nosso filho mais velho, que mandou a carta. Eu já não sei. A letra é igual. É daquelas coisas que não se esquece. A letra de quem te ensinou a escrever. E eu não digo essas coisas de escola, não. Digo alguém. Alguém que te ensinou a escrever. É do meu pai, sim. Talvez ele esteja morrendo, sofrendo. Deve precisar de dinheiro. Dinheiro é um troço poderoso. Poderia reconstituir minha família. Qualquer família. Deve ser dinheiro. O que mais poderia ser?
“Queria poder te ver de novo”. É este o bilhete. Nada mais, nada menos. Na carta tem um endereço esquisito, de um bairro que não sei onde fica. Porém, por mais que isso possa parecer estranho, não é meu pai que me preocupa. É a viagem. Dezessete horas dentro de um ônibus. Sim, tem gente que passa por coisa muito pior. Gente que vem do Norte, né? Gente do Norte, desce em São Paulo atrás de comida. Apenas comida. Pra isso, é preciso dinheiro. Mas é comida que eles querem, porque lá no Norte falta comida, falta terra, tem gente demais. Em São Paulo, não. Em São Paulo tudo é de concreto, as pessoas andam bonitas, de terno, mexem em coisas como o computador, comem em lanchonete. Lá não é mato, não é floresta, tem muitos prédios altos, avenidas, carros. Em São Paulo não tem floresta, não tem índio, não tem calor. São Paulo é bonito. Já fui lá uma vez. Ar difícil de respirar, gente difícil de conversar. Barulhenta. São Paulo é uma cidade barulhenta. Mas mesmo assim é bonita. É de uma uniformidade... tudo igual... tudo cinza. Cinza, preto, verde, vermelho. Das cores da cidade e dos times de futebol. Lá não tem floresta, mas tem futebol.
Não demorou muito tempo até eu decidir fazer a viagem. Clara tentou me persuadir, me convencer a deixar pra lá, mas desta vez eu quis ser insistente. Quando seu dia-dia estaciona, é preciso tentar algo novo, alguma surpresa. Liguei pro meu filho, com quem não falava há muito, também. Não, pai. Brincadeira não. Vô tá vivo? Difícil de acreditar. E o senhor, como tá? Bem? Ahnm... tudo bem, tudo bem. Vera tá bem, Fernando tá bem. Obrigado pai, tchau. Não havia sido ele. Claro que não. Não era brincadeira. Era o meu pai. Uma última surpresa no fim da minha vida. E agora tinha que viajar. Sair do interior da Bahia, um fim de mundo sem ter outro igual, voltar pro Rio de Janeiro depois de tantos anos. É preciso ser verdadeiramente corajoso para fazer isso. Quando nada se espera da vida, nada vem mesmo.
Um sapato. Sete cuecas. Quatro camisas. Um casaco. Um tênis. Duas calças. Estava bom. Dezessete horas de viagem. Viagem braba. Cansativa. Não dava pra levar travesseiro. Quanto menos tranqueira, melhor. Tudo pronto. Agora, era só partir. Um beijo na Clara. Telefonar, só quando pudesse. Um pouco de dinheiro na carteira, pra poder sobreviver. Chegando lá eu arrumava. Conversava com uns taxistas (taxistas são grandes conhecedores das grandes cidades), me arrumava. Tudo pronto. Agora era abrir os olhos e enxergar a nova realidade: a viagem. Uma longa e assustadora sessão de tortura. Entrei na rodoviária. Quatro ônibus parados, dois indo pra Salvador. Era um desses que eu ia pegar. Olhei para ele: número 3. Mostrei a identidade ao motorista e entrei. Separei os quatro reais no meu bolso. Quatro reais para ver um pai que não se vê há trinta anos. Quatro mais cinqüenta. Seria mais poético dizer apenas quatro, mas de Salvador até o Rio eram mais cinqüenta. Cinqüenta e quatro reais para ver o velho. Cinqüenta mais dezessete horas de tortura quase ininterrupta. Horrível. Entrei no ônibus já com náuseas e comecei a perceber todas as suas características detestáveis, inimigos antigos: mofo, ambiente fechado, vidro embaçado, poltrona forrada com algodão vagabundo, pinicante e irritante. E era só o começo da viagem.
Três horas até Salvador. Foi tranqüilo, apesar de tudo. Acomodei-me junto ao corredor, solitário em meu lugar. Ninguém mais estava indo para Salvador numa noite de Terça-Feira. Pelo menos não ao meu lado. Preferi ficar no corredor, porque assim as luzes não chegam tão perto dos meus olhos. Com tudo escuro posso imaginar que estou dormindo. Posso abstrair as coisas, posso não enxergar a realidade podre que me cercava. Gente fumando dentro do ônibus. Absurdo. Devia chamar a polícia e prender um desgraçado desses. Onze horas da noite e o sujeito fumando. Fumando enquanto todos os outros tentam, em vão, fechar os olhos e imaginar que estão dormindo. Triste. Ar carregado, algumas pessoas tossem. Um rapaz louro, desajeitado, sentado à minha frente, pede educadamente que o homem apague o cigarro. O homem era uma criatura diferente. Grandalhão, enfurnado numa camisa velha do Brasil, fumando um grande cigarro de palha.
- Perturba não, moleque.
E a viagem prosseguiu calada. Nada mais. Nem um pio. Só a fumaça. O homem
falou e todo mundo se intimidou. Perturba não, perturba não. Engraçado isso. Perturba não. Ninguém perturba. O único que perturba é você. Homem esquisito, bigode largo, cheio. Homem moço, ainda. Uns 34. Camisa do Brasil. Sujeito estranho. Me senti verdadeiramente incomodado com aquilo. Pode parecer algo à toa, mas eu fiquei realmente perturbado, ouvindo aquele silêncio (é possível ouvir o silêncio?) misturado ao som de alguns roncos e respirações. Ouvia aquilo de olhos arregalados, abertos, o suor descendo pela minha testa. Ouvindo aquilo, e os braços agarrados aos bancos. Minhas costas estavam quentes, molhadas. Duas horas de viagem. Cheiro de cigarro e roncos. Não conseguia tirar os olhos da camisa amarela, meio esbranquiçada no escuro. O sujeito dormindo reto, sem se mexer nem um pouco. Parecia uma pedra. Parecia um morto, uma coisa dura. Aquilo me inquietava. E minha raiva apenas se acumulava. O homem já havia apagado o cigarro há muito tempo, mas mesmo assim eu não conseguia tirar aquilo da minha cabeça. Tentei pensar outras coisas. Pensei em Clara, mas não funciona pensar em Clara. Clara eu vejo todo dia há muitos anos. Pra que pensar em Clara? É difícil ver alguma coisa nova em Clara. Tudo igual, tudo na mesma. Mulher mansa, já tá velha. Quando era nova gostava lá de umas aventurinhas. Era boa. Linda. Mulher da cidade. Clara era nome. Eu tinha nome com ela. Hoje... mais caipira que eu. Só vê TV. Não tem mais formosura, não é mais esposa. Perdeu até a esperteza. Ficou burra, mole. Até continua bonita, mas agora não dá mais. Não tem mais charme, nem nada. Tem boa vontade, mas não adianta mais. É um boi manso, que come capim aonde a gente mandar comer capim.
Pra que pensar em Clara? Procurei distrair minha mente lembrando de alguma música. Tentei primeiro algo do Nordeste, mas não veio nada. Acho que nunca decorei nenhuma música do Nordeste. Tentei alguma coisa do Rio, então, mas também não lembrava de nada. Música nenhuma, acredita? Acho que nunca gostei de ouvir música mesmo. Tudo o que vinha à minha mente era uma valsa muito antiga. Dos tempos de colégio. Não sabia de quem era, quem cantava, nem sabia a letra. Mal sabia o ritmo. Não adiantaria tentar assoviá-la. Não ia conseguir. Nem sei assoviar. Quem não canta e não gosta de música não sabe assoviar. Fiquei apenas com a valsa na cabeça, então, olhando para o amarelo branquelo da camisa do Brasil.

2

Em Salvador peguei minha mala e procurei logo o outro ônibus. Esse sim, coisa cheia, cara, capaz até de ter gente rica. Devia ser meia noite e meia. O ônibus saía meia noite e quarenta e cinco. Engraçado isso. Um ônibus saindo pro Rio de Janeiro à meia noite e quarenta e cinco. Peguei minha mala e fui direto para o box onde deveria estar meu ônibus, mas, como era de se esperar, ele não estava lá. Meia noite e meia e ele não estava lá. Coisa daqui do Brasil, mesmo. Aquilo me deixou mais irritado ainda. Porém eu havia ficado mais tranqüilo. Havia saído do ônibus. Não agüentava mais a atmosfera ruim, as mesmas pessoas inquietantemente desconhecidas, os mesmos cabelos bagunçados, os grampos, sacolas, doces, água... tudo aquilo me enojava. Era como uma atmosfera porca e intimista... algo parecido com o que você vê quando olha para um vaso sanitário que não funcionou direito. Para mim, o clima de um ônibus de viagem é esse. Por isso, quando saí, apesar da decepção da demora para a chegada do outro ônibus, me senti mais animado. Vi aquelas pessoas todas se afastando, o menino ir para um lado, o homem da camisa do Brasil para outro. Sentei-me, então, para tomar um café e comer um pastel. Me sentia uma pessoa quase que renovada. Pastel de palmito. Nada melhor do que pastel de palmito. Isso até no interior tem. Pastel de palmito. Com molho de tomate. Massa. Pura massa excitando seu cérebro. Comer um pastel de palmito. Um pastel de palmito, por favor. Dois. Dois de palmito, por favor. Meu estômago pede ajuda. Mas mais ainda meu cérebro. Meu cérebro e minha paciência precisam de descanso. Ah, o que você tem para descansar o cérebro aí? Algum comprimido, algum relaxante? Alguma dessas drogas, tipo maconha? Tem pelo menos uma cerveja? Não, não tenho não, senhor. O único relaxante que eu tenho aqui é um pastel de palmito. Por acaso o senhor passou por uma insuportável viagem de três horas de Jequinhá até Salvador? Ó, passei sim. Me veja, portanto, dois pastéis de palmito. Vou colocar mais dois para viagem, tudo bem, senhor? As próximas quatorze horas serão muito piores.
- Certo, certo. Mais dois para viagem, então. – Cinqüenta centavos um pastel de palmito com molho de tomate. Vezes quatro, dois reais. Dois reais por um curto momento de deleite. Uma hora da manhã e nada de ônibus. Sentei-me no banquinho de espera e fiquei a observar meus próximos companheiros de viagem. Tentei pensar um pouco em meu pai, mas não consegui. Não consegui ocupar minha mente com ele. Estranho. Nada vem... absolutamente nada. Na verdade, pouco me importa meu pai. Meu pai está morto; há pelo menos vinte anos, pelo que sei. Eu nunca mais havia pensado em meu pai. Meu pai nunca me deu saudades. Nunca senti falta de nada. Eu não devia mesmo ter respondido à mensagem do bilhete. Eu não sinto nada por meu pai. Estou velho, também. Ele não pode se gabar de que é velho, como fazia antigamente. Agora, somos iguais.
Crianças. Uma, duas, três diferentes. Pelo menos. Isso tornará a viagem pior. Criança berrando a noite inteira. Criança se cagando. Horrível. A pior coisa nas viagens de antes era quando as crianças eram pequenas. Hoje não mais, claro. Mas antes... trocar fralda, e o cheiro, as pessoas olhando. Um absurdo uma criança passar por viagem de ônibus, na estrada. Passar por toda essa sujeira e esse ambiente ruim. Faz mal à saúde. Três crianças. Dois bebês e uma menina pequena. E um homem com um menino de uns dez anos. Um senhor com pinta de gente importante. Duas mocinhas bonitas. Bonitas como era Clara, há muito tempo. O tempo passa. Passa rápido. Essas mocinhas vão estar velhas daqui uns anos. Não serão muito diferentes da Clara. É triste isso. Às vezes me pergunto se homem é animal de uma mulher só. Acho que não. Não gosto mais da Clara. Não sinto amor nem nada mais por ela. Uma boa pessoa, mas não quero nada com ela. Talvez por isso essa fuga pra ver meu pai. Fuga.
Hora de entrar. Junto comigo, três crianças, duas mocinhas, um senhor grisalho com ar de importante, duas famílias inteiras, um jovem. Outras pessoas, também. Desta vez meu lugar é na janela. Poltrona número 22. É um ônibus mais bonito, mais caprichado que aqueles de antigamente. Tem água, boas cortinas, até cobertor. Vi um lá fora que tinha televisão, mas esse aqui não tem, não. Mas isso não muda minha opinião. Sento-me na poltrona e fico logo apreensivo. Não estava bem naquele dia. Úlcera. Tenho úlcera no estômago. Não gosto de passar por mudanças. Mudanças são muito dolorosas. Prefiro me recolher, fugir, desistir. Sou um desistente. Um desistente que jogou sua vida fora morando no interior. Acho que já não há mais espaço para mim nesse mundo. Médico, médico. Grande merda ser médico. Ser médico e não ser mais nada. Ser médico e não ser gente. Lembro-me bem de quando minha mãe (essa sim, finada porque vi o corpo) me dizia que meu futuro era ser médico. Ela mesma, de Jequinhá. Ser médico, casar com uma moça bonita, fazer bonitos filhos e ser feliz. Era o que minha mãe dizia. Médico como seu pai queria. Hoje, de que adianta? Nada. Sou uma sombra de ser humano, mais covarde do que uma barata. E isso? Isso que estou fazendo, sentado aqui nesse ônibus, será coragem? Será uma forma de tentar aliviar todo o fracasso de toda uma vida? Me tornei um caipira. Moço da cidade, moço da cidade. Hoje sou um moço do campo. Um velho do campo. Nem avião nunca vi. Se não fosse a televisão, estaria agora viajando para outro planeta.
Sempre acho que trouxe coisa demais. Quanto tempo ficaria viajando? Nem sabia. Não sabia de nada. Duas calças. Se eu ficasse um mês, um ano, um dia. Duas calças. Duas calças e pouco dinheiro. Me pergunto o porquê do perfume. Perfume? Perfume que eu não usava há muito e muitos anos. Pra que perfume? Qual o sentido de perfume? Ficar com odor agradável para atrair mulheres? Macho que atrai fêmea com seus caracteres evolutivos. Biologia básica. Eu sou assim. Uso (usava) de meus dotes diferentes para atrair as fêmeas. Perfume. Perfume serve pra isso. Serviu na Clara? Quando era moça. Talvez. Não me lembro. Não abri o frasco desta vez. Não valia a pena. Perfume velho, nem deve prestar mais. Então, pra quê? Para procurar novas mulheres, novas fêmeas? Não se sabe. Não se sabe. Talvez para meu pai. Não entendo essa coisa esquisita que estou sentindo com a memória de meu pai. É um sentimento estranho. Não é nostálgico. Não é saudade. Nem me lembro mais de meu pai. É um sentimento diferente. Talvez diferente dos outros. Uma coisa nova. Talvez o perfume seja para me apresentar a meu pai. Me mostrar limpo, feito, velho. Mostrar para ele que tenho filhos e que fiz tudo certo. Me casei com uma moça linda, me tornei médico, ganhei dinheiro até me refugiar no interior. E nunca mais sair, com falta de dinheiro para viajar de avião. Falta de trabalho, falta de qualificação. Até esquecer, esquecer tudo e matar muita gente na mesa de operação. Matei doze. Dois na cidade, dez em Jequinhá. Doze pessoas que poderiam ter vivido. Culpa minha? Não, claro que não. Culpa de meu pai, e de minha mãe. Médico. Hoje nem isso sou mais. E ainda assim levo o perfume.
Antes do ônibus partir fiquei alguns minutos acomodado à poltrona, as luzes acesas. As meninas se sentaram na minha frente. Duas belas jovens. Uma loira, eu chutaria uns quinze, dezesseis anos. A outra mais bem formada, mais velha, devia ter uns dezenove, vinte. Perdi noção dessas coisas. O tempo me levou tudo. Levou minha cultura geral, minha inteligência. Tudo o que eu vi foi gente velha morrendo e adoecendo. Em Jequinhá só morrem os velhos e só adoecem os velhos. A televisão se tornou monótona, por isso a dispensei, também. Tudo se tornou monótono para mim. Me prendi numa caverna durante anos e só agora estou saindo. Cidade maravilhosa.
- Cidade maravilhosa... – murmurei. As meninas pareciam felizes, sorrindo.
Pessoas jovens. Me deu vontade de sorrir um pouco, também.
- Uma pena voltar agora... logo agora...
- Ah, saudade. Saudade de Salvador. Vai ser difícil agüentar a saudade.
Saudade de outros tempos, em que tudo poderia ter sido feito por outro caminho, por outros meios. As meninas conversam. Saudade do Flavinho, saudade da Mônica, do Gerson, saudades de todos. Das ruas, das pessoas, da água do mar de Salvador. Rio de Janeiro. Agora, Rio de Janeiro. O ônibus já estava partindo quando meu companheiro de viagem, o homem do corredor, chegou. Era o homem com o menino de dez anos. Crianças. Do meu lado durante quatorze horas. Difícil de suportar. Ele se acomodou, olhou para mim. Quando percebeu que eu não olhava para ele, tentou ajustar o garoto ao seu colo. Duas pessoas na mesma poltrona por quatorze horas.
Era um homem magro, de bigode. Carregava uma sacola que colocou lá em cima, onde se põem as bagagens de mão. O menino era magricela, também. Garoto quieto, ao menos. Olhou para mim curioso por alguns instantes. Meus poucos cabelos grisalhos. A face endurecida. As mãos grandes. Sempre notaram minhas mãos. Minhas mãos grandes, desta vez repousadas sobre o encosto (encosto esse que era meu. Um único braço para duas poltronas...). Olhou para mim, mas logo perdeu o interesse. Logo no começo da viagem eu fechei a janela. Mas seria difícil mergulhar na escuridão naquelas condições.
Meu medo de viajar de ônibus me impediu de conhecer outros lugares. Quando era jovem, nem tanto. Depois, me acomodei. Nada mais funcionava. E, naquele momento, olhando o ônibus se movimentar e a rodoviária de Salvador ir embora, senti um calafrio. Não entendi bem porquê. Estava teoricamente preparado para a viagem. Parece que não, mas eu levei dias para decidir se ia ou não. Me perguntava se meu pai valeria todo esse tempo dentro do ônibus. Estava nesse momento quando o homem do corredor me abordou pela primeira vez:
- O senhor vai pro Rio? – perguntou, sem olhar nos meus olhos. Estava ainda segurando a criança, que se remexia um pouco. Vou.
- Vou.
- Conhece gente lá? É de lá? – Perguntou ele novamente. Fiquei um pouco impaciente. Não gosto de conversa de ônibus. Conversa de ônibus não serve pra nada. Estava eu lá, dizendo a uma pessoa completamente desconhecida para onde eu ia, porque ia, com que finalidade ia, por quanto tempo ia. Uma situação desagradável. Você nunca sabe quem é essa pessoa misteriosa que senta ao seu lado. Nunca sabe. Pode ser qualquer um. A criança pode ter sido seqüestrada, ele pode estar fugindo da esposa, pode ser um bêbado, um maluco, um vadio. Pode ser qualquer um. Não tenho que dizer quem eu sou! Pra que dizer quem eu sou? Pra que dizer pra onde vou? Que lhe interessa onde estou indo, rapaz! Acomode-se na sua poltrona e durma sem fazer barulho! Esse é o melhor contato que poderemos travar.
- Tenho família. Família. – digo, fechando os olhos para ele perceber que não quero conversa. Ele percebe, e se cala também. Um momento de silêncio se constitui. Silêncio parcial. Meia hora de viagem. As meninas conversam, ainda. Meu namorado detesta camisinha. Já me fez um discurso enorme contra a camisinha, dizendo que é broxante, que tira todo o tesão, dá raiva. Eu não sei explicar direito. Precisava ver ele falando. Parecia até um político! E o foda é que vendo ele falando parece até verdade mesmo. Você acredita, entende? É foda mesmo pra ele. Pra mim também é, é claro. O Toni gosta de usar camisinha? Nunca reclamou. Acha necessário. Eu também. Nunca reclamou, não. Não que eu me lembre.
Aos poucos, as vozes das meninas se misturam ao ronco do motor do ônibus. Um barulho uno, algo parecido com um zmmmmmmmmmmmm. Zmmmmmmmm. Um Zmmmmmmmm somado a um choro de criança lá na frente. Um choro, nas primeiras duas cadeiras. As poucas conversas, os roncos, cochichos, risinhos, tudo se soma ao Zmmmmmmmmmm. É até ma coisa agradável, aconchegante. Como um pastel de palmito. Foi um dos poucos momentos da viagem em que pude relaxar. É um exercício interessante, esse. Tentar capturar todos os sons ao seu redor e transformá-los em um Zmmmmmmmmmm de motor, como se tudo fosse sendo tragado pelo mesmo som, devagar até você nem perceber. Comigo funciona.
Duas horas de viagem e a mesma monotonia. Tentei me aperceber, tocar em mim mesmo, tentei exercitar minha mente de outras formas, mas não adiantava muito. Todos já estavam calados. O senhor com ar de importante era o único com a luz acesa. Parecia estar lendo um livro, lá na frente. O resto, todos dormindo. Eu me sentia como uma coisa inutilizada, sem nada para fazer, sem nada para me distrair. Minha ansiedade era tamanha que eu não conseguia ficar parado na poltrona. Me remexia, o tempo inteiro. Os piores momentos eram quando eu tinha que me encostar no homem do corredor, uma coisa nojenta, horripilante. Às vezes, era inevitável. Eu preferia nenhum contato físico, nem um toque sequer, nenhuma palavra, mas às vezes era inevitável. Virava o tornozelo, o joelho, tentava ajustar os ombros, as orelhas. Às vezes encostava, por mais que me esforçasse, principalmente no menino. Eram duas pessoas no outro banco. Difícil se esgueirar. E lá estava a perna pequena dele, encostada na minha, suando porque no ônibus não havia ar condicionado. Em alguns momentos eu deixava. Tentava esquecer aquilo, botar minha mente em outros lugares. Por alguns minutos, conseguia, mas era apenas por alguns minutos. Logo depois eu desgrudava minha perna da dele. Desgrudava. Era uma coisa adesiva, preguenta. Desgrudava. A perna era o que mais encostava, mas muitas vezes o pai estava virado para o meu lado, a boca aberta, o hálito forte. Invadia com a cabeça a minha poltrona. Eu tentava deixá-lo, esperando que saísse depois, mas ele não saía. E então eu tinha que empurrá-lo, e às vezes ele acordava. Constrangedor. Olhava para mim de forma confusa, como se eu tivesse feito algo de errado. Ninguém gosta de ser acordado. Olhava para mim aborrecido e se virava para o outro lado. Nesse processo, a criança também acordava, se remexia, tentava dizer algo ao pai, mas o pai não queria atenção. E aquela cena toda, que se repetia o tempo todo, me incomodava, me sufocava. Eu sentia calor, minhas pernas e minhas costas suavam. E não tinha o que fazer. Sentia calor mas não sentia sede. Nem sabia se ainda tinha água no fundo ônibus.
Primeira parada. Trinta minutos. Trinta minutos de liberdade. Sair daquela angústia, daquele sofrimento intenso. Coisa que te corrói o tempo todo. Muito desagradável. Trinta minutos e eu desci. Já haviam se passado três horas da viagem. A parada era grande, alguma cidade mais ou menos populosa, parada de trinta minutos. Desci como se tivesse saindo do inferno, como se tivesse saindo de uma sauna quente cheia de homens nus, rindo, bebendo e se divertindo. Como se tivesse saindo de um orgia nojenta e sádica. O ar puro de fora do ônibus logo encheu meus pulmões. Estiquei as pernas, me espreguicei. Quase todos desceram: o homem do corredor com o filho, as meninas, as moças com as crianças, o homem do livro... todos. A parada oferecia uma diversidade de coisas bastante grande: fitas, comida, roupas, utensílios em geral. Tudo muito desprezível, tudo lembra viagem. Fui até o balcão, com minha ficha, pedi um café. Enquanto isso, ouvia as pessoas todas conversando, está frio, a viagem ainda demora, em breve estaremos no Rio. Tudo aquilo com um copo pequeno de café nas mãos. Café, para me manter acordado mas anestesiado de alguma forma. Alguma coisa que apague minhas percepções, por mais que me mantenha acordado. Quando estudava medicina há muito tempo, tomava muito café para me manter acordado. Eram horas e horas, noites e noites acordado. Dois, três dias sem dormir nada, sem pregar um olho. Nos dias seguintes, meu corpo estava sempre exausto, sempre machucado, sempre querendo dormir o máximo possível. Era o que eu fazia nos fins-de-semana. Dormia, dormia, sem bebedeira, sem festa. Gostaria que algo quebrasse o gelo dentro de mim, minhas sensações, minha frieza. Gostaria de virar tudo de cabeça pra baixo, voltar no tempo e desfazer tudo. Voltar trinta anos no tempo e desfazer tudo. Tudo. Não deixar nada. Destruir tudo e nascer de novo. Tudo é frustração. Tudo é frustração quando se é humano.
- Está frio.
- Está. Vou pedir um chocolate. Acho que é trinta centavos.
Trinta centavos por um chocolate. Um copinho de chocolate sendo vendido a trinta centavos. Não entendo porque me apego a essa situação. A essa informação, tão vaga e vazia no tempo que perde todo e qualquer sentido se dita sem um motivo real. Trinta centavos por um simples copo de chocolate. é isso. A informação é toda e pura. Meu filho gostava de chocolate quando era pequeno. Por isso. Porque lembrei de meu filho mais velho. Chocolate quente, na fazenda. Leite direto da vaca. Hoje, nem sei mais. Nem me lembro mais dele. Não o vejo há anos e ele provavelmente não sente nada por mim. Isso torna a recíproca verdadeira. Gostaria de voltar a sentir algo pelas pessoas, mas parece que tudo dentro de mim está morto. Nem meu pai, um personagem enigmático que eu nem conheço mais, nem Clara, que hoje não passa de uma pessoa como outra qualquer em minha vida, e nem por nenhum dos meus três filhos. Nada.
- Está frio mesmo aqui fora!
- Pois é. Devia ter trazido mais roupa na sacola. Dentro do ônibus tá frio, também. Acho que vou comer um pastel – a menina menciona. Isso me lembra que também estou com fome. Preciso comer algo salgado, depois algo doce. É um costume meu. Comer coisas salgadas e doces ao mesmo tempo. Fico parado olhando as meninas enquanto elas pedem à garçonete, que está sonolenta, as olheiras à vista. Meu estado tão grande de isolamento das coisas do mundo se tornou um exílio para mim. Agora, preciso observar e notar tudo o que acontece às pessoas para poder compreendê-las. Um pastel de carne, ela pede. Um pastel de carne que a garçonete retira de dentro do vidro. Um pastel frio e murcho. Nem ao trabalho de colocá-lo no microondas ela se dá. Um pastel frio de carne ruim. Muito nervo, provavelmente muito nervo e cebola. Nervo, cebola e cartilagem. Isso é um pastel de carne. As outras pessoas ficam sentadas, assistindo à televisão. Um televisão velha e solitária pregada no teto. Sem som, apenas imagens. Compro para mim um quibe. Minha necessidade de carne se torna latente. Me sinto como uma espécie de canibal, enquanto como. Na verdade, como um abutre parasita que come as carnes que outro animal matou. É assim com o homem, o mais baixo de todos os animais.
- A pilha do meu walkman acabou. Você tem?
- Tenho, mas é pro meu. Ali vende, eu acho.
- O que você tem pra ouvir? Eu trouxe só aquela fita do Prodigy.
- Algumas fitas. Você não vai gostar.
- O quê?
- Tem uma do Eric Clapton, uma do Jeff Beck, uma dos Rolling Stones. Ah, tem uma do Beck, também. Gosta de Beck?
- Só ouvi aquela música “Loser”. É boa.
- Se quiser, te empresto. Já ouvi muito aquela fita. Viagem chata. Tem que ouvir muitas vezes as mesmas fitas.
- Acho que aprendi algumas lições nessa viagem. Sei lá. Viagem é um negócio meio purificante. Você enxerga melhor as pessoas como elas são.
- É verdade. É uma coisa meio esquisita. Você volta nem feliz nem triste. Apenas volta mudada de alguma forma. Sei lá...
- É bom para descansar a mente um pouco, mas é uma coisa meio perturbadora. Você acaba conhecendo de verdade as pessoas.
- Queria tomar um milk-shake...
Devoro o quibe em menos de um minuto. Oitenta centavos. Mais trinta centavos por um café. Um real e dez centavos no total. Tento me fixar na conversa das meninas, mas nada ali parece interessante. Nada, de fato, está me parecendo interessante. Uma dor de cabeça forte me aparece de repente. É como uma agulhada cheia de veneno no cérebro. Tiro uma aspirina do bolso e corro até o banheiro, sujo e mal tratado. Mesmo assim olho meu rosto pelo espelho embaçado. Passo uma água e gasto o último papel que sobrou naquela coisa moderna de se guardar papel. Nunca havia visto aquilo e me envergonho. Caipira. Trinta anos ilhado, progredindo em nada. Desaprendendo a ser civilizado. Lembro-me dos primeiros anos: “Doutor”. Doutor. De Doutor a médico de família. De Doutor a dotô. Hoje nem mais dotô. Nem posso. Nem posso. Não aspirar a ser médico. Não posso mais recomendar nada, examinar nada. Não posso medicar nada. Nem dotô mais.
Compro dois bombons Sonho de Valsa para terminar de matar minha fome. O quibe não foi nada. Quando fico ansioso fico com fome. Fome para mastigar, movimentar e ocupar o cérebro, para não ter que pensar. Enquanto mastigo, penso menos. Dois bombons, apenas. Não posso acabar com meu dinheiro. Quando estou saindo, paro em frente à banca de jornais. Revista pornográfica. A única coisa que me interessa. Antigamente eram os livros. Bons livros, únicos que me acompanharam verdadeiramente nessa jornada de solidão dos últimos trinta anos. Umberto Eco, Frederick Forsyth, Jorge Amado. Bons companheiros. Hoje, revistinha. O homem do livro também está lá, olhando os outros livros. Pego uma das revistas bem ao lado dele. Sexo explícito. Penetração vaginal, anal, sexo oral. Procuro algo como bestialismo, homossexualismo. Bestialismo não encontro. É mais raro, mais difícil. Caipira. Há quantos anos sem ver uma revista pornográfica.
- Há quantos anos... – murmuro, quase sem perceber. O senhor do livro ouve, olha para mim um pouco espantado. Olha um pouco para a revista, que eu folheava. Era uma revistinha muito baixa, pequena, preta e branca. Revistinha. Dois e cinqüenta para ver algumas mulheres e alguns pedaços de alguns homens, todos fazendo coisas forçadas e tristes. Preferiam estar fazendo alguma outra coisa. Preferiam, preferiam. Preferiam trabalhar num restaurante, num escritório, numa escola? Preferiam. Será que essas pessoas gostam de ostentar o corpo para todos: peitos, vagina? O que isso mostra de uma mulher ou de uma pessoa? Penetração. Penetração é algo cabível a qualquer um, a qualquer pessoa. É difícil entender a lógica da pornografia, mostrando algo tão íntimo e secreto do ser humano de forma tão analógica e científica. Não há nada ali além de peito, vagina, penetração. é um vazio inconcebível. O homem olha, estranha, se sente à vontade. Um senhor grisalho, mais velho do que eu, com mais pose, mais arrumado. Timidamente ele começa a abandonar o olhar aos livros e a direcioná-lo às revistas pornográficas. Primeiro, alguns olhares tímidos. Às vezes, olhava para mim, pra ver se eu estava vendo o que ele fazia, mas eu estava apenas folheando a revistinha de dois e cinqüenta. Apenas folheando. E ele olhou de volta, espiou. Pegou uma. Depois outra. Duas revistinhas de dois e cinqüenta. Folheou rapidamente uma delas, comprou e saiu. Larguei a minha na estante.
Trinta minutos passaram depressa. As meninas já tinham subido. A senhora gorda, a filha mais jovem e o bebê também (eu tinha falado da senhora gorda, a filha jovem e do bebê? Possivelmente apenas do bebê). Acompanhei com o olhar as pessoas todas subindo no ônibus. Fiquei apenas lá, parado, observando o motorista, que me chamava, e a tela de televisão, muda, artística. Não conseguia entender certas coisas. Entrei no ônibus atônito. Ia passando pelas poltronas e tentava identificar um pouco de vida nos rostos das pessoas. Não sei porque, mas tudo o que tinha vontade era de gritar para todos eles que estão jogando a vida fora, caminhando rumo a um abismo psicológico, onde nada está encaixado no lugar certo. Quando cheguei à minha poltrona estava tomado por uma depressão forte. O homem do corredor já estava lá, acuado. Olhava pra mim com um temor estranho. De alguma forma, eu infligia medo. Não sei exatamente porquê eu sorri para ele quando voltei ao ônibus. Não conseguia entender como a viagem me deixava tão mal.
- O senhor está indo pro Rio?
- Tô, sim. Eu e o meu menino. E vocês?
- A gente está voltando pro Rio também. Fomos fazer um curso em Salvador.
- É mesmo? Curso de quê?
- Psicologia. Nós estudamos psicologia.
- Ah... e era bom esse curso?
- Era, sim. A gente achou bom. Nem tudo era bom, mas quase tudo. Quase tudo.
A voz do homem era estranha. Mansa, grave, enrolada. Quando dizia frases maiores, o que era raro, ficava difícil a compreensão. Cinqüenta reais de passagem e eu não entendia o que aquele homem estava fazendo ali. A menina parecia desinteressada, também. Me perguntava se ela se dirigiria a mim também, mas não se dirigiu. Ficou apenas papeando de forma superficial com o homem.
- Nós compramos umas balinhas para o menino. Como ele se chama?
- Ah, é André. Diz obrigado, André.
- Obrigado. – disse o menino, aceitando as balas. Um punhado de balas baratas.
Baratas, mas aquilo foi o suficiente para despertar minha fome. Lembrei-me dos bombons. Precisava comer algo doce, naquele momento. Queria os bombons, mas não sabia se os pegava ou não. Olhei para o menino, chupando as balas com uma cara boa enquanto o pai brincava com a mão dele. Pensei se tirar os bombons da sacola e devorá-los sozinho. Seria um ato mal-educado e egoísta. Seria. Não conseguia parar de pensar nisso. Tentei deixar os bombons para outra hora, quando não houvesse ninguém, mas não consegui. Uma fixação em desafiar a moral, a ética e a educação se apoderou de mim de forma maliciosa. Não conseguia parar de pensar nos olhos do menino pedindo o chocolate enquanto ele se derretia em minha boca. Não resisti. Não resisti e peguei os bombons, os dois. O pai já parecia estar dormindo, mas o filho estava acordado e me olhou timidamente, da mesma forma que o senhor grisalho do livro e das revistinhas. Por um instante senti uma pena intensa. Uma das únicas pessoas inocentes ali, o menino. Ele e os bebês.
Fiquei segurando os bombons por um tempo. Segurava-os, passava-os de uma mão para a outra, sem bem saber o que fazer. O menino continuava, quase sempre, vacilando e dobrando os olhos para espiar um pouco. Eu sentia vontade de oferecer, mas não conseguia. Sabia que depois sentiria fome, e então os bombons fariam falta. Mas mesmo assim eu não conseguia fazer os gestos certos. Não conseguia desembrulhá-los e comê-los. As meninas, na frente, continuavam conversando. Depois da parada, é sempre assim: conversa. Conversa por um, dois minutos e tudo se silencia novamente. Um, dois minutos e os menino estaria dormindo. As balas haviam acabado. Pobre criança. Pobre eu. Olhava os bombons, tinha vontade, muita vontade de comê-los. Meu estômago fervia, o ácido clorídrico destruindo suas paredes furiosamente. A vantagem do psicólogo é ser um observador. Eu acho que é bom, isso. Observar e não interferir. Apenas dizer, opinar, mas não participar. Invadir a mente das pessoas e conhecer todos os seus segredos, mas nunca se envolver com isso. Esse é o lance. Por isso escolhi. Pode parece contraditório, mas não gosto de me envolver. Gosto simplesmente de pegar e ouvir, ou ler, ou observar. Já leu revistas em quadrinhos? Não, nunca li. Você gosta, né? Adoro, adoro. Quer dizer... gostava muito mais antes. Eu me lembro... você se lembra daquele meu namorado, o Roni? Lembro, lembro. Um pouco, só. Quando te conheci, você tava terminando com ele. Era um cara meio doido, pelo que me lembro. Pois é, pois é. Ele que lia quadrinhos. Adorava revistinhas. Eu namorava com ele desde o segundo grau. Aí ele me emprestava as revistinhas. Conheci um monte de coisa legal, dessas revistinhas de Homem-Aranha, essas coisas. Ele tinha muitas. Li algumas. Tem bastante profundidade psicológica, aquilo. é mesmo? Nunca li. Tem, tem sim. Tem um personagem que se chama Vigia. É tipo um Deus, um semi-deus, algo assim, sabe? O Vigia é que nem eu: apenas observa, conta, relata, mas nunca interfere. Você acha que ser psicólogo é ser isso? Não sei, não sei. Não sou psicóloga ainda, mas escolhi isso por causa disso, entende? Sei, sim, sei. Não sei direito se penso do mesmo jeito que você. Acho que não. Eu já gosto de ajudar as pessoas. O ser humano é muito complexo. Alguém precisa estudar isso. Gostaria de fazer mais uns estudos psicológicos, arquivar e guardar tudo, escrever livros. Isso é legal. Isso é mais legal. Registrar. Você não tem que se limitar a guardar sua experiência com um ser único, com as pessoas. Você tem que tirar algum proveito disso, mostrar o resultado disso de alguma forma, pra que todos possam entender. O que você quer dizer com isso? Quero dizer que poucas pessoas estudam a... a “alma”, por assim dizer, a psique do ser humano a fundo. A gente vê um bando de picaretagem, né? Pois é...
Pois é... passaram-se três minutos. Três minutos e eu abri o primeiro bombom. O menino imediatamente virou o rosto para mim. Dei uma mordida prazerosa, que deixou apenas uma pequena lasca de chocolate em minhas mãos. O resto era apenas plástico e alumínio. Meu estômago agradeceu de imediato. Derreti o chocolate, cremoso, em minha boca. Esbocei até mesmo um sorriso. O menino continuou olhando, e eu continuava aquele jogo sádico, mesmo sem a intenção de fazê-lo. As meninas continuavam a conversa. Três minutos e ninguém havia dormido. Parecia até algo diferente. Logo peguei o segundo bombom. Não havia como resistir. Sempre adorei chocolate, de todos os tipos. Uma das únicas coisas que ainda me proporcionavam prazer era chocolate. Mais do que Clara. Chocolate era definitivamente melhor do que Clara. Lembrei de Clara e olhei novamente a silhueta das meninas. Psicologia. Eu havia errado nos cálculos. Devo estar velho, mesmo. Muito velho e estúpido. Uma de quinze e uma de dezenove.... ambas acadêmicas. Impossível. Deviam ter mais de vinte, as duas. Uma ainda me parecia muito jovem, mas devia ter mais de vinte também, com certeza. Ambas eram belos exemplares de ser humano, prontas para procriar e gerar filhos fortes e sadios. Ambas definitivamente proporcionariam bom sexo.
Dei mais uma vasculhada no ônibus. Mais alguém acordado? Olhei para a senhora com a filha e o bebê. Nada de novo, nada de incômodo. Havia mais uma família, acho que um garoto, um bebê e uma menina. Com a mãe e o pai. O bebê chorava, e não parava. As meninas conversavam e o ônibus fazia barulho. Eu ainda não havia conseguido morder o bombom. Olhei para ele: o menino agora tentava dormir. Provavelmente estava pensando no doce. Quando se quer algo, não se consegue parar de pensar naquilo. Quando era novo, eu só pensava em sexo. Só pensava em sexo o tempo todo. Era frustrante ir para a cama sem sexo: ficava lá, imaginando minhas colegas de curso, me masturbando. E era feliz quando conseguia sexo. Nossa, era bom... eu me sentia grande, forte, revitalizado. Sexo é medicina. O melhor remédio para todos. Estranho desenterrar tudo isso agora, tantos anos depois. Talvez as meninas. As meninas e o garoto. Todos eles me trazem lembranças, cada um uma página do meu passado, tudo sendo revivido, aqui dentro desse ônibus. O menino sem bombom, as meninas sexuais. Por um instante me senti um verme, mas logo depois me acomodei na poltrona. O bombom continuava na minha mão. O chocolate estava grudando nos meus dedos, derretido, mas eu não conseguia comê-lo. Senti um pouco de náusea, no começo. Tentei levá-lo à boca mas não sabia o que me impedia. Olhei para o menino, que estava de olhos fechados enlaçado pelos braços do pai: podia ser ele? Podia, podia, mas eu não conseguia fazer nada. Comecei a me remexer. Me remexia quando me sentia tenso e nervoso. Novamente o formigamento. Minhas costas suando, minha testa suando. Pensei estar sentindo febre. Comi o chocolate de uma vez, nervoso. Precisava ir até a bagagem de mão para pegar um comprimido. Precisava de um comprimido, uma aspirina, qualquer coisa. Me lembrei da história do sexo, do remédio, tudo me pareceu confuso. As meninas ainda conversavam:
- Agora, é só conseguir alguma coisa tipo um trabalho numa empresa, algo do tipo. Acho que dá. Psicologia está muito valorizado hoje. A gente tem sorte, muita sorte.
- Vai querer auxiliar as pessoas a entrarem em empresas?
- Chamam isso de psicologia industrial. Você sabe. Hoje o mundo é tão caótico... pouca gente consegue se manter sã. Nosso trabalho vai ser escolher essas pessoas e botar pra dentro das empresas. Você sabe, aqueles clichês todos: gente criativa, bem intencionada, trabalhadeira, com boa vontade, gente que sabe resolver as coisas...
- Coisa taylorista.
- Totalmente.
- Acha que tá pronta pra escolher gente assim?
- Gente sã?
- Sei lá se é gente sã mesmo. É o que chamam de gente sã. Gente sã, pra mim, é gente feliz.
- Esse novo modelo de trabalhado empresarial é meio claustrofóbico. As pessoas fecham as suas portas... “criam” os seres humanos mais ou menos pra serem bons funcionários...
- Isso. Já leu Dilbert?
- Dilbert? Não. Que é Dilbert?
- Um quadrinho que fala dessas coisas...
Coisa taylorista. Quadrinho. Gente sã. Meu estômago parecia estar sendo corroído. Não sei o que despertou isso. Dois bombons devorados, um enorme peso na consciência e uma sensação muito estranha de desconforto. Úlcera. Úlcera provocada por cigarro, cerveja, coisas ruins. E um médico. Grande médico. Sabe o que é errado e faz o errado, de cara limpa, todo mundo vendo. Horroroso. Pus a mão no estômago. Suco gástrico, sensação incômoda. Eu não sabia o que fazer. O ônibus quente, as meninas falando, um bebê berrando lá na frente. Fechei os olhos, abaixei a poltrona e tentei esquecer tudo. Impossível. Me lembrei do rosto de meu pai quando era novo. Eu devia ter uns poucos anos... dez, nove. E meu pai me olhando, sóbrio, sempre fumando seu charuto. A casa emporcalhada. Minha mãe lavando pratos. Cheiro de gordura e charutos. E eu lá, sozinho, tentando pensar nas coisas, sentado no chão empoeirado. Cheiro de gordura pela casa. Fumaça vindo da cozinha. Meu pai com o jornal na mão. Você um dia vai ser sucesso, meu filho. Médico dos bons, doutor de político. Um dia, talvez, no senado, na câmara, no parlamento, hm? O que acha, meu filho? Um dia comendo a mulher do senador, outro dia a do juiz. Hm? Um dia deputado, um dia médico. Um dia rico. O que acha, hm? Qualquer dia desses, te dou um charuto, pra poder aprender a ser elegante. Um dia ser fino, um grande comedor. Quer ser um grande comedor? Tem que fumar charutos, falar embolado, andar de fraque. Tem que falar até de futebol, de praia, de mulher. Tem que saber todas essas coisas, meu filho. Assim que se pode ser grande.
Assim que se pode ser grande. E eu olhava quieto, tentando ver e interpretar que figura intrépida era aquele homem de bigode largo sentado na poltrona de casa. Poltrona dele, claro. Ninguém ali sentava senão ele. Era um trono. Coisa de doido. Velho forte, mas esquisito. À noite eu ouvia os gemidos da minha mãe. Não sei se ele batia nela, ou se era só sexo, ou se era algum tipo de sadomasoquismo. Nunca vi. Nunca o vi batendo nela. Nunca bateu em mim, engraçado. O tanto de briga que vi dele na rua, espancando, esmigalhando os dentes de uns pobres coitados, uns pobres bêbados. Tudo por causa de uns poucos cruzeiros, um pouco dinheiro, um café, um pão, um jornal. Tudo era briga. O homem amava aquilo. Amava aquilo e o seu jornal. Nada deixava ele mais tranqüilo do que acender um charuto, sentar na poltrona, ligar a TV numa luta de boxe e ler o jornal. Gostava de ler pra todos na casa as matérias que escrevia. Gostava de acentuar os elogios a si mesmo, mostrar como sabia lidar com as palavras, escrever bem. Adorava aquilo. Notícia de política, de esporte. Escrevia tudo. Amava suas coisas, com certeza. Um homem que amava suas poucas coisas.
Nunca entendi porque era tão aficcionado por medicina. Nunca foi médico, nunca nem teve amigos médicos. Era um mulherengo esperto, homem grosso mas talentoso. Não tinha mãos pra abrir gente. Mas queria que eu fosse, não sei porquê. Poucas palavras me disse sobre isso. Me lembro de poucas. Não entendia porque não queria que eu fosse jornalista, como ele, ou político. Ser médico é ser nobre, uma vez me disse. Uma das poucas. Discursou em prol da medicina por alguns minutos, quase delirante. Sorria despretensiosamente. Talvez um desejo oculto. Acho que essa foi a grande frustração de meu pai: o fato de nunca ter sido médico. Quando me formei, ficou orgulhoso, o mesmo bigode, os mesmos charutos. Minha mãe velha, burra, que nem Clara. Mulher burra. Vida sofrida, lenta. Tartaruguinha. Era mesmo muito atrasado pro meu pai. Velho estranho. Depois, nunca mais. Nunca mais falou nada, nunca mais se pronunciou. Difícil entender aquele exílio, aquela vontade de não mais conversar com ninguém. E médico e o escambau! Clínico geral. E Jequinhá. Bahia. E ele lá, no Rio, envelhecendo e definhando até sumir, há muito tempo atrás. Meu futuro deve ter sido muito frustrante pra ele. E médico e o escambau... e mais frustração. Gente sã deve ser gente feliz mesmo...
Um buraco no estômago, era o que parecia, e o ácido entrando em minha corrente sangüínea, devorando toda minha pureza, enquanto eu sufocava tentando pensar em fazer alguma coisa. Úlcera é uma coisa terrível. Fruto de gente que come blocos e blocos de gordura até o estômago não agüentar mais, não conseguir aproveitar mais nada nem degradar mais nada. E úlcera. Úlcera que me incomodava, ardia, queimava. Minha testa estava quente, meu corpo todo suado, e eu me remexia, tentando aparar a dor, com muito pouco sucesso. O homem com o filho acordou e me olhou de relance. Percebeu alguma coisa, mas não fez nada. Olhou de espiado, parecia um pouco amedrontado. Estava me sentindo muito mal. O ônibus pululava, o cheiro parecia insuportável, a porta do banheiro aberta, as cabeças todas despenteadas, as pessoas em semi-dormência. Os bombons e os pastéis rodando dentro do meu corpo, e o palmito, o quibe, Sonho de Valsa. Tentei segurar o vômito o máximo que podia, mas não consegui por muito tempo. Primeiro, tentei, sem olhar, pegar um saco nas costas da poltrona da frente, onde estava sentada a mais gostosinha das meninas. Não consegui, não havia saco. A úlcera me queimava por dentro. Soltei um urro agudo e baixo, mas perceptível para quem estava perto. O primeiro a olhar foi o homem com o menino, quando eu já estava por cima deles, tentando chegar até o corredor, para então chegar até o banheiro. Me joguei em cima dele e do menino com força, mas nem assim consegui cair no chão. Vomitei tudo no corredor: o quibe, os bombons. Não conseguia parar. O homem me jogou no chão instintivamente. Eu estava machucando o garoto. Não conseguia me mexer. Ficava apenas lá, no chão do corredor, vomitando tudo o que conseguia. As pessoas todas faziam expressões de nojo, falavam alto, tentavam mobilizar alguma coisa enquanto minha bile ia descendo, passando pelo meu esôfago e faringe, molhando a minha boca e caindo no que tinha pela frente. Demorou pelo menos dois minutos até que as meninas resolveram me ajudar. O ônibus havia parado e as luzes haviam se acendido. As meninas me carregaram até o banheiro, onde eu terminei de vomitar tudo na privada. Tentavam me confortar, mas eu não conseguia sequer pensar, naquele momento. Dos meus olhos não paravam de sair lágrimas. Eu não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Às vezes grunhia algumas coisas, balbuciava. A reação foi muito forte. As moças pareciam desesperadas, não sabiam o que fazer. Pensavam que eu estava morrendo. Eu vomitava sangue. O ônibus ficou mais de meia hora parado por minha causa. Minha garganta ia se degradando aos poucos. Algum funcionário tentou limpar o chão do corredor. Tentaram me pedir um número de telefone, mas eu estava incomunicável, quase desmaiado. Sentia uma dor de cabeça forte, e a queimação no estômago não parava. Se bebia água, vomitava tudo imediatamente. As moças choravam, não sabiam o que fazer. As pessoas todas estavam muito assustadas. O ônibus foi tomado por um odor horrível, o clima era o pior possível. Eu não parava de chorar.

3

- Tem certeza de que está já se sentindo bem? – perguntou mais uma vez a que parecia ser a mais velha delas, a morena.
- Sim, sim. Obrigado por tudo. – respondi, tentando parecer amigável. Eu me sentia simplesmente péssimo. Não tinha coragem de olhar na cara de ninguém. O cheiro me denunciava. O ônibus prosseguia num clima fúnebre. O homem continuava sentado ao meu lado, mas alguém havia cedido um lugar inteiro ao menino. Perguntaram se havia um médico no ônibus. Se conseguisse, esboçaria um sorriso. Muito irônica e trágica, aquela situação. Tudo o que eu queria era morrer.
- O que o senhor teve, afinal? Má digestão não causa essas coisas! É algum outro tipo de problema de saúde? – prosseguiu ela.
- Sim, eu tenho úlcera.
- E o senhor podia viajar assim, nessas condições?
- Não, não. Eu estou ciente que não. Sou médico. Sei que não, sei que não.. – disse eu, ainda em clima febril. Tentaram me oferecer algum remédio, mas eu não podia ingerir nada. Até mesmo minha saliva me causava incômodo. A sensação era muito, muito ruim. E eu simplesmente não sabia o que fazer. Não sabia o que fazer quando chegasse ao Rio. Procurar um médico? Me hospedar aonde? Aonde? Eu não tinha muito dinheiro, nem nada. Minha vida parecia estar desgraçada. Não conseguia parar de pensar coisas ruins, em me matar, jogar minha vida fora, roubar, matar os outros. Tudo muito passageiro e delirante, mas eu não conseguia.
- Se o senhor precisar de alguma coisa, qualquer coisa, fale com a gente, tá legal? O que o senhor vai fazer no Rio? Hm... estou te incomodando? Se estiver, pode falar, é que eu sou mais preocupada do que o normal...
- Não, não está incomodando – disse eu, educadamente – estou com problemas. Não sei bem onde ficar, lá no Rio.
- Como assim?
- Estou indo a um encontro meio às escuras... não sei onde mora a pessoa que estou procurando.
- O senhor é médico?
- Sou.
- ...
- ...
- Nós estudamos psicologia. Eu moro sozinha. Se quiser, pode ficar na minha casa até encontrar a casa dessa pessoa que está procurando. – disse ela, depois de uma pequena reflexão. Definitivamente, um belíssimo exemplar de nossa espécie. Não conseguia livrar minha mente dos pensamentos maldosos, não conseguia parar de imaginá-la nua, junto comigo. Meus pensamentos continuavam febris. Era uma generosidade, um ato de estupenda humanidade, eu só conseguia me imaginar comendo-a no apartamento dela. Senti vergonha de mim mesmo, fechei os olhos, tentei me punir de alguma forma, mas não consegui. Pensei nos meus filhos, na minha esposa. Nada conseguia me aliviar. Minha alma estava mais do que torturada. Demorei para responder, depois de abrir os olhos. A moça, de olhos grandes, olhava-me arregalando-os, assustada.
- Tudo bem, tudo bem. Eu agradeço, mas acho que não vai precisar. Preciso de um pouco de dinheiro, talvez. Pouca coisa. Uns cinco reais. Se pudesse me emprestar, eu agradeceria.
- Claro. Sem problema. – disse ela. A outra também estava virada pra trás, mas apenas observava, assustada. Periodicamente, outros passageiros olhavam para mim, às vezes antipáticos, outras vezes tentando oferecer algum tipo de ajuda com o olhar. O homem do meu lado não parava de olhar. Parecia querer se comunicar, mas não conseguia. Talvez eu tivesse sido rude demais com ele antes. Estava envergonhado. Era justo.
- ...
- ...
- ...
- Eu gosto de psicologia. – disse eu, não sei porquê – é uma coisa interessante.
- Sim, é muito. Muito útil. É muito bom saber psicologia. Te faz entender melhor as coisas.
- Eu não queria ser médico. Mas fui. Fui, porque hoje eu não sou mais.
- Por quê?
- Matei gente demais. – disse eu, olhando para baixo. A moça demonstrou tristeza, não sei se sinceridade. Eu não sabia bem o que fazer, o que dizer. Velho amargo e inútil. Precisava de algum tipo de apoio, para sustentar a viagem.
- Não se preocupe.
- Eu não me preocupo. Há muito que não exerço essa profissão.
- O senhor fala bonito.
- Você também.
- Mora em Salvador?
- Não. No interior.
- Aonde?
- Jequinhá.
- Não conheço.
- Não me surpreendo.
- Quem você vai encontrar no Rio? Seria perguntar demais perguntar isso?
- Não.
- Então, quem?
- Meu pai.
- Ah.
- É uma cidade boa, Jequinhá?
- Não. Eu não gosto. Não gosto mais. Me mudei por causa de minha esposa.
- E porque ela não está vindo com o senhor?
- é o meu pai que vou encontrar. Não o pai dela.
- ...
Silêncio. O homem olhava, inquieto. Uma vez, chegou a abrir a boca, mas não conseguiu dizer nada. A menina parou de falar. A outra virou para a frente e tentou dormir. Eu não conseguia pensar no que dizer para ela. Só conseguia achá-la bonita, e mais nada. Minha boca estava com um gosto horrível, e meus olhos estavam pesados. Mesmo assim, eu não sentia sono. Em pouco tempo, o sol nasceria, e a pior parte da viagem começaria. Eu continuava agonizando quieto, sem deixar ninguém perceber.
- Se precisar de alguma coisa, é só me chamar, tudo bem?
- Tudo bem, tudo bem. – respondi, e ela se virou para a frente também. Me encostei na poltrona e tentei relaxar de alguma forma. O homem olhou para mim. Eu não sabia o que ele queria. Parecia apenas que sentia uma vontade insaciável de se comunicar. Eu não estava em condições de ser egoísta, e nem antipático.
- Me desculpe. Não foi culpa minha. – falei.
- Eu sei. Não tem problema. Eu vi que o senhor estava passando mal, mas não tive coragem de fazer nada. O senhor parecia que não queria ser ajudado.
- Sim, é verdade. É um problema meu. Eu nunca quero ser ajudado. às vezes tenho problemas por causa disso.
- E você é médico e nem trouxe nenhum remédio?
- Não. Sou uma pessoa irresponsável.
- Nunca pensou em mudar nada?
- Sim. Eu penso o tempo todo, mas não tenho ânimo pra mudar nada.
- Isso não é bom.
- Não, não é nada bom. Minha saúde está cada vez mais debilitada. Na cidade onde eu moro tem pouco recurso. Eu acho que vou morrer logo.
- Não diz isso.
- Tenho que dizer.
- Deus castiga.
- Sem dúvida.
- Você não devia ter essa língua tanto de cobra. Acho que isso não vai levar a nada. – disse o homem. Surpreendentemente, ele parecia querer me reprimir de alguma forma. Falava como se estivesse meio bravo, meio inquieto com minha situação. Parecia uma pessoa esperta, apesar de simples. E quem disse que os simples não podem ser espertos? Tentei vencer meu preconceito, aceitar que aquilo que aquele homem estava dizendo era verdade, a pura verdade. Eu era um maldito covarde.
- Me desculpe.
- Porque você não sabe onde seu pai está?
- É uma história comprida. Me arrependo de ter feito essa viagem, de ter passado por todas essas coisas.
- Eu conheço Jequinhá. É uma cidade simples.
- Muito simples.
- Preciso voltar para o meu emprego no Rio. Tenho que viajar para o Rio uma vez por mês. Metade do mês, passo em Salvador, a outra metade, no Rio. Meu menino gosta do Rio.
- É uma cidade grande.
- É uma cidade bonita, mas muito grande. Cidades muito grandes incomodam um pouco. Eu queria morar numa cidade pequena, como você. Queria ser médico, também, que nem você.
- Eu queria uma porção de coisas, também. Não tenho quase nada do que queria.
- Meu filho vai ter um bom futuro. Quero que ele estude e seja médico.
- Ele pode ter sucesso. Eu não gosto de ser médico. Não deu certo comigo. O que você faz?
- Dirijo.
- Dirige?
- Motorista.
- Particular?
- é.
- Seu patrão paga as passagens?
- Sim.
- Onde mais você morou?
- Muitas cidade pequenas... nasci no Baile das Dores, morei em Orumbá, Baucatú... já até passei uns tempos em Jequinhá. Já entrei nuns serviços de matar, mas não dava pra profissão. Tinha medo de matar gente. Nunca tive coragem. Jequinhá tem muito matador famoso.
- Sei disso. Já curei alguns deles, antigamente. João do Caminha, conheceu?
- Nunca conheci, mas sei quem é. Morreu com onze balas no corpo. Você tratou dele?
- Uma vez, não quando ele morreu, é claro. Tinha tomado um tombo do cavalo. Quebrou a perna.
- Conheci muita gente estranha. Jonas de Balalã, Tomazinho do Norte, Onório de Jesus...
- Sim, sim. – disse eu. O homem me confortava. Me lembrava alguma coisas excitantes que aconteceram em todos os meus anos em Jequinhá. Hoje, a cidade está mansa. Quando me casei com Clara, era cheia desses bandidos, de padres, putas, essas coisas. Me confortou. Eu parecia uma pouco mais aliviado. A conversa era boa. Me fazia esquecer aquela angústia toda, aquele medo da viagem, de tudo. Minha teimosia era o que mais me fazia sofrer.
- Mas quem é que é mesmo o pai do senhor que o senhor vai visitar no Rio?
- Um homem velho. Nem sei o que se passa com ele. Recebi um bilhete faz um mês. Achei que ele já tinha morrido. Ele diz que está vivo. Vivo e quer me ver.
- Coisa esquisita...
- Muito. Resolvi viajar pra ver. Agora estou muito confuso. Não tenho muito dinheiro.
- Meu pai morreu quando eu era novo.
- Não sei se quero ver o meu de novo. Já faz muito tempo que não vejo ele.
- Quem é o seu pai?
- Você nunca conheceu. Ele nunca morou em Jequinhá.
- Nunca se sabe. Conheço muita gente nesse mundo.
- José Chateaubriand. – respondi. Logo depois, ele me olhou de forma intensa. Parecia surpreso. Esboçou um sorriso quase imperceptível, uma coisa macabra. Secou a boca. Olhei para ele estranho. O nome de meu pai escoava em minha cabeça, e ele continuava me olhando. Ficou alguns segundos assim, meio estupefato. Eu não entendia bem. O homem era bastante misterioso. Segundos depois, o mistério se resolveu:
- Conheci, mas ele morreu mesmo. Sinto muito. – disse ele, meio desanimado, meio pasmo. Eu ouviu aquilo sem compreender direito. Tudo parecia muito irreal, muito fantástico para ser verdade. Conheceu? Conheceu como? Oito milhões de pessoas no Rio de Janeiro e ele conheceu meu pai como? Como?
- Homem de jornal, não é? – prosseguiu ele. Eu não consegui responder nada. Quem ficou estupefato desta vez fui eu. Meu coração batia mais rápido, eu não entendia direito o que se passava. Tudo o que fiz foi olhar para ele, esperando mais alguma coisa, algo que complementasse ainda mais aquilo tudo, aquela coisa misteriosa! Como! Qual! Incrível! Meu pai?
- Meu pai?
- Foi meu amigo, seu pai. Gostava de mim. Fumava charutos, gostava que gostava de mulher. Morreu com oitenta e tantos, seu pai. E tudo ficou meio claro pra mim, agora... seu pai queria te ver mesmo. Falava pouco de você, mas às vezes falava. E dizia, quando bebia uma cerveja. Dizia que tinha feito tudo errado com você. Que queria poder te criar de volta...
- Mas...
- Trabalhei pra ele, o seu pai. Fiquei sabendo que ele morreu bem depois te ter parado de dirigir pra ele. Morreu ainda esses dias, mesmo. O bilhete era de verdade. Seu pai queria te ver mesmo.
Eu não conseguia acreditar. Não conseguia entender bem o que se passava. Ele estava lá, me dando provas concretas de que tinha conhecido meu pai, que ele realmente estivera vivo, mas que havia morrido há menos de um mês! Tentei encaixar as coisas, redirecionar as situações, entender tudo com lógica, mas tudo parecia muito perdido para mim. A notícia me abalou de forma avassaladora. Não que eu tivesse sentido realmente a morte de meu pai, que pra mim já estava morto há muito, mas tudo parecia muito absurdo para ser verdadeiro... queria saber mais, saber o que mais aquele homenzinho misterioso tinha a contar sobre os últimos anos de vida de meu pai....
- Eu... desculpe... eu... estou... um pouco abalado...
- Sim, eu sinto muito em te dar essa notícia. Você estava indo pra ver seu pai, não é? Morreu de um tumor em algum lugar. Era um homem muito estranho, seu pai. Morava sozinho numa casa até que boa. Foram dois anos trabalhando pra ele. Como não falava com ninguém, contava bastante coisa pra mim. Falava muito de política, e de mulher. Gostava de política. Morreu com mais de oitenta, né?
Mais de oitenta. Mais de oitenta e eu vi o sol nascer naquele momento, dentro do ônibus, enquanto descobria que meu pai estava vivo e que havia morrido. Senti um vazio grande dentro de mim, mas uma espécie de alívio. O sol rubro alaranjava as estradas secas. Minha pele estava pálida, meu pêlos todos arrepiados. Parecia que um fantasma havia passado por ali. Meu olhos, arregalados. Mesmo assim, eu sentia uma paz estranha se apossar de mim. Um comodismo, um alívio, algo assim. Nada havia mudado, afinal. Nada. E nada haveria de mudar. Um episódio que logo seria esquecido. Meu pai teve mais trinta anos de vida, fumando charutos e falando de mulheres, e eu não sabia de nada. Me sentia frustrado, mas ainda assim parei de suar. Minha mente se acalmou e eu percebi que não valia a pena perder mais tempo. Desci a poltrona e olhei para o teto. Agora, não havia mais nada para fazer. Fechei os olhos e dormi profundamente.

Ciro Inácio Marcondes
































Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui