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Contos-->CARNE E PALAVRA -- 30/07/2002 - 23:30 (Nelson Ricardo Cândido dos Santos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O sangue que corria da testa ferida pelos espinhos entrava em seus olhos, ardendo-os e cagando-lhe constantemente. Pressionando as pálpebras uma contra a outra, procurava limpar o sangue dos olhos e recuperar a visão. E sua visão permitia-lhe apenas ver aquelas pessoas à sua volta, pelo caminho, olhando-o curiosamente, muitos acusando-o de um crime que jamais cometera, a maioria indiferente à sua dor, poucos comovidos com o que estava acontecendo, mas sem coragem de tomar qualquer atitude. Apenas uma pessoa, uma mulher, teve esta coragem de se aproximar dele para dar-lhe um pouco de água.
Ela nunca se importara – ou assim deixava transparecer – com o que o povo pensava. A sua profissão, classificada na mais baixa escala moral, era publicamente atacada pelos mesmos homens que lhe freqüentavam a cama. A hipocrisia humana há muito lhe era conhecida e ela sabia que aqueles soldados nada fariam contra ela fisicamente – talvez uma agressão verbal ante os olhos do povo – caso contrário não a teriam à noite. Aproximou-se do homem ensangüentado, mas uma velha, e não os soldados, no meio da multidão, ao vê-la, aproximar-se do criminoso, empurrou-a, fazendo-a cair. Diante do riso do povo, surpreendentemente, uma mulher de fino trajar dirigiu-se à decaída, ajudou-a a se levantar e, tomando de suas mãos um lenço, limpou o rosto do homem. A primeira, então, deu-lhe de beber em uma espécie de cantil que trazia a tiracolo, bebendo em seguida da mesma peça, indicando que ambos eram iguais. Ambos colocados à parte da sociedade, atacados por esta, mas sendo a ela necessários. Quantos prazeres da carne já não tinha proporcionado a tantos homens que estavam naquelas ruas que ora percorriam, quanto amor efêmero já não havia distribuído! E aquele pobre infeliz! Os prazeres que havia proporcionado não eram da carne, mas o amor que distribuíra fora tão efêmero quanto o dela, não porque pudessem ser considerados falsos e momentâneos, mas porque as pessoas não o souberam receber. Não estavam preparadas para recebê-lo. Ela já dera muito amor, amor genuíno, amor forte e verdadeiro, que lhe era retribuído com uma pedra, quando os homens abandonavam a sua cama. Ela lhes dera o que eles queriam e precisavam, mas eles não estavam em condições de aceitar esse amor. A amor assusta, pois sobre ele não há domínio. Quem o sente vive à sua mercê, e ninguém quer ser escravo, ninguém quer ter correntes ou barreiras impedindo os movimentos e atitudes que se deseja ter. “Tão diferentes e tão iguais nos dois somos!”, pensou a mulher. “Mas nos fazemos parte do sistema. O sistema precisa de nos e nos só existimos em função dele. É o nosso destino, a nossa razão de ser. Hoje você morrerá, amanhã serei eu e por toda a eternidade haverá homens e mulheres morrendo para que o mundo sobreviva!”
As duas mulheres permaneceram paradas, enquanto o criminoso sem crime afastava-se em continuidade a seu martírio.

Sua vestes foram arrancadas e jogadas ao chão. Os soldados cruzaram o tronco que ele carregava em outro, maior, e amarraram-nos. Deitaram o homem sobre a cruz que se formara. O primeiro cravo varou-lhe uma mão. Depois o segundo varou-lhe a outra. Os pés foram sobrepostos e varados por mais um cravo. Com muita dificuldade, os soldados ergueram a cruz e a fincaram em um buraco na terra.
A população, quase em êxtase, podia saborear o sofrimento do homem.

Eis-me aqui pregado nesta cruz por um crime que não cometi, por um crime que, em verdade, não existiu. Em toda a minha vida não desejei nada que pudesse agradar aos outros homens para não lhes despertar a inveja. Nunca exigi nada para mim e só me dei. Dei meu amor e as idéias de meu amor. Que crime é este o de amar a todos e a cada um como se fosse eu mesmo, ou mais do que a mim mesmo?!
Nunca me dei esperando algo em troca, mas jamais pude imaginar que o que poderiam me dar de boa vontade fosse esta humilhação que me impõem. Pregaram-me nu, despido de todas as minhas roupas, como a despir o meu espirito das minhas idéias, a minha alma através da vergonha moral. O único ódio que por momentos chego a sentir é de mim mesmo, por ser incapaz de amaldiçoar estas pessoas que tentam me destruir, estas pessoas que já não posso ver, cego que estou pelo meu sangue que escorre e penetra em meus olhos, sangue que me deu a última imagem que talvez verei na vida: do mundo tinto em vermelho.
Por que não aceitam simplesmente, naturalmente, o que eu tentei ensinar-lhes, se no fundo do coração é a única coisa que verdadeiramente desejam e pela qual vivem?
Mais uma vez me odeio pelo que sou. Deveria ter-me fixado em alguma cidade, exercido a minha profissão, casado e ter tido filhos, levado uma vida comum como todo outro homem. De que me serviu abrir mão de tudo, se não consigo manter o direito à minha própria vida?
Como me sinto sozinho aqui em cima, nesta escuridão cega em que me encontro! Eu não merecia isso! Onde está aquela multidão que me acolheu com ramos e cantos há poucos dias? Onde estão todos? Por que me abandonaram? Por que não me tiram daqui e me deixam partir?
De que servirá a minha morte? Ou de que serviu a minha vida? Se me fazem isso, o mesmo farão a meus discípulos, àqueles homens e mulheres que me seguem, que me bebem as palavras, que abandonaram tudo – dinheiro, família e a própria vida independente – por acreditarem em mim. Morro e cada um, por medo de morrer como eu, deve voltar à sua vida anterior. A minha morte não terá sentido além do de calar para sempre a minha palavra.
Por que não me tiram daqui? Ou, se querem que eu morra, então que me matem logo. Esta posição é incomoda. Já não me doem as feridas, mas não consigo respirar direito. Meu peito parece estar sendo apertado por uma pedra gigantesca, que me impede de respirar. Já não basta esta humilhação, esta vergonha que me obrigam a passar? Têm de me deixar consciente disto tudo por muito mais tempo?
Senhor meu Deus e Pai, se existes de fato, leva minha alma agora! Não me abandones! Não permitas que me sinta envergonhado como estou-me sentindo neste momento!

Um soldado cutucou o corpo inerte na cruz. O homem ergueu a cabeça, balançou-a de um lado a outro, espalhando sangue e suor à sua volta, tentando inutilmente abrir os olhos. “Este está demorando a morrer”, disse um soldado a outro.
Sobre as roupas do crucificado, os soldados jogavam dados para passar o tempo, aguardando a morte do homem. “Ganhei de novo!”, exclamou um deles. “Hoje estou com sorte. Assim que este criminoso morrer, vou gastar o que ganhei de você com aquela prostituta”.

Naquela noite, a mulher não recebeu ninguém. Começou a falar algumas coisas estranhas, de amor, de destino e de outras que ninguém que a procurava estava interessado em ouvir. O soldado e todos os homens que a procuraram foram embora, à procura de outras casas, deixando-a só com suas palavras.
A mulher não entendia o que estava sentindo. Desde que bebera do mesmo cantil do que fora crucificado, sentia algo estranho que lhe dizia que a morte daquele homem tinha um significado que ia além de sua compreensão. Um dos seguidores do homem havia dito que ele era a palavra feita carne. O que significava aquilo? Em sua mente, boiava essa frase, que aos poucos se desmembrava, separando-se, fazendo-a repetir palavra, carne, carne, palavra, carne, palavra..., ambas lutando entre si para fixar-se na mulher.
Cansada, a mulher deitou-se e seu último pensamento externou-se num tom baixo de voz:
— A carne fez-se palavra.

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