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Contos-->O Primeiro Concerto -- 15/07/2002 - 10:41 (Getulio Marcos Pereira Neves) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Então a cortina do palco se abriu e toda a história passou como que num lampejo à frente de seus olhos (já que sua vista tornou-se imediatamente ofuscada por jatos de luz colorida que o atingiram em cheio, vindos dos canhões colocados no teto e no chão). A fumaça de gelo seco começou a cobrir o ambiente quase que instantaneamente, enquanto seu cérebro era invadido pelos sons que vinham da platéia, aplausos, assobios e o nome da Banda estreante chamado aos gritos. A correia da guitarra oprimia-lhe o ombro e podia perceber que seus dedos estavam suados. Sua respiração ia-se tornando mais rápida à medida que ligeiras gotas de suor começavam a pingar sobre o corpo do instrumento, muito colado ao seu, como que num abraço sensual em que os amantes se sentissem ambos reconfortados pela presença um do outro.
Desde que a guitarra aparecera na sua vida sonhara com aquele momento. Os anos de estudo e prática só faziam impacientá-lo ainda mais. Sempre achara que seu lugar era no palco, entre cabos e fios, microfonia e decibéis. Sempre achara que sua vida era se preparar para isto. Tinha sua guitarra como amiga, companheira, como sua amante. Agradava-se de seu timbre feminino e sensual, e agradava-se sobretudo da maneira feminina como ela reagia ao seu toque, murmurando quando acariciada, gritando quando fustigada, mas sempre cantando para ele, da maneira mesmo como cantam as mulheres que se sabem amadas.
Toda a sua vida fora pouco mais que relacionar-se com o seu instrumento, por isto é que, naquele momento, sentia-se de alguma maneira amparado – afinal ele a tinha em seus braços, pronta para lhe falar, como aliás fazia sempre. O problema é que daquela vez seria diferente, ela não iria falar só para ele, mas também para aquelas outras pessoas que ali estavam para ouvir a Banda, aquelas pessoas que pareciam estar prestes a intrometer-se na intimidade dos dois. E aquilo, aquela situação, era nova para ele, que sempre estivera a sós com seu instrumento, como que em inconsútil lua-de-mel.
E então teve um receio, o de que sua guitarra – sua amante – revelasse segredos que só eles os dois conheciam, porque só diziam respeito a ambos. E instantaneamente sobreveio o medo de que as pessoas não entendessem esses segredos, ou, pior, que os entendessem e se intrometessem neles. Era, sobretudo, o medo que têm os amantes de verem o seu mundo devassado por estranhos, e por isto serem assaltados por outras preocupações que não o de fazerem-se bem um ao outro.
Mas já em algum momento seguinte lembrou-se com alívio que, ora bolas, aqueles segredos não precisavam ser revelados. Havia como que uma cumplicidade entre os dois, homem e instrumento, no sentido de que – por óbvio - ela não precisaria tocar aquilo que ele não quisesse tocar. Afinal, estavam entre estranhos. Súbita confiança apoderou-se dele, confiança nela e em seu presumível recato, e de alguma maneira sentiu-se recomposto e pronto para o que então se seguisse.
Logo após aquela fração de segundo em que se viu ofuscado, em que tudo isso lhe passou pela cabeça, sentiu, mais do que ouviu, quatro batidas no prato da bateria às suas costas, a marcar o compasso e o andamento da canção. Sequer percebeu quando sua guitarra começou a executar a parte dela, e quando se deu conta não pôde deixar de sorrir, pensando em como era voluntariosa - era como uma menina mimada, que fazia as coisas simplesmente porque queria fazer.
Não, não ouvia o que estava tocando, aquilo era mecânico. Fora tudo ensaiado e repetido inúmeras vezes, e conhecia cada compasso da canção como conhecia o caminho de casa. Ouvia era o seu coração, que parecia bater com muito mais força naquele momento. Tentou concentrar-se na execução, mas não conseguia mais distinguir os acordes que seus dedos desenhavam, automáticos, sobre o braço do instrumento.
Sentiu, de súbito, a sensação de desconforto que beirava uma certa inconsciência ser substituído pelo pânico: lembrou-se que faria o solo naquela canção, e sequer sabia em que compasso estavam a andar. Tentou relaxar e confiar na guitarra, deixar que ela de alguma maneira interagisse com seus dedos de modo a continuar extraindo deles os acordes certos. Os segundos então lhe pareceram longos, o calor sobre o palco já coberto de fumaça era sufocante, e a angústia que sentiu só foi sacudida pela súbita consciência da presença dos demais instrumentistas a seu lado, que num momento passaram a olhar para ele como que a lhe prestar atenção. E se deu conta de que era hora de seu solo, a tal hora em que ambos, ele e seu instrumento, estariam a sós sobre o palco, e como que por milagre voltou a sentir (talvez no seu coração) a batida do bumbo a indicar o compasso.
Então era agora. Fechou os olhos e mentalizou sua guitarra nas suas mãos. Cantou para ela e pretendeu colocar naquele canto todas as melodias que alguma vez tinha aprendido. Sentiu-se tomado do desejo de entretê-la, de seduzi-la e de a final possuí-la. E à medida que cantava para ela, sentia-a como que se agradando, cada vez mais, e de súbito percebeu que ela também começava a cantar para ele. E seu canto foi divino como nunca antes tinha ouvido, seu timbre sensual como nunca antes tinha percebido, mesmo nos momentos de maior intimidade entre os dois. Inconscientemente apertou-a com mais força contra seu corpo, excitado pelo seu contato, e sentiu-a mais uma vez se agradando. E aquelas melodias únicas que os dois cantavam um para o outro foram como que se aproximando uma da outra, lentamente, instintivamente, até se fundirem numa só, numa nota única, muito aguda, e então foi como se ambos, de uma mesma frequência, explodissem juntos em incontáveis outras freqüências de luzes, cores e sons, em consonâncias e dissonâncias diversas.
Foi o clímax. Depois percebeu apenas murmúrios, enquanto seu cérebro, ainda como que anestesiado pela tempestade de sensações, só muito lentamente voltava a funcionar, e num momento deu-se conta de que, afinal, sua guitarra também fora feita para o palco, e compreendeu que nunca até então tinha tido o melhor dela, nem nunca lhe fora tão íntimo como daquela vez.
Abriu os olhos ainda a tempo de ver as pessoas que lá de baixo da platéia olhavam para os dois, e então, como que em câmera lenta, foi-lhes voltando a perceber o arfar das respirações, e os olhos piscando e as bocas que se abriam em gritos e sorrisos. A sensação de que eram aplaudidos veio invadindo seu cérebro também lentamente, até que num instante sentiu-se muito orgulhoso, mas o orgulho não era de si próprio, era daquelas pessoas, que tinham ouvido e entendido e respeitado aquele momento especial porque tão íntimo entre ele e seu instrumento. E então soube que o medo que de início sentira era uma bobagem, porque percebeu que seus segredos afinal nunca seriam revelados, mas ali, naquele momento, surgiram outros, que mesmo à vista de todas aquelas pessoas eram somente dos dois, dele e de seu instrumento, e as pessoas sabiam disso.
Agora, acabada a canção, parecia não sentir mais a guitarra. Ela se tornara muito leve em suas mãos, parecendo como se não quisesse se fazer notar. “De fato tinha suas próprias emoções”, pensou ele, e respeitou aquele momento em que seu instrumento voltava a ter um corpo separado de seu corpo. Delicadamente trouxe-a até os lábios e a beijou, e então lhe pareceu que ela lhe sorria, confiante e apaziguada. Sim, apaziguada, na sua excitação e naquela sua vontade inata de seduzir. Afinal, era mesmo como uma mulher, como sempre a percebera e como sempre a tratara.
E então naquele momento, sobre o palco, olhando o público que ainda aplaudia, ladeado pelos demais componentes da Banda estreante que agradeciam os aplausos, distinguiu entre todas as pessoas na platéia a sua namorada, e viu que ela parecia tinha uma ligeira lágrima a lhe molhar os olhos, ao tempo em que um ligeiro sorriso lhe vinha aos lábios. E deu-se conta de que ela também entendera sua relação com seu instrumento, e ela também a respeitara, e então as coisas se organizaram no seu coração de tal maneira que ambas, Mulher e instrumento, ocuparam seu próprio lugar, distinto e único.
Relaxou, e até sorriu. Sentiu que, naquele momento, crescera mais um pouco.

Lisboa, novembro de 1997 (sobre canção homônima do UHF)
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