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Artigos-->Sementes no Gelo -- 02/03/2009 - 12:21 (Mauro Bartolomeu) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
15/4/2008



Já tratei em outro artigo do romance Santa Puta, a Redentora, cujo argumento é assaz interessante. Nele o autor se utiliza da hipótese da metempsicose para levar à conclusão de que todas as relações familiares não passam de convenções inúteis, uma vez que posso ter sido, em encarnações anteriores, mãe da minha atual esposa, ou irmão da minha amante etc. O autor, dessa maneira, parte de uma crença que serve de fundamento a inúmeras religiões e moralismos para, com base nessa crença mesma, refutar todo moralismo que ela costuma fundamentar. Nisso reside sua genialidade: em virar o feitiço contra o feiticeiro, explorando as falhas da sua lógica sofística. Há outro romance, mais recente, que provavelmente pouco signifique no contexto da Literatura Brasileira, mas cujo argumento merece ser tratado num capítulo a parte. Falo de Sementes no Gelo (Osasco: Novo Século, 2002) de André Vianco, de quem um amigo meu costuma dizer que parece fumar muita cannabis, pela extravagância dos enredos que cria, e cheirar muito epadu, pelo ritmo alucinado com que escreve. Entenda-se como elogio, embora a obra, repito, não se destaque no panorama das letras nacionais. Mas, conquanto não passe, pelo menos no nível lingüístico, de uma leitura destinada ao público infanto-juvenil, e ainda que não extrapole, de qualquer modo, o âmbito do entretenimento, isso não altera o fato de ser ela construída sobre um argumento tão interessante quanto o do primeiro.

Não posso garantir que o argumento seja criação do seu autor. É perfeitamente possível, e até bastante provável, que ele tenha sido elocubrado anteriormente por pensadores kardecistas. Seja como for, é igualmente bastante provável que o romance em questão seja a primeira obra literária a explorar tal idéia. O argumento é bastante simples: trata-se de um típico conto policial infestado de fantasmas que, claro, são destruídos no final. Mas esses fantasmas têm uma origem inteiramente inédita na história das criaturas fantásticas: trata-se de espíritos aprisionados em embriões congelados em clínicas de inseminação artificial. “Eles conseguiram congelar seus corpos… não suas almas…” diz a epígrafe logo na capa do livro. A se levar a sério a hipótese kardecista, tais almas estariam encarceradas nesses embriões, impedidas tanto de se desenvolverem como seres humanos (o que seria sua ‘missão’ nessa nossa “vida de aquém-túmulo”, como já disse o poeta) quanto de se ‘reencarnar’. Este seria o motivo de tanta fúria por parte dessas criaturas, as quais são ‘destruídas’ com a incineração dos embriões congelados. Ou, para dizer melhor, são libertadas desse destino horrível, pois, embora o autor não o diga explicitamente, parece óbvio que as ‘almas’ que não podem ser congeladas com os embriões tampouco podem ser aniquiladas com eles.

A ousadia desse argumento talvez passe despercebida a muitos dos seus leitores. Daí a necessidade de explicitá-la, especialmente numa época em que tanto se discute o destino eticamente correto a ser dado aos embriões armazenados nas clínicas e laboratórios (há pouco mais de um mês que o Supremo Tribunal Federal deu início a um debate sem sentido para definir ‘quando começa a vida humana’, sem perceber que a discussão é mais filosófica e religiosa que científica…). O próprio autor insinua uma posição que pode ser lida como contrária à ciência, embora rigorosamente seja apenas contra a manutenção de embriões em estado de suspensão. No último capítulo, após o mistério solucionado, deixa escapar frases como “os óvulos fecundados tornaram-se uma espécie de bomba-relógio” ou, em discurso indireto livre, “projetos de novas leis pululavam no Senado brasileiro. Até onde ia o direito do homem? Tínhamos o direito de conservar vidas no gelo?”.

Excetuando-se o que diz respeito aos fantasmas e as descrições que faz deles, não vejo qualquer incompatibilidade entre a teoria de André Vianco e a teoria geral do espiritismo. É perfeitamente coerente com ela que um espírito está ligado a uma célula-ovo desde o momento da fecundação (como todas as religiões ocidentais parecem admitir) e que dela está impossibilitado de se separar enquanto ela se mantiver congelada (pois continua viva). Concepções religiosas distintas podem debater se esse estado de ‘suspensão’ provoca ou não algum sofrimento nessa alma; para o kardecismo, que prega a necessidade da encarnação para o contínuo aperfeiçoamento da alma, não há dúvida de que essa espera é, no mínimo, indesejável, pois representa um tempo perdido para a alma que se encontra nessa situação. Se esse ponto for admitido pelos pensadores religiosos, ser-lhes-á bastante difícil continuar argumentando contra o descarte dos embriões ou sua destruição para a obtenção de células-tronco. Mais uma vez, portanto, estamos diante de uma inteligente inversão do feitiço contra o feiticeiro, pois aceitando os mesmos princípios que fundamentam a ‘ética’ pregada pelos grupos religiosos, somos levados a concluir o contrário do que eles defendem.

É certo que o maior entrave ao desenvolvimento científico em nosso estado ‘laico’ são as igrejas (no caso do Brasil, a Católica, liderada pelo ex-cardeal ultra-conservador Ratzinger), e que elas não admitem a idéia da metempsicose. Pergunto porém: qual seria o destino dessas almas que, segundo sua doutrina, já estariam fatalmente presas a esses embriões destruídos? Não iriam diretamente para o Paraíso? Não teriam o mesmo destino dos bebês falecidos com poucos dias de vida? O mesmo destino dos abortados (espontaneamente ou não)? Lembremo-nos de que em certas regiões do nosso país é comum que as pessoas que ajudam as grávidas a praticarem o aborto recebam o apelido de ‘fazedoras de anjo’, e isso possui uma razão religiosa profunda em nossa cultura. Se a Igreja condena práticas desse gênero não pode ser, portanto, fundamentada num sentimento de piedade para com essas almas, mas apenas por uma questão moral: as almas que merecerão o Inferno serão aquelas que cometem tais atos ‘assassinos’, não as que os sofrem. Sendo assim, é admissível que proíba seus fiéis de praticar o aborto ou de apelar para a fertilização in vitro. O que não é admissível, porém, é que ela se preocupe tanto com pessoas que não desejam tais cuidados. Na sua retórica, dirá que o faz por piedade cristã. Mas aquelas pessoas tampouco desejam piedade; muitas, aliás, têm asco dessa palavra. Que ela ameace os cientistas com todos os horrores que possa imaginar para o seu Inferno; caberá a eles decidir se vale ou não a pena correr o risco, pois talvez estejam dispostos a repetir o mito de Fausto: vender a alma por pura sede de conhecimento. Mas que ela pretenda interferir na legislação de um Estado ‘laico’ é algo que foge da órbita da sua competência. Não estamos mais na Idade Média…

Se o jovens leitores de André Vianco puderem sair do seu universo ao menos sem nenhum escrúpulo excessivo em relação à morte dos embriões humanos, seu romance já terá contribuído significativamente para a construção de uma geração mais aberta às conquistas científicas, e, portanto (por paradoxal que possa parecer afirmar acerca de uma estória de fantasmas), menos supersticiosa. Mérito inegável.



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Comentarios

Marco  - 17/03/2019

Como diz o doutor Manhattan, life is overrated. E é mesmo. Por isso nos meus contos e livros eu mato mesmo: mil, um milhão, um bilhão... Esses embriões por mim poderiam virar Pepsi, que eu não tô nem aí. Pseudociências não precisam de nomes complexos: é só dizer: crença nisso, crença naquilo. Se crença funcionasse, os fiéis (NÃO OS PASTORES) estavam ricos. Fim.

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